quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Desvelar

Porque não há esperança maior que a de ter outra noite ao teu lado, gostaria que o tempo passasse, ao te encontrar, assim devagar, como é pra mim depois de você partir. E que meu tempo fosse remotamente semelhante àquele da presença, voador e transbordante. Ar e água. Ascendente, melodioso, penetrante, expansivo, crepitante. E que eu fosse remotamente tão sensata quanto você é, e com um pingo de razão pra me impedir de dizer estas coisas valentes. Valentes, como eu derramada de sorriso quando tem entre nós aquele quarteto de cordas: teus olhos, meus olhos; tua boca, minha paz, e uma dose sobeja de coisas lindas por dizer. E que eu não sonhasse com plantas de casa de madeira onde pôr você dentro, aconchegado numas almofadas, metido a ler. E eu sempre nua, metáfora desvelada, de passo leve, esgueirando pelo espaço, contando detalhes, absorvendo, como que para não esquecer, para não deixar o nosso canto, ecoando na minha lucidez. Porque meu amor permanece inalterado. Senão mais profundo. Mais inteiro, sazonado, mais certo. Se os sentidos faltam ao redor, permanece um ponto de gravidade. Porque eu quero te pedir pra sentar ao topo do mundo e me contar o que sente. Isso é o que eu sinto por ti. Que pena da minha juventude fora do tempo. Que pena da minha velhice inexigida. Medo de fechar os olhos e ver o que sou, sentada ao topo da promessa de ausência, que me ousa desmanchar, abrir caverna, cumprimentar trevas. Que pena dos meus votos. Como se não fosse serva do tempo. Como se tudo não fosse até amanhã. Como se eu fosse morrer sem antes ouvir de novo você dizer que me ama. Como se eu me mimasse inteira dessa luz incomparável. E quisesse mesmo morrer do coração, para não admitir que ele batesse menos do que agora. Menos do que contigo.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

terça-feira, 30 de julho de 2013

Estabilidade

Let's lament together that someone
could take you out of your mirror. Can you still cry?
You can't. You transformed the force and urgency
of your tears into your mature gaze
and were just on the point of turning all your
body's juices into a powerful existence,
which would rise and circle, trustingly, in equilibrium.
(Rainer Maria Rilke)

Senti chorar em seco. Não como se me houvesse gasto, mas como se não cresse na debilidade de minhas forças diante do que fere. Como se me repreendesse por ser ferida. Como se não acreditasse em quanto tremem minhas palavras ao som das dele, já se ele fosse, assim de perto, da minha altura, e não um abismo infinito. Se entre grande e cheia de poder existe, dentro, essa debilidade tão mais esmagadora, que me esmiúça, desfaz, constrange em solidão, que valor tem o olhar maduro, seco, pleno de certeza? Porque é uma certeza falha, jovem, inocente, despreparada? Vamos juntos. Depois de tantos passos diante do espelho, começo a confiar. Nele, em mim. Se ele me tira deste reflexo, é quando enfim vejo. Pensava que era diferente. Agora vejo que apenas demorou a ser igual. E esse igual é o que mais ainda, de novo, reconcilia-me comigo. Sou circular e coerente. Os sucessos se repetem, multiplicam-se, e, igualmente, as falhas vêm despontar. O amor que dou retorna todo a mim, fortificado. A minha falha se redunda e arredonda e abunda pelas frestas de tudo que ainda não sei administrar. Que imagem construo diante dele? Se ele enxergasse o todo, me projetaria? Esse senso de projetar-me ao longo dele, como se fosse um ponto de fuga da pintura, meu ponto de apoio. Que dantes poderia bem ser o nada, o incerto, o futuro, a incompreensão, a solidão pura. Mas vem do amor, do sentimento profundo. Que me transforma e reverbera. E como o senso de urgência se vai firmando nisto. E o senso de equilíbrio se vai moldando sobre este solo, minha terra de vida, minha permanência máxima. E a vida pulsa e vibra, circular e ascendente, como se eu fosse romper para fora de mim, almejada solidez de raiz. E movimento puro. Neste ponto, os dedos dos pés, os dedos das mãos - já não sustentam, e eu preciso segurar sua mão. Ele me dá a mão, mas repetindo sempre a sombra do tempo. O que foi e o que será. Eu entretida de juventude. Agora, sou toda a força que me vem de ter esta mão. Ah, as mãos. Se ele visse o ar que se levanta entre elas quando fala, a energia, ele que fala pelas mãos e entre elas, e a voz tão firme que ressoa por entre os gestos, da firmeza mais delicada já vista, que queima nos olhos, querendo romper o meu maduro seco, para dar àquelas mãos de verbo encantado o pranto mais apaixonado que este mundo já viu. E, quando tudo ficasse bem exagerado, irracional, faria mais uma respiração profunda e mentalizaria: vá, acredita firmemente que te basta em ti, e assim não pedirás ao mundo mais do que se oferece. Mentaliza que essa força é toda tua. E só agora dele, porque vamos juntos. Porque vamos juntos, quero dois inteiros; dois inteiros unidos, fortificados. Porque vamos juntos.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Liberdade

Será incorrer no fatal: entre a via do que se supõe eterno embora não sempre efervesça, e a via do que se supõe fugaz embora liqüefaça cabalmente; o perpétuo de se desfazer e desnudar pelo ardor sublime e renitente, intermitência e fremir; a verdade de sempre, e a verdade dura. A vertigem e a fé. Qual minha via real? Qual a via espessa, e qual a vazia? Qual a torta, qual confiança? Que liberdade posso ter com os dois pés unidos em concha e firmes no chão? Que certeza pouco eterna? Talvez uma terceira via, indistinta, inafetável, nas pontas dos pés eternamente? E nas pontas dos dedos, quando sinto beirar, despejar, percorrer a superfície de uma liberdade mais viva e mais ardente? Depois da infusão? Colher nas mãos em concha, dessedentar, assim de tanto que eu já não me baste sem incorrer nesta água, até perder-me de todo na via mais espessa de amar, até que fora dela não me sinta livre?

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Colheita

Se eu precisar de quatro estações para me recompor do pó? Desabrochar e desvanecer, fraquejar, resfriar, ressecar, arder, dessedentar. Botão de flor. Se eu mirar a dose temporal do mundo, percorrer a via, fizer translação do meu afeto, fizer círculo completo, percalçando as bordas e plantando começo junto com fim, cultivo diário, deixar-me espalhar em semente no vento, querendo fazer (h)era, anti-estacionária, mas secretamente fazendo minúcia das variações? Desabrochei. Desabrochei de novo, desabrochei de dentro pra fora do amor, de fora pra dentro murchei e desabrochei de novo, enterrei bem a fonte da desunião no peito e a ela me recolho pela manhã e pela noite, meu templo de paz. Busquei-o de dentro pra fora, de fora pra dentro. Então, vieram fogo, água e ar. Exatamente o que ele é: as estações. Uma a uma, destruição e amor. Arder, dessedentar, tomar fôlego. Enterrei-me bem nele, desabrochando firme sem escusa de luas. Dos olhos escuríssimos, Púrusha cristalino. A cada dia mais distante do fogo último, a cada dia mais perto do fogo próximo? Do turvo à limpidez: permanência máxima, minha terra, terra, terra.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Flor de sal

Te mandaria flores, se assim pudesse bastar. Te mandaria flores, para não ver o vermelho torcer para fora do teu rosto, para não secar de tanto torcer vermelho para fora de mim, sal molhado na boca. Mandaria flores, desbravaria cavernas e montanhas, exploraria funduras e alturas inarredáveis, comporia dos roteiros o maior encanto, luz amena, colcha de retalhos, mochila nas costas, louça na pia, se velas pernoitadas, janela esquecida aberta, roupas pelo chão, e pilhas de livros dobrados de uso, água corrente, horizontes, e flor, fixaria o tempo; te deixaria, inclusive, veria esvair-se a sombra, para não mais me olhar, se assim pudesse bastar, se assim ressoasse, mesmo distante, a tua liberdade de alma. Que eu quereria comigo. Mandaria flores, se eu não fosse tanto a mulher acesa por ti. Para não dizer que tenho um mundo na palma, feito ramalhete arrematado pulsando firme entre as duas mãos, quando me molha o teu olhar de pura água. Para não dizer que sento escorrendo à beira neste topo de mundo, aprumada e paralítica, às vezes porque desabrocho um quanto docemente dos teus lábios-dedos-olhos repousando, propagando, fazendo mistura na pele. Tanto sei o ponto onde amar acaba, como nunca o vi tão nítido: pois meu ponto é o inverso simétrico. De te amar, virei flor. E flor da pele. Te mandaria flores, mas te entrego em gesto, peito aberto, como doutras vezes em mãos trêmulas, o mais tenro de mim, verdade de mim, meu próprio hábito que agora é amor. Em troca, leva a flor. Leva, junto a ti, põe bonita num vaso à escrivaninha com tua liberdade de alma. Vê como tudo fica bem. Ao menos, mais doce?

