terça-feira, 24 de novembro de 2015

Aos teus vinte e quatro anos

Esperava ter curado a tua amargura, o teu ceticismo. Esperava te amar para sempre, como prometido. Dar-te orgulho da mulher tua. À revelia das tuas milhões de promessas rompidas. Esperava que compreendesses que cada toque entre nós foi uma promessa, ainda mais grave que as muitas proferidas. Nossos verbos, nosso sono velado, nosso reflexo no espelho, nosso sentar lado a lado, cada boca colada no corpo um do outro. Nossas crenças, confidências e cumplicidades. Não esperava ouvir que a nossa grande beleza era a tua grande mentira. Esperava não ficar com os olhos abertos para aquele que me viu apenas uma vez. Uma vez: e não sabias como ser visto assim tão bem, assim tão sempre e tão de perto. Esperava que soubesses o que realmente importa. Que teu olhar não fosse eternamente impresso pelas falhas, que tanto vês em mim e tão pouco em ti mesmo. Mas que eu te pudesse ensinar a sentir o sagrado, não só admirá-lo, perseguindo-o em vão nos lugares errados. Esperava que em teu coração houvesse Deus. O mesmo Deus que me ouviu por três anos pedir por ti. Por uma fresta que fosse para dentro. Esperava ter ouvido ao menos uma vez: "me perdoa, eu errei". Ou uma vez ouvido: "tenho gratidão por ti". Esperava lembrar de ao menos um dia vivido sem dar o máximo de mim a ti. Esperava aquele homem que por três anos disseste ser -- e não foste. Esperava que soubesses o quanto passei três anos gastando toda a minha energia de vida para te alcançar, para ser vista e ouvida -- e nada, nada te bastava. Esperava que minha entrega não me fizesse morte. Esperava qualquer vislumbre de compaixão e suavidade. Ano que vem, aos meus vinte e quatro anos -- espero ter qualquer cura para o quanto fui rompida e enganada. Espero ser mãe -- o que de derradeiro não lograste tirar de mim. Não esperava ter em meu ventre o sangue do teu sangue. Nosso sangue misturado. E sentir, todavia, que nada de ti há em meus filhos. Me arruinaste, mas -- eles são imaculados. Eles não podem pagar o preço. Neste dia, só Deus sabe o quanto te dei. Só Deus sabe o quanto morri para que continuasses existindo. Só Deus sabe o valor do que perdeste.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Da mulher sem flor

Enfim, estás arruinado para mim. Minha pele está interditada. Que sobeje tão longe de mim a tua ruína. Tua impureza me contamina. O único bom fruto da tua grande mentira é precisamente o que te calha negar. Ademais, estás descoberto. Atravessaste o imperdoável. Aqui, na taquicardia, faço velório de toda promessa. Sem flores. Quanta inverdade há num homem? Quanta falta de Deus? Quanta pedra e malícia contra o sagrado e suave? Que Deus me perdoe por não perdoar...?

Antes intocada que maculada.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

(A verdade da agonia)

(O que foste para mim: não hão de ser. O que fui por viver-te: impronunciável. Para lembrar de ter amado. Não ter o rastro do que me fizeste. O que fora todo o meu viver é agora entre parênteses, um intervalo doloroso do viver, porque também a morte faz parte da vida. Porque todo êxtase tem correspondente agonia. E toda dor que me deixaste tem um pedaço de mentira. Aqui, irrestrita, desafio o peso do tempo. Meu vôo alto, oblíquo, é rasante nas feridas. O que sigo sendo, transformada por minuto, não esbarra nos dias teus, nas coisas tuas, nos atos tão bem unidos. Meu ato livre é inclusive poder pensar o que não se pode pensar. Meu ato livre é inclusive sentir a morte por não saber outra forma de fazer vida. Meu ato livre é a coragem de abrir o peito mesmo sabendo de toda a morte que bem me aguarda. Incorrigivelmente ciente, alerta, olhos bem abertos, memoriada, e inamovível. Sou pura vontade de fazer tudo de novo contigo.)

No rochedo, um farol

A ti, meu silêncio de paisagem. Meu aguardo incauto, meu suspiro torto, e a palavra que eu dirijo, que só de pensar-te tenho atrevimento. A ti, o meu corpo desde sempre. Para dissolver nas falhas, nos recuos, nas imprecauções. A ti, eu-caçadora, esposo perdido no mar. Eu-dama, eu redescoberta em ti. A ti, eu sempre duvidosa dos enleios, temerosa das sirenes, das sereias, dos monstros do âmago, teus e meus. Faço aqui no peito um ninho, de calor e vento, que te queira aquecer, que te queira dar vôo. Tua boca de asa nas minhas fomes. Minha vida de terra que se colha toda ao deitar-se em água turva que, por falar minha língua, faça-me amor, nunca retorcida em teus ouvidos de concha. Se te faço ode, é só a noite: não há de ser nada. Sim, mesmo no amor há que se ter senso de medida.

