segunda-feira, 30 de abril de 2012

Caminho ou noite

Este é o meu caminho, o meu vão, a minha saga, o meu destino. Estou atada a ele, nele caminho sem traçar a rota, sem prever os passos (mas reprimindo alguma tendência íntima a fazê-lo), à contemplação do que me rodeia, sempre a mesma paisagem opaca de caminho conhecido, a mesma previsibilidade sem emoção. E a emoção, no entanto, invade e conquista lugar nos enleios da rotina, vinda de um instinto interno que entra em conflito com a vista exterior. Eu tenho emoção legítima ao caminhar indistinta e resignada em meu destino. Um céu quem sabe emocione, mas só quando vem de dentro. Eu sou impenetrável em meu caminho e nada me desvia. Eu quase lamento que esteja sempre no caminho, pobre de exultação, mas logo compreendo que é vitória eu conquistar a permanência irredutível no caminho, qualquer que seja. O caminho é esta cidade, esta biblioteca, este apartamento; e ao meu alcance nada tenho que me torne passível de contornar a minha localização, geográfica, social, emocional inclusive. Eu sou alguém que caminha inexpressiva em direção a algum lugar com qualquer objetivo pré-determinado (in)consciente. Eu sou alguém que, na noite, se põe a dormir vaga e desordenada e, à luz do seguinte dia, acorda igualmente vaga e desordenada, com qualquer objetivo pré-determinado (e igualmente inútil) que se reconheça. Eu sou a lentidão da ausência de ordem. Eu sou a claridade que me desafia os olhos e os espíritos ao olhar matinal através da janela, aquele calor de sociedade respirando e coisa acontecendo sem que eu tenha consciência, já que a realidade me escapa da percepção. O máximo que exito captar é a traição doce e bem-vinda da promessa do dia, no que ele se põe a esvair-se, abandonando-me à minha sorte alienada, absorvido no adormecer do sol, o despertar do frescor jovem e ainda maduro do ar noturno, o advento do fim de uma tortura sutil, que em verdade é bênção instaurada pela advinda comunhão de cores, e é beleza extraordinária, uma energia que me oferece a mão e me ergue da fatiga autônoma da luz diurna. Redenção daquela indisposição que me possui enquanto houver no ar o domínio exigente da vibração do dia quando oposto à noite, a noite é minha senhora sedutora. E, apesar disso, a noite me lembra do que é restrito e possível de se sonhar, sonhar apenas, rumos aventurosos de juventude noturna que me escapam à instanciação, liberdades que me transbordem a pessoa, entregas que eu não tenho. E, apesar de certo (mas o que é a certeza?), o meu caminho é apenas suponível. Nada vibra em mim. Não é pela idéia de finitude que me agrada a noite mais que o dia, e sim por sua promessa de indulgência um tanto libertadora, que tanto mais apetece, mesmo porque, a meus olhos, a finitude do dia é aguda tanto quanto, e tanto menos satisfatória. Não sei bem explicar o que me dá a noite, posto que ela crave um pouco mais fundo na minha pele a realidade da minha solidão; talvez seja um escuro que me enclausure de tal forma a esconder-me, como que me protegendo do escrutínio da paisagem diurna de convívio e atividade humana; talvez seja a promessa de poder em breve entregar-me a meus ímpetos sonhadores, agora em face de um sono real, que deixe para a manhã seguinte a responsabilidade de medir minhas gravidades e meus perigos, face à violência da clareza e da realidade do dia. A urgência interna por me gastar na omissão da entrega ao nada, porque é a única coisa que me chama, a única coisa que me pede que me entregue, trazendo implicações que se limitam a mim mesma, conseqüências para minha própria e única especulação, sem grandes exposições e aberturas; então me fecho em mim. Nada mais me necessita, e os dias seguem à parte. (Nem meus dias parecem ser meus.) Como se eu perdesse o controle somente em mim, porque consigo assim uma falta de controle controlável. Que no dia é uma ambição mais tímida, na verdade intimidada pelo choque com as verdades dos outros, um risco subjacente de rejeição, um susto com os próprios pensamentos, um embaraço com as próprias vontades irracionais. E porque o nada parece valer a pena. O meu nada, no escuro, vale tudo.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Contagioso

Caminhando desavisada com esses meus braços abertos demais, caminhando depressa demais, deparando-me com as ironias do acaso que eu não deveria perceber, olhando tudo e respondendo às perguntas, intuitivamente tentando fazê-las, atentamente guardando demais as respostas, e perdendo as palavras, encontrando o perigo nos olhares, tropeçando e errando o caminho também, demorando-me nas gentilezas que não deveriam me incomodar. Parece uma história de falhas. Eu sou uma história de rejeição. Porque eu preciso rejeitar meu ímpeto na tentativa de encontrar o bom senso em algum lugar dessa rotina de impressionabilidade. Fácil, suscetível. Preciso rejeitar essa natureza que não me traz frutos. Preciso evitar encontrar-me naquele tipo abominável e impuro de posição, aquela posição cativa, aquele sinal de perigo. Sujeitar-se e rejeitar-se andam lado a lado: porque eu temo estar sujeita, então rejeito aquilo que me diz a intuição sobre sentir; porque se sinto e acato, serei sujeitada, logo rejeitada e obrigada a rejeitar o que fizera. Sobreviver é matar-se. Não há solução aparente para meu problema de ser. O não ser é fazer a rejeição primeira e não sentir. Repita comigo: é só um homem. Só uma pessoa cheia de imperfeições, como qualquer outra. Outras já foram por ele envolvidas, e outras mais serão. (Quem entenderia é quem não deve saber.) Nada acontecerá, porque nada acontece. O sentimento existe, inventado, e não encontra correspondência no mundo dos fatos. Seu significado não importa porque só existe em mim. Compartilhá-lo é instanciar sua realidade, e admitir a cadeia de falhas que invariavelmente vem a seguir. Rejeitaria, talvez, ser, só para que pudesse, talvez, ser alguém que importasse a ele. E eu vi acontecer em silêncio desesperado, os detalhes todos se construindo feito pecado no interior da minha alma, ameaçando revelar-se por algum sentido contagiado, o impuro que me percorre em pensamentos perigosos. Não o quero desejar. Mal suporto o saber tê-lo deixado ganhar tamanha importância de pensamento que tenha conquistado este lugar muito concreto no meu mundo de palavras. Não é que eu não entenda o que ela viu. É porque entendo. Mais até, vejo o mesmo. Não suporto o quanto sei que não há nada, não suporto o quanto gostaria que houvesse. Foi um acidente. Afundei nas profundezas de meus sentidos falhos, pouco fiáveis, meus ímpetos infundados, minha ameaça a mim mesma. A marca na pele me grita: não tenha grandes idéias. Pois sim. Mais um dia de rejeições.