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Marinheiro

Alento (derivação regressiva de alentar) 1. Faculdade ou força precisa para respirar. 2. Ar expirado, hálito, respiração, fôlego. 3. Força ou vontade para realizar algo; coragem, esforço, vigor. 4. [Poética] Inspiração artística. Alentar v. tr. 1. Dar alento a. 2. Animar. 3. Robustecer. 4. Acalentar. v. intr. 5. Respirar. v. pron. 6. Tornar lento ou mais lento; demorar. Anelar (latim anhelo, -are) v. tr. 1. Respirar com dificuldade. 2. Desejar ardentemente; almejar, ansiar. adj. 3. Relativo a anel.

Os sentimentos vastos não têm nome. Será mesmo o amor duro e inflexível? Se dobro-me bem de um extremo ao outro, curva retorcida, à mais vasta das calmas, sei que não é verdade. O amor, e mais nada; desvencilho-me da raiz brava das coisas, ferocidade dos tempos eternos, mas não desfaço o nó; de frouxa, franzina que pareça, a tenaz verdade de buscar um nome. Que nome? A ousadia da pergunta faz em concha nas mãos a verdade crua, impossível e leve, da resposta. Leve, seda maleável, alva preciosidade. Da pouca importância ao sentimento mais vasto de mundo. O mundo que te tenha, e há de ter, e eu que abra as mãos. Toda tua a resposta, colada ao ouvido de concha, entregue ao destino. Se aprumo-me inteira, maleável e encaixada nesta bruma da entre-consciência, que é volúpia transformada em sono, dúvida tornada voz, in-hesito; se pairo delineada feito contorno de nuvem, dissolvida, flutuante, superfície de água, margem de sonho e som, inebriada e confrontada com a toda-atenção minha de gravitar tão resistente em ti, apenas para abrandar, enternecer, curvar-me, e o leito nosso seguir correndo em onda, movimento puro; metade planície, metade montanha, por conta das curvas, sinuosas, delicadeza bruta e desordem apaixonada, sob medida, que, ao franzir de cenhos, deságua, ressoa, cria nova fonte, afunda, inunda, e faz minúcia, horizonte, e volta todo em turbilhão. Que nicho: de bem servida, daqui não há vontade de deixar. Se for, leva. Para dizer que só eu te sei assim, para contar-te assim pelas beiradas de um ínterim ilimitado (que, se fosse poema, seria eterno), é preciso engolir um pouco deste excesso, daquele que me faz murchar inteira em flor, alento a escapar-se, fazendo das outras respostas perpétuas indigentes. E apenas teu nome saberia. Meu alento, minha alegria, se ao menos não se engasgasse a água entre cada pronome de terra, principalmente ao tamborilar pelos possessivos. Nunca dura e inflexível: então devo ser água. Para não ser o ar que tu és: ah, minha alegria. Não tem nome. A juventude ergue e condena. Saber que, no teu ar, eu sou a liberdade. Saber do tempo asmático em torno do anelar puro, não-livre. Sei, mas respiro ainda o amor inominável.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Estimar

Estimar (latim aestimo, -are, fixar o preço ou o valor de, avaliar, apreciar, considerar) v. tr. 1. Ter em estima ou em estimação. 2. Folgar com, sentir prazer por. 3. [Marinha] Fazer a estima. Estima s. f. 1. Apreço em que se tem a outrem. 2. [Marinha] Cálculo, por conjectura, do caminho que o navio tem andado, e do local onde se encontra.

Começou por uma ponta sem nó nem fim, atando os dedos mudos ao rastreio do caminho à pele que faz som do meu ar, que das vontades irresolvíveis, de dias a fio desfiado, ficou a boca costurada beirando dizer três palavras, que para dizê-las tiro em delírio cada roupa, sussurro feroz, pausada e veemente, aperto os olhos incrédula, desmancho, e beijo comprazida teus ouvidos mais altivos. Seguinte:

Você é alguém.

Mas não valeria dizer a ouvido de concha. Eu sei que os teus buscam mares mais-além; e eco mais sigiloso, mais candoroso, efervescente, te sobe a pele ao me ouvir chamar assim? Quando atino a derramar, de seda morna, escorro abaixo e rasgo pelo meio do caminho, de aspereza, apenas eu tentando ver pelas frestas. Em exercício de comedimento: noites irresolvíveis, em que eu escrutaria sempre sigilosamente pelo comprimento de onda preciso que me fizesse eco, frêmito cintilante do meu ao teu, sem que eu proferisse a beira mais fraca e igualmente tenaz do que intuo ser. Certeza maior permanece ainda insuspeita no mundo. Te parecerá apenas eco, conjunto lato dessas minhas certezas oblíquas que mando por decreto, roupa de baixo, dedos, ópera, lábios e fatos oníricos, mares com ilha no meio e casa perdida e amor sendo feito. Que sim, um dia acordei e o mundo se encerrava no metro de cama que me fizesse indivisa de ti, e enfim a interferência nenhuma trazia aos olhos o tempo para que tu vivesses o maior sorriso. De pouca importância seria inclusive a minha presença: que eu apenas soubesse da tua liberdade de alma que, quando alça vôo, me atinge em cheio o rosto queimando como a brisa mais suave, aparamétrico, potência em sopro da mera instância das tuas mãos. Alguém para muito. Que a minha voz -- de um morno-terra anafilático, tentando inundar com as poucas (e infinitas) certezas os quebradiços entretidos, a fim de que não visses em muito relevo as minhas rachaduras -- se rompesse entregue na tua, irresolvível, e eu me engalfinhasse tanto mais com outros trios de palavras exigentes também de muito ar no peito e afinco nos pés. Que, para querer dizê-los, basta aquele instante heróico em que pressinto forças de imponderável direção deliberando e revolvendo dentro do corpo, em antecipação às ondas que me hão de sirgar sempre a todo vapor para mais dentro e fundo em ti. Envelheci de repente ao mero considerar os trinta anos que ainda não tenho, tão proféticos e distantes de ti. Para te conhecer, queria ter ao menos trinta.

