quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Escolha

Quando se fecham os olhos, o mundo não existe para aquele que os fecha. Como há de se provar que o mundo existe naquele instante dos olhos fechados? Mas fecham-se os olhos para sentir e para não sentir. Fechar os olhos é uma dádiva, é uma escolha, a mais perfeita manifestação ou prova de que se existe, de que se vive. Estou aqui e fecho os olhos. No escuro vejo o que não sei, o que não sabia que sabia, o que ainda vou saber e nada, pois é um nada do qual não tenho conhecimento inteligível. Fechar os olhos é dar-se a si mesmo. Eu sei, porque vejo com o instrumento o mais valioso do olhar o céu, que não sempre, mas de vez em quando, faz chorar os olhos. Então eu os fecho perante a beleza incognoscível, intangível, graciosamente imensurável e igualmente isenta de sentido, porque tenho medo de compreendê-la, tenho medo de compreender que sequer poderia compreendê-la, e tenho medo de sua efemeridade, porque a beleza intolerável, a única verdadeiramente pura, é aquela que não se sabe reproduzir ou mesmo conservar. O céu é uma beleza intolerável, e choro na esperança de algum dia entender a razão de ele ser tão vasto, tão profundo, tão durável, e eu tão pequena e perecível. Fechar os olhos é tudo de que disponho para proteger-me. O sono é intolerável, pois suscita a isenção de todo controle, no que cedemos fechando os olhos. Um beijo é como o sono, mas proporciona também a doação de um ser ao outro, em que se abrem os olhos num gesto de substancial curiosidade, própria de tudo que não se vê. Abrir os olhos é um gesto de benevolência, geralmente associado ao intuito de conhecer. O que não se sabe é que uma compreensão vera e ainda mais profunda jaz no âmbito dos olhos fechados, em que também não existe julgamento. Fecham-se os olhos para que se admita uma insignificância digna. Sobretudo fecham-se os olhos para não entender, o que é uma atitude suprema exigente de sublimada idoneidade e humildade, e uma decisão repleta de consciência. Só quem fecha os olhos tem consciência de abri-los. Eu fecho os olhos para sentir, para não transtornar com uma paisagem indigna e irreal o que estou sentindo, o surreal, aquilo que não tem imagem proporcional ou correspondente, aquilo que não se mostra aos olhos alheios, contido nos meus. Devo fidelidade absoluta ao sentimento e fecho os olhos em seu benefício. Fecho os olhos porque sentir é só meu, portanto não pode ser compartilhado com a exterioridade, de modo que não desejo estabelecer com ela conexão alguma. Desprendo-me do mundo para sentir. No interior autônomo, começo a sujeitar-me à dúvida, posto que não haja testemunhas. Sentir se torna irreal. Sentir se torna algo de inexeqüível. Sentir se torna insuportável. Sentir é isenção de controle. Sentir é fechar os olhos. E a potência contida no fechar os olhos é uma graça dolorosa, quase um fardo, dá até medo de ter nas mãos uma habilidade tão valiosa, haja vista que é o poder da possibilidade. Porque através de olhos fechados tudo pode ser visto, tudo pode ser: não há um horizonte que limite o poder dos olhos fechados. Fechando-se os olhos, fecha-se a alma para tudo que se encontra fora da condição do si próprio, concessão necessária para que se possa abrir a tudo, para que se possa poder ver e, com a consciência adquirida, compreender que se existe, e que tudo existe, e que talvez a cada instante em que haja olhos fechados o mundo possa todo deixar de existir, e que talvez tenhamos mesmo de admitir uma dúvida fatal e intransigente. Fechar os olhos é uma doçura, um horror de coragem: não se pode garantir que novamente se há de abri-los, nem que se há de enxergar novamente. Esse há de ser o porquê de não se pensar o resultado do ofício das pálpebras a todo tempo, pois caso o fizéssemos bem capazes seríamos de não mais proceder a fechá-los, olhos que nos asseguram. Abrir os olhos é constatar: é mesmo, eu existo, então eu não havia imaginado, bem o disse Clarice. Como quando se olha um par de olhos que olha de volta. A realidade é demasiadamente expletiva. Estou sujeita à dúvida, mas é uma dúvida tão certa e humilde que não vou procurar eximir-me dela, não vou à busca de subterfúgios que me sirvam, nem enveredar por quaisquer tentativas de apropriar-me de certezas que não me sejam devidas. E hei de viver naturalmente, pois estou já farta de tanto forçar a alma a quedar-se em parâmetros incabíveis, hei de familiarizar-me novamente com a liberdade de espírito há muito perdida de meu hábito e adestrá-la, ainda que sob muito custo. (01.05.2010)