Este é o meu caminho, o meu vão,
a minha saga, o meu destino. Estou atada a ele, nele caminho sem traçar a rota,
sem prever os passos (mas reprimindo alguma tendência íntima a fazê-lo), à
contemplação do que me rodeia, sempre a mesma paisagem opaca de caminho
conhecido, a mesma previsibilidade sem emoção. E a emoção, no entanto, invade e
conquista lugar nos enleios da rotina, vinda de um instinto interno que entra
em conflito com a vista exterior. Eu tenho emoção legítima ao caminhar
indistinta e resignada em meu destino. Um céu quem sabe emocione, mas só quando
vem de dentro. Eu sou impenetrável em meu caminho e nada me desvia. Eu quase
lamento que esteja sempre no caminho, pobre de exultação, mas logo compreendo
que é vitória eu conquistar a permanência irredutível no caminho, qualquer que
seja. O caminho é esta cidade, esta biblioteca, este apartamento; e ao meu
alcance nada tenho que me torne passível de contornar a minha localização,
geográfica, social, emocional inclusive. Eu sou alguém que caminha inexpressiva
em direção a algum lugar com qualquer objetivo pré-determinado (in)consciente. Eu
sou alguém que, na noite, se põe a dormir vaga e desordenada e, à luz do
seguinte dia, acorda igualmente vaga e desordenada, com qualquer objetivo
pré-determinado (e igualmente inútil) que se reconheça. Eu sou a lentidão da
ausência de ordem. Eu sou a claridade que me desafia os olhos e os espíritos ao
olhar matinal através da janela, aquele calor de sociedade respirando e coisa
acontecendo sem que eu tenha consciência, já que a realidade me escapa da
percepção. O máximo que exito captar é a traição doce e bem-vinda da promessa
do dia, no que ele se põe a esvair-se, abandonando-me à minha sorte alienada, absorvido
no adormecer do sol, o despertar do frescor jovem e ainda maduro do ar noturno,
o advento do fim de uma tortura sutil, que em verdade é bênção instaurada pela advinda
comunhão de cores, e é beleza extraordinária, uma energia que me oferece a mão
e me ergue da fatiga autônoma da luz diurna. Redenção daquela indisposição que
me possui enquanto houver no ar o domínio exigente da vibração do dia quando
oposto à noite, a noite é minha senhora sedutora. E, apesar disso, a noite me
lembra do que é restrito e possível de se sonhar, sonhar apenas, rumos aventurosos
de juventude noturna que me escapam à instanciação, liberdades que me
transbordem a pessoa, entregas que eu não tenho. E, apesar de certo (mas o que
é a certeza?), o meu caminho é apenas suponível. Nada vibra em mim. Não é pela
idéia de finitude que me agrada a noite mais que o dia, e sim por sua promessa
de indulgência um tanto libertadora, que tanto mais apetece, mesmo porque, a
meus olhos, a finitude do dia é aguda tanto quanto, e tanto menos satisfatória.
Não sei bem explicar o que me dá a noite, posto que ela crave um pouco mais
fundo na minha pele a realidade da minha solidão; talvez seja um escuro que me
enclausure de tal forma a esconder-me, como que me protegendo do escrutínio da
paisagem diurna de convívio e atividade humana; talvez seja a promessa de poder
em breve entregar-me a meus ímpetos sonhadores, agora em face de um sono real,
que deixe para a manhã seguinte a responsabilidade de medir minhas gravidades e
meus perigos, face à violência da clareza e da realidade do dia. A urgência interna por me gastar na
omissão da entrega ao nada, porque é a única coisa que me chama, a única coisa que me pede que me
entregue, trazendo implicações que se limitam a mim mesma, conseqüências para minha própria e única especulação, sem grandes exposições e aberturas; então me fecho em mim. Nada mais
me necessita, e os dias seguem à parte. (Nem meus dias parecem ser meus.) Como se eu perdesse o controle somente em mim, porque consigo assim uma falta de controle
controlável. Que no dia é uma ambição mais tímida, na verdade intimidada pelo
choque com as verdades dos outros, um risco subjacente de rejeição, um susto
com os próprios pensamentos, um embaraço com as próprias vontades irracionais. E porque o nada parece valer a pena. O meu nada,
no escuro, vale tudo.
segunda-feira, 30 de abril de 2012
quinta-feira, 26 de abril de 2012
Contagioso
Caminhando desavisada com esses
meus braços abertos demais, caminhando depressa demais, deparando-me com as
ironias do acaso que eu não deveria perceber, olhando tudo e respondendo às
perguntas, intuitivamente tentando fazê-las, atentamente guardando demais as
respostas, e perdendo as palavras, encontrando o perigo nos olhares, tropeçando
e errando o caminho também, demorando-me nas gentilezas que não deveriam me
incomodar. Parece uma história de falhas. Eu sou uma história de rejeição. Porque eu
preciso rejeitar meu ímpeto na tentativa de encontrar o bom senso em algum
lugar dessa rotina de impressionabilidade. Fácil, suscetível. Preciso rejeitar
essa natureza que não me traz frutos. Preciso evitar encontrar-me naquele tipo
abominável e impuro de posição, aquela posição cativa, aquele sinal de perigo.
Sujeitar-se e rejeitar-se andam lado a lado: porque eu temo estar sujeita,
então rejeito aquilo que me diz a intuição sobre sentir; porque se sinto e
acato, serei sujeitada, logo rejeitada e obrigada a rejeitar o que fizera. Sobreviver
é matar-se. Não há solução aparente para meu problema de ser. O não ser é fazer
a rejeição primeira e não sentir. Repita comigo: é só um homem. Só uma pessoa
cheia de imperfeições, como qualquer outra. Outras já foram por ele envolvidas,
e outras mais serão. (Quem entenderia é quem não deve saber.) Nada acontecerá,
porque nada acontece. O sentimento existe, inventado, e não encontra
correspondência no mundo dos fatos. Seu significado não importa porque só
existe em mim. Compartilhá-lo é instanciar sua realidade, e admitir a cadeia de
falhas que invariavelmente vem a seguir. Rejeitaria, talvez, ser, só para que
pudesse, talvez, ser alguém que importasse a ele. E eu vi acontecer em silêncio
desesperado, os detalhes todos se construindo feito pecado no interior da minha
alma, ameaçando revelar-se por algum sentido contagiado, o impuro que me
percorre em pensamentos perigosos. Não o quero desejar. Mal suporto o saber
tê-lo deixado ganhar tamanha importância de pensamento que tenha conquistado
este lugar muito concreto no meu mundo de palavras. Não é que eu não entenda o
que ela viu. É porque entendo. Mais até, vejo o mesmo. Não suporto o quanto sei
que não há nada, não suporto o quanto gostaria que houvesse. Foi um acidente.
Afundei nas profundezas de meus sentidos falhos, pouco fiáveis, meus ímpetos
infundados, minha ameaça a mim mesma. A marca na pele me grita: não tenha
grandes idéias. Pois sim. Mais um dia de rejeições.
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