domingo, 31 de março de 2013

Segredo azul

Às vezes, quando eu falo  e, antes de ver, de puxar teus olhos aos meus ou carregá-los na vista, sinto o teu olhar , parece de repente que falar é ato estranho, todo exigente de atenção: e, no entanto, quero falar-te como das vontades primevas da minha natureza. Mas falo meio irregular, que são teus olhos no meio do caminho, tua boca abaixo, à espreita do que poderias falar-me, ao invés, ou em retorno. Então, sim: é que, talvez, se a boca não puder se ocupar da tua, que ela esteja em repouso, e eu seja ouvidos para te colher. Às vezes, quando os olhos meus assistem ao temperado da tua voz, aquela vaidade muito sutil dos teus gestos, aquele escuro dos teus olhos que às vezes incandesce, é que não sei habitar outra forma; estado de espírito: tu, contigo, tua. E, se falares de amargura, e eu-dos-olhos-fundos, eu-grave, eu-luz, eu-enamorada, quiser de repente te compensar, se eu pudesse assim cumprir todas as tuas horas, levar nas costas teus desgastes, levar-te para longe, fazer o tempo em ti correr suave à tua maneira, tua vida secreta, e eu aqui à antessala, das vezes que fiz entrar  como não ficar azul? Que eu nunca vi ninguém tão dono da própria cabeça, alguém que me fizesse pensar: quisera eu estar perto para ver  tudo. De repente, de tão admirada, atravesso também a paixão, para um estado tal de azul, azul, azul, tão grave, que o teu jeito de pensar se espalha sobre mim feito um molde, e eu me vejo inteira encaixada. Quisera eu ter assim metade dessa força que me beira só de te olhar, e quem sabe deste amor-meu para ti que tenho todo fortificado eu pudesse fazer-te envolto em contentamento. Aqui, ao teu redor, não sabes por quê, começo a gravitar. Que talvez eu te emprestasse um colo, e em retorno me emprestasses um pouco dessa força. Que eu não me assombrasse nunca com o antes e o depois. Que eu pudesse dizer: te quero assim inteiro, tudo que vejo e não vejo, que fiz de ti um motivo? Beija meus olhos, leva-me longe contigo. Tu, das maiores distâncias que já percorri, das maiores distâncias que, de tão próximas, mal posso enxergar.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Vernal

Your body, a wavelength path to the light in your soul, though there is no boundary between the two. To travel along you, move through your body as though waters caress me head to toe. The heaviness of your body over is as though arms  armies of birds  enclose me in natural flight, wings that carry out a ring of fire, opening inch and inch of skin to a load which is only featheriness. When your body decides to undress me, it's as though all of a secret world's chanting wills to address me. When I mildly respond, caught in the startled newness of your every gesture, it will be either in the spiral of fearing love, or in the ever sweetness of my earnestness. Your body, tied to what is mine, leveled, unravelling, entering the thrill and tender of my soul, now free. No sharp wind or bleak dark could level with the subtly creeping warmth there is deep in your body, sooth bearer of my heart: to spring you into eyes, ears, mouth, full body, full length, full circle.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Me dito

Existe essa forma imprestável de saudade que se chama nem ter o que te dizer. Se calha, nem memória me sobra: sou só resíduo, e no residual deste cultivo sei que só me serve calar. Vou ali para um canto, encolho, rezo um terço da onda perdida, rezo a ilha em que fui feita, desenhada, e esses contornos que não me saem da pele feito traço de areia, que os movimentos temporais não fazem apagar. E é antitético, porque o que fica me é tão ínfimo, tão minúcia, e eu pequena, sumidouro neste grave tempestivo que é deixar as ondas me levarem de ti, lavarem-me o teu, que o meu é meu, e eu continuo, tua, esgarço, regaço, baía de medos sutilmente calculados para precipitar, infalivelmente, a chuva dos meus olhos a cada reação. Que faca é esta que me tolhe a ponta, quente, ardendo por debaixo da pele, e eu me desfazendo pelas beiradas como se nem fosse sólida. Eu, raiz, indemovível? Espuma de nada se desoçobrando por uns cantos aí, que ninguém vê, de que nem vale a pena ouvir falar. Tendo visto, inteira, que as quedas d'água fragmentadas não me tiram nem me dão, fazem dança e cortejo, fazem dilúvio, fazem incêndio, e silenciam. Buraco de concha e os ouvidos retorcidos. Fica, que o anseio se imiscui na memória, feito onda. Ondulam em mim umas reticências, umas resiliências das mais ingratas; eu sempre pronta a deixar, porque sei que hei de carregar comigo. Ondula dentro de mim cada despedida como se não fora eu a ir comigo, mas o contrário: adeus a mim, agora parto a carregar o ido. Ser, para dar. Me gasto, e vejo que: me tiram tudo, não fico nada, calam-me, que arte de ser muda por ser inteira a percuciência dos sons, eu que feita de palavras só faço impressões varridas de areia pelos mares da minha meditação. Vazios plenos que me saem pelos olhos ao saber do iluminado: que não basto, a minha claridade me condena, antecipa, torce o fluxo d'água. Para alcançar um estado tal de plenitude que se satisfaça em mim. Retiro-me de tudo a ver que nada há que me contenha. Que raio de sol dos mais solitários. Que água nos olhos, na garganta, por toda parte a que eu me torne: são mundos inteiros da fluidez que, no entanto, não me é. Que forma imprestável de amar. Não eu, mas se as ondas dizem: é porque te amo.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

De uma menina com uma flor

Releitura de Vinicius de Moraes

Porque você é só um rostinho bonito, e porque me lê para sentir-se querido, e porque eu escrevo para querê-lo, eu lhe prometo que a cada noite derramo nas estrelas um pouco do meu pudor. Porque você não se explica, fala pela metade, não tem consciência, flexiona os verbos, concorda com os artigos e preposições, não lê sinopses, e não gosta de nada, quero bem ouvi-lo dizer de novo que gosta de mim. Porque você tem também um ar recuado, mas quando chega me ocupa toda de ar morno, e se me toca me ocupa toda de ardente, eu lhe prometo até a importância que você já tem. Eu lhe prometo até tentar manter estas promessas no papel, porque você, se me ouvisse, insistiria em sacudir-me até eu não pensar em mais nada. Porque você é um homem simples e impossível, frugal e transbordante, antigo e jovial, sério e menino, e porque me deu uma rosa do jardim da igreja, e porque o gato que mora lá fica todo carente e oferecido para você, e eu simpatizo com ele porque me identifico, e porque você acerta meu gosto e fala o mínimo, porque você leva sempre um livro, e porque você quando começa a ficar carinhoso logo se contém, e porque na sua presença eu me defino por um raio máximo de dois metros de você. Porque, às vezes, quando começa a falar de coisas importantes, você esquece de me olhar e sabe bem que é porque eu começo a ver você, e logo pára, sabendo que eu tentava ser sua confidente. Porque a sua voz me acalma e o que você diz me aflige, e porque você canta que é uma doçura no meu ouvido, em quatro línguas distintas, eu lhe prometo quantas aventuras você quiser, e prometo não tentar desvendar todos os seus mistérios. Porque você me fala pelos silêncios, e eu lhe correspondo em gestos, prometo a você toda a minha sensibilidade, e a cada dia mais toda a minha força: é tudo que tenho para dar. Porque você é um luaceiro na noite, e porque tem nome de apóstolo e de poeta, e porque um dia vai desaparecer em alguma floresta num país distante, eu lhe prometo que, quando você for, não vou me perder, e só peço que, para deixá-lo, você não me diga adeus.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Ato de contrição

...the love which consists in the mutual guarding, bordering and saluting of two solitudes.
Rainer Maria Rilke

Estou arrependida. Estou antecipando. A corda bamba do meu eu estirado: estica-se de um extremo ao outro do teu nome, e eu no meio, limite máximo. Apenas escutava o que tu não dizias. Apenas me media pelo assombro da solitude a antecipar-se, tua fruição, meu derrame. Apenas me deitava no dilúvio que me continha, sem escapes, drenada, repreendida. O amor fere. Era apenas leito de ausências. E silêncio inóspito, que nem a terra pode redimir. Jazigo, pois que o rútilo me deixa o corpo, em diálogo rarefeito. Durou pouco. (Mas eu suspeitava.) Nem três luas. Há um sol maior. Quando a lágrima secar nos olhos que, incrédulos da vista, esta noite não se fecham. E que farei da antiga mágoa quando não souber te dizer por que chorei?