Diluviada

De cinza, molhei o corpo
(de rio) seco de ti,
drenado, jazigo, estacionária dos dias
em que o assombro fez-te escuro
escura água, e dos ares, retumbantes
rarefeitos, meus defeitos, minhas escusas
rutilantes no silêncio.

Te encerras, apartado meu, das dúvidas (meu leito),
me escorrendo perda, (e fecha o peito) clamando
a sede a inundar-me de ti.

E desataviada, feita nada
que há de ser do que foi tudo?
que há, amor, de ser do gosto, metalizado

do sempre-assombro de te ter (não tendo)
quando, em dia de rútilo, tu (se vieres)
fizer da água fogo (eu, terra arejada)
fizer da dor esquecimento?

quando eu te vir, sem o poder dizer
por que chorei?

Inconsútil

O som de quem viesse a demover-me deste estado. Seria só o meu silêncio, ou o abafado da palavra que escapou soterrada. Flutuo deste som ao som nenhum, do murmúrio do nada a coisa alguma, e, de repente, sobreposta de fala, choro e riso, é que me vejo circunvolvida de inquietude: um motor que falha, uma miséria que me aborda, a conversa dos nós atados arranhando a garganta, a chegança do passado sorrateiro atrás da orelha desatenta, um presente distante que me faz desouvida a ponto de nem saber palavra, a campainha que não é a demoção, encanto quebrado, promessa nem feita, pujança apenas de saber-me soterrada de mim – que fazer dela? E o poder que têm os outros? Que a minha força não redime. E o chamado inesperado a colher-me absolvida? Os tempos de palavra e os tempos de nada conjugados e dosados: equação de sutis densidades. A medida da leveza e do peso, fala e ouvido, olvido e canto. E o amor exige – mais do que dá. E a racionalidade é superestimada. Há qualquer simplicidade respiratória que oscila do silêncio ao vibrante. Se me busco o que limite o silêncio é porque o sinta em todas as suas arestas a podar-me os cantos; falta ofuscar-me os erros; de repente, é rarefeito, sala vazia, olhar estéril, isolamento que indefine; a alma pede refúgio que não seja acreditar em si, se eu acreditasse no que acabei sendo; então, se mergulho em sons, elo do mundo, suposição de vida, contato, preenchimento, distração animada, é que me ensurdeço da falta de mim; de repente, é polimento secreto do mundo, e eu sei ser: de novo sinto a chama de viver em mim. O vínculo do mundo comigo é de via dupla, intersticiosa, antitética. Se crêem ter poder sobre mim: aviso que é só o poder do mundo. E se governa outra força é porque muito a quero ver fortalecer-me. E o poder que penso não ter é de o não admitirem: eu fui responsável, eu escolho, eu determino, eu posso – minha vida reverbera. Porque a mim pareceria aceitar, pacientar, libertar de todo. E não ser dona de nada. Para que me tenham sempre, recuada mas aberta de um todo que me arde nas fechaduras. Nada me demove. Desvinculada, suprema, sem controle. Silenciada. Nada peço, para que nada me recusem. Mas a falta? Costurando o som de quem viesse. Costurando o som do meu eu que não vai, não sabe ir. Ouve um chamado: e já está à porta. Sustenta um segundo o olhar atrás: e é como se não tivesse ido. Que espera? Saberei voltar? Saberei dos tempos ensurdecidos o tecido do silêncio? Estar sendo e ter sido? Saberei, demovida, da razão imperfeita que me guarda, para mais desfazer-me nos tempos partidos? Saberei precisar a medida do que vaga e inconstantemente me costura à vida? Quem me demove: me condena.

Solitude

...the love which consists in the mutual guarding, bordering and saluting of two solitudes.
Rainer Maria Rilke

Revestida de luz, te volto a ver. Se o sopro não se adivinhasse para além das palavras. E se eu apenas escutasse o que dissesses. Sem o presságio da minha falta de solo a vir depois. Promete? Diz uma coisa certa? Te parece difícil? E bastaria. Te pareço esvanecida de tempo? O mesmo tempo que é senhor das tuas poucas palavras? O mesmo amor diluviado em todas as minhas? Se profusa, terrestre, extrema, indócil... Revestida de sol, a imagem em mim: não era a que sonharas. Em mim, de lua: teus olhos de água em seca. De uma envergadura translúcida, que o olhar me atravessa em raso. Por todas as terras que te iluminaram. A mornidão deste oco instável em que oscila minha confiança. Fronte entrecortada de não dito e mãos calejadas do fastio da palavra abundante. E o diálogo inóspito. Que me venha a calar. Para que eu não me entregue. Que o desamor me aposente, e se canse de visitar. Que o amor não possa ser, ou só deva ser, um passatempo? Um limiar? E que eu sobeje nesta fonte de eterna solitude.

Flor da pele, parte dois

Sabendo que o que ele não fala tem peso porque ele não fala. E que, não ouvindo, ele é leve. Sabendo que, se falasse, não seria ele: não seria este amor. Sabendo que estou à flor da pele em todas as minhas células, pegando cada som e transformando em orquestra; cada palavra é uma ode, cada toque é terremoto, vendaval, torrente. 