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Olhos d'água

Já tentaste fechar os olhos? Se tudo se resolvesse em fechá-los. Eu não estaria a ver-te, além-pálpebra. Não estaria, talvez, mirando tua sensação de ver-me. Fechada, porque aberta. Compensativamente. Tonta de ti. O corpo se dobra, pisca, tremula, oscila. Que a boca procura a sede que se resolve em outra. Até que eu sentisse os dedos teus pelos meus olhos, chamado percussivo, chuviscando meu nome, pronunciado em textura de pele corrente, adocicada tessitura da voz tua. Eu, branda, já seria tanto desses dedos que não saberia alinhar-me em simetria à urgência. Porque a urgência já estaria rutilante em meu fôlego atravessado, ritmo diluviado do suor a vir depois. Vertendo, gotejando. Reencontrada em ti, sempre novo e escuro, sempre fogo, palpitando luz em cada artéria. Te antecipo as chegadas, as viradas, a pele que há de vir, e que não se ouse descolar de mim, ansiados dedos que se enterrem, a estirar-me, prolongada. Olhos fechados que não espelhassem teu sorriso sorvido, que no meio da tontura já não basta olhar. Porque o teu perto é tão dentro que eu me sinto longe, inteira no mundo. Um mundo teu que, se eu disser... Que eu já habitava? Os olhos, ao som do te ter, têm a ousadia de reter-se. Vêm-me tuas mãos, asas, voz de água, a desanuviar-me, precipitando-me às profundezas até que o som fosse luz, cor, vento, rútilo. Ar preso nos pulmões, haurido, ato de constrição, e logo ato contrário, de desatino, olhos indesafiáveis que vêm entrar, escorrer da boca o som. Que, se eu disser: o que se fez do instante de ti em mim. O instante de olhos fechados, em que o te ter se torna apenas ser, e estamos sendo. À distração, os meus buscando em ti o refúgio, minha luz particular, atemporal. Se hoje te pareço imperfeita, terrestre, olha-me de novo, preenche-me de amenidade, dessas que só em ti se detêm. Escuta o som do teu corpo transfixo no meu. Escuta, como os sons de fora que sei que vêm de dentro, tua fluidez em mim resguardada, de um espaço entrecerrado liberto, ardente nesse passo de tu-e-eu. Que, se eu disser: quase coreográfico. De perto, teus olhos como se eu já fosse tua antes de ser. E era. Que não és como eles, bem o sei, mas sabes que sou eu? Que sou ao lado teu. Vê que, contigo, todas as partes de mim se depuram a cada parte tua, a cada palavra um canto. Que, se te destoas, eu consono contigo, e o reverso. Porque dos outros tão cheios de um nada. Porque de antes eu tão farta de um vazio. Porque, em ti, olhos fechados agora acesos nos teus dedos. E a tensão amena de abri-los, mãos que me colhem em espelho d'água, a escorrer entrededos. Que, se eu disser... Os olhos meus que já anseiam por beber-te, encerrar-te adentro, em eterna sede. Olha-me de novo, a cumprir-me infalível, que eu te prometo não fechar mais nada.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Crônica de veraneio

Sessenta dúzias de quartetos de tempos, e ainda era amor. Ou já era amor? Antes de ser. Ou nem mesmo amava. Porque era o próprio amor, então fluía através dele, já incorpórea, porque verbalizada nele. Então existia agora em essência e não se bastava em palavra alguma. Nem mesmo amor. Quatro quartetos de tempos, e eu quero gritar que já não posso andar só. Já não posso andar só pelos caminhos. O amor é uma companhia. E os amores que morrem têm sentido de ser pelos que nascem. E eu não poderia ver o sentido com olhos duros: sou embaçada e canto lágrima, vejo com olhos suaves, de algodão, de seda, deslizando, de pétala de rosa, de seio de mulher. A silhueta do amor transportável. E, se eu transportei, é porque também transportaram. A leveza e o peso. Que faca retorcida dentro de mim. Que morte, saber-me cadáver dentro de alguém. Que morte, sabê-lo nascituro em mim. Que vida, que vida, que vida nova. Como vivi em dois, três, quatro, cinco tempos. Como fui feliz. Meia dúzia de tempos, e sessenta dúzias de quartetos de tempos comprimem meus olhos. Toda uma vida enterrada num peito que foi meu: quarteto de cordas. Um ciclo se rompe para que nasça um outro. E o outro é lívido e todo novo para mim, e por novo quero dizer também que me renova, reascende, revive, resplandece, revela, restitui, regala, refarta, repara, noviciadamente... Eu nunca fui tão olhar: estou vendo bem tudo com uma clareza que quase me anula como pessoa. Lucidez? Me equilibro na entrega. Mas sinto que me aproximo de me ser, entre o claro e o escuro dos ecos do tempo. Tenho vontade de conversar com alguém. Mas esse alguém não me ouviria. Eu não quereria nada, senão ouvidos. Não ser nunca um som pretérito de oco. Pois a mim falta apenas livrar-me desse ímpeto: o de ser tão presente. Quisera ser atemporal; ver nisso o sentido do silêncio. Sessenta dúzias de quartetos de tempos, e aquele homem teve de matar a mulher para não ver nela a sua vida a matá-lo. Eu entendi, porque fui morta. Eu entendi, porque hoje matei. Matei, como uma mãe mata para proteger um filho. E entendi que sou materna. Por isso, prefiro a minha morte a ver morrer os frutos do meu amor. Quando for tempo, novamente, abrirei em mim mesma a ferida. Para a vida. E recomeçarei, do sangue; o mesmo sangue das eras e do agora, com seu poder de morte e amor. E entendi que sou a fonte da vida. Se sou mulher, é para ter no ventre a faca. E entendi que a sabedoria do tempo é também sua ferrugem. Não sei que água, só sei a sede. A morte é também uma companhia. Janeiro, não me acabe. Quero aninhar-me na mornidão e na umidade das palavras que tive a graça de sentir. Me mataria em março, me mataria em março, só para que não deixasse de amar. Embora eu saiba bem: quem ama já aceitou a morte. Se março, junho?

A leveza e o peso

Não se brinca com as metáforas. O amor pode nascer de uma simples metáfora. / O primeiro pensamento dela foi: ele voltara por sua causa. Por sua causa, havia mudado de destino. Agora, não era mais ele o responsável por ela; de agora em diante, ela era responsável por ele. Aquela responsabilidade lhe parecia acima de suas forças. (...) Não, não era superstição, era o senso de beleza, que de repente a libertava da angústia e a enchia de um desejo renovado de viver. Mais uma vez, os pássaros dos acasos haviam pousado nos seus ombros. Tinha lágrimas nos olhos e estava infinitamente feliz por ouvi-lo respirar ao seu lado. / Já a havia encontrado desvendada. Fizera amor com ela sem ter tido tempo para apanhar o bisturi imaginário com que abria o corpo prostrado do mundo. (...) A história de amor começara depois: ela tivera febre e ele não pudera levá-la de volta como fazia com as outras mulheres. Ajoelhado à sua cabeceira, ocorrera-lhe a idéia de que ela lhe fora enviada numa cesta pelo rio. Já disse que as metáforas são perigosas. O amor começa por uma metáfora. Ou melhor: o amor começa no instante em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética. / O tempo humano não gira em círculos, mas avança em linha reta. É por isso que o homem não pode ser feliz, porque a felicidade é o desejo de repetição.

Milan Kundera

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Júbilo, memória, noviciado da paixão

Releitura de Hilda Hilst

Talvez até o queira mais quando inexiste. Porque às vezes até o seu beijo tem um gosto de água. E, quando chove, e há silêncio, no meu peito feito heras em muro crescem palavras, toques ainda por vir, que só me vêm à flor da pele porque um dia vieram outros de mesma ordem. Ele (h)ouve. Só porque ele ainda pode ser, como que não me retiro do desejo. Se me entranhar feito sede, feito água corrente, já saberei que é a ausência. Teço maneiras de vivê-lo, delineadas pelo já dito, ou fomes que se deixaram cair pelo caminho. Porque ele me tocou, existe febre na memória. Quando me dá vontade de derramar, eu torço os olhos, sacudo-me, viro três vezes, emudeço, e tomo outro rumo, sabendo que comecei a esquecê-lo no instante em que se pôs porta afora. Começo a esquecer o aroma da presença, o calor calculado, a vibração cronometrada, um algo de meticuloso tão desconcentrado que emana dos olhos. Começo a esquecer, porque esquecer é já dar conta da sua falta, é já saber que os detalhes seguem opacos na minha sede, que é evidente a fartura, mas tanta fartura de sentimento, que eu preciso dizer: comecei a perdê-lo no instante em que se pôs porta afora. Comecei a perder-me no instante em que uma última vez repousei nele o olhar, enamorada, e deixei-lhe a vida que não me cabe. Parto à vida de terra, e sou inteira pessoa, devorada, submersa, ansiante, mas algo de recolhida. Assusto-me, porque o que sinto é inesgotável. Quando o vir, e o hei de ver porque assim fora, já não saberei o que quisera dizer-lhe. Como fico em paz ao vê-lo, porque ao menos, ao vê-lo, não o penso. Embora siga suspeitando-o, enigma eterno que ele é. E me é dado vivê-lo. Ao menos, ao dizer-lhe meus silêncios, palavras pela metade, corpo que se derrama todo como se o infinito tomasse conta do tempo, perco a inquietude de ter de esquecê-lo. Esquecê-lo, para não ser a todo o tempo a mulher que esteve nele. Esquecê-lo, para não ser ainda mais amante em sua ausência. Esgotá-lo, porque esquecida de amor. Ariana sem Dionísio. Conhecida do tempo, das realidades, das condições, do tremor pluviométrico, das peles transacionadas, ah, se eu pudesse ser indiferente. A paz dos desmemoriados? Então, não estaria assim, tão imperdoavelmente conquistada. Mas talvez eu nem quisesse o contrário. Porque tenho então a paz dos devorados... Talvez o coração na boca seja a condição necessária para que, em suas mãos, o meu coração viva.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Do mimetismo

A ansiedade é a vertigem da liberdade.

A verdade é que estou mansa feito sonolência, mas o peito vibra e quase estala de arritmia. Deve ser mesmo coisa de ritmo: compasso dos dias que prometiam alguma coisa, compasso das noites que me deram mais do que eu sequer ousasse aceitar. Que ainda sou nervo à tua chegada, aguardada. Enquanto é assim, eternamente, não vejo, como só vejo, um porto seguro. O amor que eu cria não saber como volver a mim. E eu descobri que também foste ilha. Talvez ainda mais ilha do que eu, e eu, água. Como tu. Em nosso limiar, partes limítrofes, mistura, os corpos se interceptam, interseccionam. E eu me faço feito argila, eu de terra que venho sentindo bater as ondas, dissolvendo-me, purificando-me, moldando-me à forma do mar: sim, forma infinda indefinida, e por isso mesmo a forma certa e liberta do que eu queria ser. Tu, circunvolvido de mim, cerca-me a ponto de beira, a contentar-me, sem fronteiras, e por isso o vão espaço de ondas sem paredes, sem teto, sem chão, que é o espaço de ti dentro de mim. E por que me sinto, nesta descobertura de corpo de rio lavando-me a alma, a superfície de todas as coisas intocadas, agora resplandecidas, suave som de água corrente, que me conduz sutil como se eu nem lutasse? Porque não luto. Estou a favor da correnteza. Quero que me espalhe. Cerco-te sem te transportar de ti, eterna. Sobretudo quero que me transportes. E que eu possa responder ao teu chamado em voz doce, sem estremecer pela imensidade de ser um horizonte em ti. Havia que ser assim, compassado, a fazer-me voz quente e baixa, aos tortos por toda a visibilidade que me dás. Como se eu estivesse inteira contornada dos teus ouvidos e da tua voz que me define e me ilumina o espaço a convidar que eu o percorra, resistente, translúcida, mas tudo tão percorrível e irresistível. Que seria loucura maior se eu não ficasse mansa, estirada, corpo de argila a se inclinar às inconstâncias do teu. Que eu me assemelho, aqui e ali, faço-me par ao teu lado, da mesma língua, naturalizada, como se me quisesse constar no teu campo semântico. Só porque te ouço e sinto vibrar dentro do meu. Só porque eu não vou perder o jeito, prometo; nem que eu invente palavras novas, vou ter sempre-por-enquanto um jeito novo de dizer-te, de viver-te, de sair de mim inteira para percorrer-me toda só porque a tua vastidão já me transborda de mim. Prometo: enquanto eu for tua, serei renovadamente tua, doidamente tua, incontentável e despalavradamente minha, na medida de todos os inumeráveis respeitos que me paralelizam a ti, e o meu eu que cresce e se invade será sempre o gasto eterno que me faz a cada vez tão maior, tão mais inteira, tão mais forte a cada gesto, que o nervo aqui é ousadia, este afã calmo, fulminante placidez, que se enraíza em mim até às funduras. As asas, sim, se concretizam, porque és o pássaro-palavra. E os solilóquios já estão eternizados. Os diálogos se tecem, e eu-presa sou eu-liberta. Denso desejo que me cobiça como se fosse matar, de tanto fazer-me vida desdobrada, estendida, dádiva e delicadeza. Estou ao lado teu, e por isso é o meu lado e já não poderia estar contra mim. Tua nudez: minha terra, minha simetria.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Roteiro do silêncio

Aquele triste mundo de certezas. Sou: juventude, oriente, vontade de não matar, vontade de nascer, construir pontes entre os outros, atravessá-las, desvendar funduras, aprumar a vista repousada num alto de céu, até esgotar-me, e não esgotar-me, refazer-me, papel-palavra, água fresca, suspiros noturnos, voz no pescoço, cheiro de amor morno, ruas vazias, casas cheias, lava-e-pó, transparência, doçura, consciência, doação, atemporal, terra. Eu tenho um corpo perfeito e às vezes me esqueço. Eu tenho uma vida nas mãos e às vezes me farto. Eu tenho é um coração partido e repartido. Nenhuma parte está comigo. Mas eu sinto em mim o compasso pulsante do mundo, jorrando vida, latejante. Também porque o coração, por enquanto, tem seu teto. Chorará alguém por mim, como já chorei?Alguém chorará como as outras partes desalojadas choraram, como eu chorei eternamente pelo meu eu perdido no caminho, que não volta, não se acha inteiro jamais. E meu coração fatal. Porque o que divide é o que cria: como ser pessoa além do que me cabe? Sem o corte, já não poderia haver o pulso. É preciso dizer: amor da minha vida, eu morro. Se parte de mim habita outro alguém, não é menos certo que parte de alguém segue sendo o que me parte em três, em vinte, em mil, fragmentária, heróica, corpo de luz, corpo de terra. É sempre a terra. A certeza: existe luminância para aquém e além do coração perdido, o coração rendido, que nem estivesse disponível, um sol maior que me habita, casa de corpo, morada da minha voz de repente tão certa. Ainda que eu me esqueça, a cada lua. E que eu me encontre no horizonte sem teto, sem chão. E existe percuciência. Eu reverbero, então existo. E latejo: recomeço, recomeço... Aquele mundo contente de incertezas. A certeza: é sempre tempo de parar as confidências. Não há nada que eu aceite não poder consertar. Ai de ti, a de sonhos exaltados!

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Trégua

Vou aqui pretender que peço auxílio, porque sei que não terá efeito algum esta epístola, não a mim, não à mulher que há em mim, não ao destino de a quem peço ouvidos, olhos, mãos que afaguem. Verdade é que me rompe em faces seccionadas transversais uma dúzia de ultimatos. Escorro para dentro da solidão e sei como nunca que o caminho não virá de parte alguma fora de mim. Procuro um cão cuja cabeça tocar na madrugada, e as asperezas mornas de me ser inteira e só e pretérita e futura me tomam no presente como se eu nem mesmo vivesse, só estivesse presa eternamente no livro da minha vida. Quero, mais que nunca, que o mundo me respire como deve ser, e que a cabeça esteja nas coisas como estas se fincam na cabeça. Estou deslivrada e não reconheço o meu caminho. Vagueio pelo espaço cerceado do teu andar de outra via. E o meu lado é vazio de ti como o tempo. Meu passo rompe e divide o cerco pelos pensamentos. Palavra vira corda frouxa lentamente estreitando a minha fala na garganta. Falar é a forma de me tornar desconhecida. Querer é minha forma de me tornar desentendida. Não é querer, mas ser querido, o que faz ver o contorno de pessoa. Então estou existindo. Porque me poderias tocar, então me vejo, mas é visão de forca. Lonjura percorrível: desafia-me a atravessar. Mas o verbo me aparta. O verbo até a mim mesma me trai e faz descrédito. Vira metalinguagem a usufruto de nada. Tenho por mim que a mente faz a onda porque se desencontra do corpo. Corpo contido enjaulado. E a existência relacional. Temer o não sentir o coração nas coisas. O coração existe? Tens um também? De pedra, de manteiga, ou deslivrado? Estou deslivrada, mas sei que aprendi a ruminar as coisas, os espíritos, as mágoas e os afetos. Aprende-se a compassar, a confluir com o ritmo de si. Contenções. Aprendi a ter a densidade do mundo circulando no sangue. Plenitude sem fulminação. E corpo de terra. O dia chegará, o do fim das palavras. Fim, fim, fim: recomeço. Ah, que medo de só falar. Volta pra mim, devora o corpo que há em minha fala viciada. Renova-me pela tua antiguidade que risca, risca, risca a minha sempre nova e irreconhecível voz. Aqui já seca o verborrágico do meu vazio-pleno. Então, até logo: nunca sei dizer adeus.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Colisão frontal