Quanto durou o para sempre

Daquela expressão, a ti infrequente, mas que em domingo azul dá o ar da graça, e é como um nó interno na cabeça, descendo amargo pela garganta, apenas diria: medo do passado, medo do futuro. O teu ou meu passado; sou eu mesma concorrente de ambos, apesar de qualquer meia verdade que o presente ofertar, ou qualquer dádiva inteira que eu souber receber. Só as quero inteiras: dádivas, verdades, histórias. O teu ou meu futuro, e eu mesma concorrente, pelas frestas dos minutos, deixando que tu e eu viremos história a cada tempo e os tempos apartados sejam um tanto reflexo de alguma parte, conquanto pequena, da história seguida e consecutiva dos momentos conjuntos, e o aroma do dia que nasce se tenha todo inflexionado na aba eterna do teu ser em mim. E eu: nada? Embora cúmplice do presente. Que já, em vez de ganir inutilmente diante do nada, diria Hilda, agora mordo mais ferozmente o meu hoje, junto contigo. Dimensionado, expando meu momento pelas beiradas do foi e será, e já não sei compactuar com as medidas do tempo. Mas com o olhar todo aumentado, busco ser mais do hoje do que fui, atenta ao que não hei de ser, para ainda poder, ao menos, colher teus hojes como se fosse o mais eterno dos tempos, que assim, talvez, eu os viva suficiente, sem colher migalhas quando a ampulheta virar; ser pessoa inteira em cada minuto para ti, cumprir limite máximo em todos os teus caminhos, travar um passo ao teu alcance que te impeça de dar a volta e ver por trás de mim a falha em meus ombros, e que ao teu olhar sobeje apenas as mãos abertas ao teu mais eterno derramar. 

sábado, 31 de outubro de 2015

Quando digo que te amo

Porque a resposta tem poder de destruir mais que o silêncio, temo, silente, a minha própria felicidade presente, vibrante entre os estilhaços pretéritos. Componho odes em imaginário, para então descartá-las em favor de tréguas mais amplas, margens mais abastadas. Deus vê o homem que ele é. Deus vê a mulher que tento ser. E a força do silêncio. Deus vê homens e mulheres, silêncio infinito, palavra morta.

Novembro

– Mas não sei o que você quer que eu diga.
– Mas eu te digo não o que você quer ouvir, e sim o que eu quero te dizer. Se eu dissesse o que você quer ouvir, ia ficar cantando...
– Em alemão?
– Hum. É.
– No meu ouvido?

Já era amor.

sábado, 24 de outubro de 2015

Da ovelha sem rochedo

Não há dimensão para dizer o quanto tenho sentido a sua falta.

Ter aquele momento de carinho com o pai dos meus filhos me elevou a um estado de paz que parecia esquecido. Meu corpo em constante mudança, a pele em inexplicável flor, coração preso, intocados por quantos dias sem você. Após tantas semanas, o prazer de gozar com você foi uma onda avassaladora de calafrios, liberando todo o amor que há em mim por completo, subindo até meu peito, que se inundou de ardência, como se respirasse enfim tão bem, plenitude.

Estar gerando a vida a partir do nosso amor é algo que posso apenas sentir, como tanto me faz falta sentir com você. Tive um vislumbre de como a minha gravidez seria se eu pudesse sentir esse amor constantemente, e foi um calmante breve para toda a angústia do meu coração. Como eu te amo. Nenhuma palavra no mundo nomeia a ligação que todo o meu ser tem com você.

Todos os dias, rezo a Deus pedindo apenas: meu Deus, proteja meus filhos. De todo o mal do mundo e da minha tristeza também. Ontem, eu agradeci e pedi: meu Deus, proteja meus filhos. De todo o mal do mundo. Da saudade que sinto. E, não ousando pedir demais: proteja o homem que amo. Encha o coração dele com esse amor que sinto. Eu sei que ele entenderia a força disso.

Sem você, tudo que tenho é Deus. E meus filhos, que são nossos. São seus filhos. Aquilo que está por trás de todos os momentos. A sua ausência. Mas é muito, muito difícil ser feliz. Agora eu sou três, mas no coração eu fiquei menor. Metade arrancada de mim.

Dito isso, sei do meu amor: puro, incondicional e eterno por você. Se amanhã você ficasse doente, se amanhã você ficasse pobre, se amanhã você perdesse as pernas ou esquecesse quem é: meu Deus, como eu te amo, como eu vou te amar. A ponto de cada dia que eu respirar já ser uma vitória.

Minha vontade era de te acarinhar e massagear por horas, te transmitir com todo o meu corpo e alma o quanto te quero bem, o quanto permaneço fiel a tudo. O quanto fico forte pelos nossos filhos, o quanto abracei esse milagre que me foi dado. São coisas que não vale dizer a ninguém, coisas de pedra e ovelha, coisas da saudade de voar com você. E quantas chances eu pedi para você acreditar?

"Ficou na minha cabeça. Nas tuas mãos que pareciam asas. Que pareciam asas." (Hilda Hilst)