Aquele dia, senti o constrangimento de deixar estampar na minha boca velada o quanto te precisava. Eu te precisava porque traçava no quadro da minha alma teus detalhes precisamente, tuas curvas, teus mistérios. Eu te precisava porque teus contornos vão assim bem com os meus, e eu estava incompleta da ausência tua que me expande a vida. Tão pacificada se te permites contornar-me. Tu e eu, limite mínimo? Eu te precisava porque os movimentos antes me desavisavam, não fluíam, e na tua precisão agora eu sabia que era degelo prendendo as águas. Eu te precisava porque minha profusão é indefinição transbordante e fronteiriça. Eu te sou pela metade porque em mim o tempo preencheu-se da tua vida enquanto o meu espaço permanece chuviscado de morte mínima, diária, trama distante rente à pele. Ser pessoa me devora a natureza. De terra, sou lamaçal dividido. Mas, se há lama, há também raízes que se aprumam do turvo ao límpido jazente em superfície. Círculos concêntricos se afastam infinitamente multiplicados pela água do teu corpo estirado. Sou losango achatado de um quadrante que se busca curvar e entortar e dobrar até circular-se, eu evidenciada na forma desejável do teu desenho, meu desígnio. Tua circularidade magistral. Aquele dia, soube que estava eterna de amor porque construí num segundo de vida a fresta para a tua eternidade, costurando a tua veia no meu seio. Eu precisava fazê-lo, porque fui confrontada com a espécie mais aguda e infame, porque rara e gloriosa, de enternecimento. Que o meu enternecer se imiscua no te eternizar, e nessa fresta eu goze da altura maior que é saber-me no topo de um vivo e estranho mundo, secreto, inaudível, vivente todo no espaço do teu peito contra o meu. E que eu nunca dê as costas, senão para moldar-me no contínuo do teu corpo de calma precisa, que até a tua urgência é de um elegante que só não diria contido porque em plena maestria-espontaneidade, austera permanência da tua sombra vibrante aos galhos tortos da minha vida sob o céu, raízes contra a água, com o tempo dissolvendo-se à maneira de integrar-se ao ambiente. Como se a mim fosse eternamente nova a tua graça de fazer-me pensar-te tão antigo, hábil e firmado nessa arte de te ser, à revelia do amor, e sobretudo nele. Aquele dia, o constrangimento era epidérmico feito sonoridade de chuva porque tanto o é o anseio por ti em minha vida imprecisa.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Um conselho

Tu, que enches a boca para falar de vôo e liberdade, deve saber engolir comedimento. Lembrar de ser também a terra que é teu destino desde sempre redescoberto, desde sempre queda, mergulho às funduras. O mundo insondável não é palco para as tuas descobertas. O espaço há que conquistá-lo a dura pena, interface sacrificante inscrita na tua história, doçura de ingenuidade. 
Mas te digo que há o medo de uma prisão maior: o constrangimento de enclausurar-te em via única sem possibilidades, porque nenhuma via te parecesse suficientemente tua ou acolhedora. E se for tal a possibilidade da tua vida? Teu caminho certo? Tu, que não ousarias falar em certos e errados, absolutos, porque és inteira medo de ser erro, e te sentes uma jovem condenada. Tu, que nunca foste adequada?
Espelha no caminho teu o medo de que a desaflição seja fruto de controle: o ser bebe júbilo de ver que age sobre as coisas, não as coisas sobre ele. E a desaflição que se associe a um espírito de calma não pode ser plena calmaria, há que se sustentar tenuemente entre o caos e a paixão, teus combustíveis. Pois há também o entorpecimento, as distrações, o cúmulo de leve que te sustente por um fio em equilíbrio, tudo que preteriste. E do outro lado o contentamento incandescente que escolheste e que por natureza vibra efêmero e arrebatante, impulso que derrube e faça vôo de absorção. Amar é cair-e-levantar com a naturalidade de animal que respira. És livre apenas na medida em que te abrem uma fresta para a liberdade-em-ti que te une aos âmagos dos outros. Pois o mundo não sozinho abrirá a fresta para tua vida nele.
Entre os extremos, tu, criatura equilibrada. Sê sonhadora enquanto pensas que o podes. Criatura apaixonada, que não se encontra senão na entrega para fora da via expressa de si, tu que sentes desde sempre ter feito parte de um além, e busca a união com outras partes deslocadas. Porque te pensas estreita, se apartada, e teu cântico de êxtase na entrega te pareça tão maior e conduzível. Tua mobilidade é de fincar raiz. Teu sonho é planície pelos olhos de outro.
Levantaste, areia de lucidez nervosa no ar, coração palpitante, dedos rabiscando versos nominais porque te basta já a hemorragia, ânsia de esparramar-te de dentro para fora, pela violência do que te entra, e bem o pedes, levantaste, e o som do nada era o ensejo de ensurdecer em pensamento disforme. Levantaste muda porque carregas o medo e a iminência de ser outro, que não te basta dizer-te, e mais ainda, um de quem ouvir outro canto, que por definição seria teu.
A fixidez do tempo, que representa o volúvel dos seres, anula-te e te é, constrói-te ferindo-te.
Levantaste, foste à busca dos filhos que não tiveste, da família que não te acolhe, do outro que já não te vê, do ser que te pressente, da revelação que não terás, do interstício de todas as coisas que fazem marca com o que morreu e morrerá, tu, ser perecível a todos os sentimentos. Os sentimentos te vêm, e bem te vêem, gastam-te, criam em ti um ninho, fazem luz e brio, a desaflição aflita, a paixão que imprime nítida a adivinhação de ser pessoa, cultivam-te, e com a incautela em que te vieram se fazem supostos, despedidos, abstinentes.
Criatura servente, és amor inútil em cada gesto, cordura, cara a tapa, boca cheia e intermitente, fervura tremente, de um sangue de mornos tempos passados, de um sangue de ordinários tempos resfriados, endurecidos, que em nada te afetaram de mansa, criatura suave. Criatura mansa, faze cálculo, racionaliza, abomina-te, desconfia de ti, sê leal a nada, e te prepara às intempéries. Tua paz é chama fraca, embora te alimente toda.
E, principalmente, não ouve daqui o conselho. Sê tu, o bravo risco e a volição intuitiva em potência máxima.
Levantaste, e é tua a mão que te colhe.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Um lembrete

Que eu viva, não só pelo temor do que não for vida, mas pela graça de viver. Que eu viva pura e longamente, à revelia das validades e expirações, que eu mude, que eu perca tudo pelo caminho como vem sendo. Mas que eu não me traia. Simplória nas palavras, sou ainda fiel a mim. Que o tempo e as dores do mundo não me constranjam a perder fé e fidelidade. Vejo o caminho à frente estreitar-se tênue sobre as minhas costas, e o peso das escolhas impelir-me sempre mais a uma leveza, ao lado oposto, à distância, às incertezas e inconstâncias. O incerto me consome de desejo, porque me parece conduzir à lonjura do que me fere com perpetuidade de tijolo. Afastar-me da estagnação morosa, que me vem com aroma de ceder, de resignação, a um destino menos turbulento, menos duvidoso. A minha séria juventude, porém, é precisamente o que não me permite fechar as mãos. Parece que preciso sentir despejar as certezas, deixar-me escorrer com os impulsos, deixar-me fluir em quaisquer sonhos, calidez receptiva, coração voluntário, indomado. Tenho qualquer mansidão em relação ao futuro, porque sou inteira presente, e meu presente pode ser sonho, sonhos de completude. Na verdade: aflição de ser terra em meio às águas. Mas, por saber-me destoante, é que sei que me devo ser fiel. Obstinação ou confiança? A inutilidade da mobília, a pouca importância das adornações, a prolixidade. O supérfluo, os longuíssimos-prazos, a vida dividida de fastio que eu não quero ter. A rigidez suprema, a distração imperativa, a fuga perpétua, a aparência velada. Que eu só me gaste e nunca me esgote, entregue em cada ato e sentimento. Porque me vejo assim, ser vivente simples, apartado e destituído, dissoluto em cada coisa vista, sem nada ter, e tudo conter, pela expansividade do sentir que me rege. Coisas são coisas e o que eu quero é vida.

Incêndio

Ele é, como eu, um mundo de boca fechada e olhos bem abertos. Mas fala: eu tenho um caso de amor com a voz. Que se desdobra em triângulo amoroso com o conteúdo da fala. Falando da raridade de pessoas que criam assim mundos inteiros de sensações, ensejando fonte de acesso, um convite. Raras pessoas que vêem um raro mundo. Eu me calava sempre, para ver também, sentindo fluir em mim a via pura dos seus olhos. E, às vezes, poderia parecer que ele falava a si, em fluxo fechado. Eu só estava tão dentro dele porque tão compreensiva de tudo. Quando resolvesse me olhar, estaria em apuros: seria a visão de alguém entrando. Mas é que assim eu saio de mim mesma, pelos reflexos do que me une a ele. Também porque ele já está em mim. Às vezes, parece que preciso de tempo para vivê-lo, como se nunca me bastasse: de contentamento. Apesar de calada, eu pensava com clareza de idéia pronta: sim, tão raro. Tão raro alguém que me prenda assim, até eu me tornar o peso reversivo, aos ares e enleada de água. Simples e raro, sem floreios, pois dele a flor me faz a pele para tão além das palavras. Ele fala, e eu me incendeio.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Frugal

Não: o que eu quis dizer era -- que,

Se eu te vir, se eu te vir: e é sempre um se, nunca um quando. Tudo resplandece. Que a tua companhia é um lugar, meu onde. Se me acontecer. De habitá-lo. Palavra nenhuma vale isso. Palavra nenhuma minha vale isso. O quanto a presença se torna lugar. E, a ausência, o meu por quê. Por que a terra gira e parece plana e minha via-vazia parece plena e as pessoas passam sobre-esquecidas e eu carrego vislumbres-deslumbres das minhas faltas descarregadas sobre todas as palavras-sem-valor que não me valem dizer e esta certeza aérea de chumbo que me desperta e esta ânsia que para que escape ao pensamento tem de ser toda toda inteira submergida em contato-essência? Minha única esperança de não pensar: é viver. Que tenho todo o corpo e mente aumentados em suas células, e a aparência de fraqueza é meu espírito abrindo, altercando sutilmente, ondulando, chocando-se com o aspecto do corpo: a transformação, o desconforto da descontinuidade. Mas é pelo corpo que se faz a via, o caminho para a distância, o caminho para a aproximação. E o momento de pensar a fugacidade se torna eterno. Deus, como fui feliz. Não me façais lembrar que hei de não ser. Não quero saber. Afastai de mim a dúvida. Que eu seja inteira e eterna a beleza da eletricidade ao vento. Não importa o que se segue. Porque eu sei: oh deus, como fui feliz. Como tive o que bem quis. Como abri as mãos e senti jorrar ao mundo o que me continha. Estou me gastando e nada perco: abro a mão e é com mansidade de bicho que sinto meus limites se expandindo. Estou inesgotável e ilimitada de paixão. Fluidez furada, peneira em oceano, assalto pela correnteza. Palavra nenhuma vale isso. Se eu me esquecer, oh deus: fazei-me lembrar. Um dia, dei o vazio-pleno como bem quis, para sentir nas mãos o valor além da minha pobre palavra. Um dia, como quis que tu sentisses também. Palavra nenhuma valeria isso. Eis-me aqui, entre o antes e o depois: timidamente, desnodada, desnudada. Sem cadência, vou dizendo logo que és tudo. Porque a vida é quase nada. (Sim.)

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Indulgência

"O prazer é abrir as mãos e deixar escorrer sem avareza o vazio-pleno que se estava encarniçadamente prendendo. E de súbito o sobressalto: ah, abri as mãos e o coração, e não estou perdendo nada! E o susto: acorde, pois há o perigo do coração estar livre! Até que se percebe que nesse espraiar-se está o prazer muito perigoso de ser. Mas vem uma segurança estranha: sempre ter-se-á o que gastar. Não ter pois avareza com este vazio-pleno: gastá-lo." Clarice Lispector

Querido,
Estou em comunhão tão profunda com aquilo que não é em mim, que não me posso durar em minha companhia; aborreço-me, contorço-me na cama, posição de impacto, indefensa em bola, mergulhada na penumbra abafada e desabitada do quarto. Alguma criatura vem crescendo dentro de mim: sinto-a estirar as garras em meu estô-âmago, tecendo raízes, agravando um peso interior, estreitando as aflições. Estou comotiva, comissiva, rente aos fatos, lente de aumento, câmera lenta, lacrimejando em conversas diurnas, olhares fulminantes, dobrando todos meus ângulos para encaixar-me no menor perímetro de mim, torta e fechada, incontentável: porque no que me deixem só e eu me cubra de escuro, escura me faço, preenchendo-me, e transbordando-me, e as frestas são os olhos. Duas vitrines, dois espelhos através dos quais sinto despejar todo o visto, sentido, vivido, olhos que são testemunhas da falha razão que me custa manter, tênue equilíbrio perpétuo.
O real, o possível, o excessivamente sentido que beira o imaginado, o sonho, o duro e o delicado, o preterido, o memoriado, a minha humanidade noturna e lacrimejante. Estou existindo em lágrima. Que eu nunca devolva a ninguém. Pois dela o sal me vem à língua e eu levo abaixo pela garganta ao monstro que me habita. Será que se há de satisfazer com este algo de amargura exaustivamente exasperada? Estou na mais aguda solidão que eu poderia oferecer. E meu intento de dá-la a ti é o presente maior que faço por amor. Pois a solidão é a coisa mais última que se pode dar de si. Sozinha, escura, lacrimejante, estou como deve ser para que te diga. Enfim, dar-me. A mim? Ao escuro. Vale, porque não hás de saber. Talvez estejas ouvindo sons de onda: reais ou possíveis. Por detrás das cortinas de meus olhos, posso ver-te em enternecimento.
As distâncias me amansam mais e mais, em reflexo ao avesso. Sozinha, liberta dos jugos, livre de todo comprometimento, sei que não pertenço. A verdade me é uma sombra, espectro noturno de um nó que desce da garganta ao ventre: se o impasse é este. Depois da despedida, eu sigo sendo tua. Entre quatro paredes, é que não sei ser minha. Falta-me um outro alento. Que eu não me sufoque com o peso das escolhas. O real é existirmos em separado. Em ausência, eu mais tua do que fora quando estavas. Em presença, dissociada perpetuamente de mim. O duro e delicado de não poder ser conhecida. Não há jeito. Tão logo serás o limite da distância entre dois corpos. Em minha noite, penso-te como se foras dia. Quase irreal a mim. Em minha noite, a confissão: dói-me o vínculo esmorecido; doem-me as distâncias; sou toda o ato e a ferrugem. Anseio a presença: nela, esqueço-me de que sempre terás partido, em qualquer canto, pranto, hipótese e lembrança; mais grave ainda: adio o medo sempre iminente de que eu mesma precise partir, e seguir partindo, eternamente. Eternos fins que impliquem eternos recomeços.

Sou também navegante

Com a mesma incautela em que chegara, há de ir-se. E o som do Homem que vai embora: é onda batendo na pedra. Com a naturalidade inintencional do movimento de águas do mar. Vai lua, cresce, incha, explode, míngua, esvai, resplandece, e flui nos altos escuros do céu, governando humores os mais misteriosos, sopros de interferência, ventos, uivos, cantos de sereia, e histórias de navegações que não me chegam à ilha. Ilha de mata pouco habitada; não virgem, mas toda fechada, densa nos limites, raízes bravas desmoronando delicadamente pelas areias, ar terroso, e flores no coração, frutos nas copas, e lá de cima a vista imprecavida de um céu quase moroso  ah, de tão límpido. Contemplando animosamente o caudaloso das ondas do mar  se à espera, se aos cálculos, se a enamorar-se sem saída, cobiçando o sal e as lonjuras, o fundo do oceano, a vida escura de caverna, os raios de sol que entrassem, ou mais: luz da própria lua, que se fizesse em nuances pelos tons gradativos de azul. E a sensatez parece pouco desejável. Talvez porque nunca houvesse feito realmente uma Mulher intensamente feliz. Minha ordem autônoma nunca se baseara na sensatez, mas numa espécie de loucura de isolamento dissociativo. Separar-se de tudo, ou dissolver-se em tudo, em desespero irracional, a fim de obliterar o próprio senso, na esperança de que, com ele, se expurgasse o jugo da emoção. De dócil que fosse, flor, mulher, terra no fundo do mar, feixe de luz da lua, havia que se manter de doses periódicas de emocionalidade. E ocasionais melodramas, água salgada transbordando pelos espelhos da alma, secando na pele do rosto, rosto macio de dois olhos duros que viam tudo e já sabiam não poder da vista fazer nada. O que criar das chamas que me entravam naquele momento pelas retinas? Bem sei que tenho a arte de ser cinzas. Lava, pó, nada. O que sobrou de um desejo  arrasta sempre os vestígios de naufrágio para a costa da minha ilha. Todas as manhãs, lá vagueio e vejo: vazios e promessas estiradas no sol. Todas as noites, embebida de luares, intento retirar-me  mas repousa na consciência a veia fantasma. São as perdas que me trouxe a correnteza. E as correntes oceânicas que não me calha combater. E os trajetos lunares, a dança dos planetas, e o reino profundo dos mares que me escapam a todo controle, voz, compreensão. Ilhada, cobiçando fundo, sei-me a imagem inteira de um náufrago, estirada em vislumbres e aterros da ruína, condenada que sinto, sem me poder situar; mas algo de resignada, em verdade esperançosa, de venturas passadas e vindouras, sonhos de horizonte que não se findem no olhar. O som de quem fica. Fica, não eternamente, que nem eu mesma sou eterna, e nada existe neste conto fora dos limites de mim. O mundo é esgotável, e o tempo é escárnio. Não espero, ao fim e ao cabo, nada, nem ninguém. Mas sigo mirando este horizonte como se implorasse: basta, só permaneça. Que as coisas duvidosas me exaurem já, as coisas caudalosas, as coisas efêmeras porque de um movimento constante incombatível, as coisas mesmas que me alimentam  porque é toda a regra do mundo: são as que me tiram toda a avidez. Viver me mata! O mundo deve ter sua maneira natural de fazer seus mortos e vencidos. E me ousariam falar em sensatez? Pois choro o mar inteiro que me revolve, em náuseas de coragem, persistência inata, força bruta que me imobiliza por dentro, recuos, receios, nós, velas que me alcem a destinos mais límpidos. O tempo presente ignora horizontes. A hora seguinte me trai com o peso de ontem, anteontem, luas e anos passados, a vida passada que eu vira escorrer por entre os dedos da mão aberta, aberta de marcas a fogo. E quem me vê, como vê tantas, como vê qualquer coisa, como passa indiferente, incontentável, como viaja feito tempo, como poderia me entender? Ninguém; pois todos passam, passam e ficam, e já não fica nada? Como apartar as frações da vida, as porções de água do mar? Coisa una que não se divide, mas semovente, jamais se mantém em única ordem: fluxo eterno e constante de um inacabado pleno de partes. E os papéis todos de quem me passa e enxerga se camuflam e imiscuem no meu próprio olhar sobre mim. Já o mundo assimila essas cores e eu me encontro solta no tudo-e-nada do mar. Como eu sei, aguda, de tudo que se vai! Como eu sei, pungentemente mais, de tudo que fica...

sábado, 5 de janeiro de 2013

Inquieta alegria

"De novo estou de amor alegre. O que és eu respiro depressa sorvendo teu halo de maravilha antes que se finde no evaporado do ar. Minha fresca vontade de viver-me e de viver-te é a tessitura mesma da vida? A natureza dos seres e das coisas - é Deus? Talvez então se eu pedir muito à natureza, eu paro de morrer? Posso violentar a morte e abrir-lhe uma fresta para a vida? Corto a dor do que te escrevo e dou-te a minha inquieta alegria." Clarice Lispector

Já não sinto o peso do tempo. Se o tempo passa e me tomam as levezas? E já não posso arrastar dores? E o peito abre todo pedindo em cheio o golpe que me derrube ao chão? Eu quero a queda, demorada e inteira sentirei a glória de cair. Porque o arrebatamento é viver. E as sensações me são combustível de vida. E tudo que me move é fora de controle. Quero alçar vôo alto. Planícies, profundezas, penhascos, picos, depressões, abismos, planaltos, curvas e terra, toda a terra que alcança o olhar. Porque vejo um frescor: a aridez de um reflexo. Se tu falares e nunca me soares em estranheza, e me afastares apenas quando ressoar o ouvido de outras, além de mim... Sei que, ao falares, é mais para consolo meu que teu... Preciso falar do que me falta, para não me concentrar no que me dás. Porque corro o risco de amar... Pedaços de exultação que hás de ignorar; pedaços de aflição que não poderás contornar; pedaços de guerra que nunca quis desencadear; sou a paz inteira, e se escrevo é porque sei que estou ao lado teu, não contra ti. Quando hás de ver?

Agora já escrevo com medo. O que me sobra de viver não cabe em palavra alguma. O que eu disser será pausado e irremediável como bater teclas numa antiga máquina. Agora escrevo trêmula da tinta dos efeitos, um receio todo novo de corpo e alma, que me encara em brancura, acusando-me, no ímpeto de escurecer. Mas deito em sonhos de clareza. Ondas por todos os lados. O que haveria eu de negar-te? Como pediria eu de ti qualquer coisa que não me desses já? Peço de ti o grito, para que eu nunca te doa assim. Docilidades, amor. Como não ser feita delas? O medo já não é só meu. Para ser feliz, é preciso permitir-se. Deixa-me entrar, que eu encontro o caminho pelo breu. E, no que ele me envolver, farei-me luz. Escrevo, delirante, febril, um algo tão lúcido, morno, em voz compassada, que em nada te farias mover-te. Ao findares de ler-me, esquece-te de mim. Porque eu continuarei a existir-te.

Ainda que o mais importante fique sempre por dizer. As palavras não me chegam, são aquém do que sou, e teimo com elas por não saber outra forma de respirar. Como tu, que, por transbordar o viver, não chega à flor das minhas palavras. Embora me dês um aroma de vida e ser, que, de tão grave, amplo, indomável, sai-me pelos dedos. Aqui é a meta-vida. Aqui, dialogo com a percuciência dos teus silêncios. Percebe que não é um apelo à fala. É qualquer forma (falha?) de sintonização. Estiro-me, canto-te esta ode, fervendo sangue de poeta: é que tenho febre de extremos. Ardo nas ausências. E nas presenças? Bem já vês o que sou. Também porque nunca intentara escondê-lo. Flor aberta.