Porque ninguém sabe o que
acontece quando se volta para casa, e tudo que se tem são os pensamentos. Um
dia é suficiente, mas uma série de dias que se estendem pela alma, todos
iguais, e aí sim, vê-se o advento de um novo vício. Que é um dia nessa vida que
parece suspensão de tempo, monopólio sentimental das classificações ordinais?
Que é uma data? Que é celebrar que eu tenha continuado a viver? E que me importa
que tenha sido o meu dia, e igual a todos os dias que eu sou, os dias que ele
escolhe ignorar? Porque é uma data, e eu sou simplória, eu sou até comum,
comum, comum, e foi a primeira vez, desde que o conheci, que vi passar esta
data sem que ele não me desse nada, nenhuma verdade ou mentira velada, nada.
Nada, nem o perdão legítimo pelo qual me vi definhar e quase abrir mão de ver
aniversários. Sim, seria mesmo curioso se ele celebrasse a minha vida, e não é
que eu esperasse receber qualquer coisa, mas justo o contrário: quisera não
estar sempre certa. Como eu gostaria de ser provada errada, de ver pelo menos
uma vez a história tomar um rumo desconhecido, de ser surpreendida. Enquanto
tragava, pensei na gravidade dos meus julgamentos, na simplicidade carregada dos
atos mais vulgares, na data dele que é próxima, na ironia dos acontecimentos, na
família que deixei de ter – "a gente só valoriza o que tem quando perde" –, no sonho
pacato que me deixou para trás, nos olhares fulminantes que me bombardeariam,
ah! se eu ousasse colocar os pensamentos em palavras, ah se eu fosse eu, porque
também não estou sendo, seja o que for – só sei que não estou sendo. Por
enquanto, é algum intervalo, sim, o mais doloroso até aqui, e há de durar
ainda, mas os pensamentos já quase não se tornam palavras, ficam à beira do
abismo e logo são intimidados pela promessa da dor consequente, e logo os
sentimentos nem se tornarão pensamentos – "a emocionalidade estupidifica". E eu
hei de respeitar sua certeza – sua vontade, majestade. De tanto respeitá-la,
hei de esquecer que tivera a minha. A única clareza é ele não querer nada de
mim. Foi só mais um dia para me lembrar, como se eu pudesse esquecer! Solto o ar, e ainda estou viva.
quarta-feira, 29 de agosto de 2012
terça-feira, 28 de agosto de 2012
Victoria
O que eu faria se não tivesse você? Conheci-te por tudo que nos une: uma história, uma música, uma
marca, uma palavra, um medo, uma coragem. E em quantos pedaços de mim fui te
achando. De repente, eras presença distinta. Amei-te por tudo que é comum, e
que não é pouco; nunca fora tanto. Continuo te amando por tudo que nos separa,
e onde começas e eu acabo é onde há o melhor de ti. Já o disse e o repito:
aquilo que te separa de mim é a tua melhor parte. Assim, onde és mais para mim
do que eu poderia ser, onde busco ser para ti o que te faltares, é bem aí que
nos complementamos. Dois todos
que se colidem harmoniosamente. Pensamos as mesmas coisas ao mesmo tempo: só não podemos fazer nada a respeito. Mas podemos. E faremos. Amo-te em sintonia, quando me
completas, e mais ainda quando me viras do avesso, quando me confrontas, quando
me acordas, porque é teu jeito de confrontar, é teu jeito de lutar, que eu amo
como toda parte de ti. Amo-te, com o maior dos respeitos humanos que já senti.
És do tamanho do meu amor agora, e eu te olho de igual para igual, mas com
adoração de seguidora. E eu te amo menos por seres eu do que pela bondade que é
a tua compreensão. Tudo que é nosso, eu amo, compartilhada, conhecida. Tudo que
é só seu, eu sigo amando também. Porque te conhecer não acaba, e não me deixas de impressionar nunca. E tudo que é só
meu, como ser tão piegas, é também aquilo que aceitas, e por tal te amo ainda
mais. E já sabes que isto é mesmo uma declaração de amor da mais despudorada
possível. Imerge tua alma em amor. Vou te encher da palavra amor até que
estejas farta dela, e já peças trégua de ser tão amada. Porque não aprecio gente que não aprecia. Bem, sinto-me apreciada. Olho para ti. Como explicar que
nunca ninguém foi tão incapaz de me decepcionar assim? Eu te vejo, uma figura
incompleta-infinita de amor-entendimento com ternura-escárnio e emoldurada por
todas as músicas que já ouvimos-vivemos. Sabe que somos amigos até a morte. A todo lado que olhares, estarei. Começas
a falar, e o meu mundo pára com toda a atenção mais sincera e devota para dar-te
os ares todos da minha ex-solidão. Quero beber do tanto que me encontro na tua
forma de ver o mundo, do tanto que aprendo de ti. Não, não estou sozinha. E não
terás como te livrar de mim. Vem, que o mundo há de ser nosso, e a espera é
grande para que eu possa vê-lo ao teu lado. Uma companhia que fala a minha
língua. Uma companhia da qual quero conhecer todos os verbos, e sons, e cores. Mata-me de novo com amor: será um dia glorioso. Fecho com mais esta cumplicidade, e vê só, nem de
longe a mais considerável, mas que beira a poesia. Se é válido dizer que nós temos um dia, certamente é este. E obrigada, porque tu me devolves a vida e nem imaginas o quanto. Afinal, sou antropóloga, e não escapo de acreditar na magia, e no cósmico que te trouxe aos meus dias todos.
segunda-feira, 27 de agosto de 2012
Estrutura
Mudei de idéia. Que fique o amor.
Mas que vá a culpa, o olhar que foge, meu ou de qualquer um, que vá a
necessidade insuperável de estar inebriada, o luto da perda que não se explica,
a esterilidade. Porque isso não pode ser eu. Não assim, compulsivamente,
destrutivamente. Que volte a placidez. Quero
a paz interior. Quero só olhares que se encontrem. Só muito amor. E os melhores conselhos são aqueles que não se
pedem. E as melhores confissões são aquelas que são pedidas.
Porque eu faço alguma coisa
incrível com o amor. Cada pouquinho, cada pedacinho que cada um me dá, é um
pouquinho de mim que eu consigo reconstruir, é um pouquinho que eu vou fazendo
em pilha, um sobre o outro, e recriando alguma sensação firme e protetora.
Resplandecida. Não sei muito bem ainda o que será da minha construção. Mas sou
grata a quem vem me conceder um pouco de sua verdade. Sou grata a quem vem
tentar colher um pouco da minha, sem recriminação, mas com bondade. São
presentes que eu aceito com os braços ah-tão-abertos. O que também facilita que
verdades me sejam roubadas. Bem, hora de pensar no que eu ainda tenho. E eu
tenho. Não com aquela febre de possessividade, mas com alguma segurança de
liberdade, ainda não plena. Eu tenho! Também porque eu não tenho, eu tenho. Não,
eu não vou converter amor em ódio para desintegrar a perda da base ainda pouco
sólida sobre a qual me reconstruo. Eu sou também a minha perda, e quem quiser colher-me
sabe que eu venho com a marca. Não vai ser nunca ódio, nunca iniquidade. Tenho
de aprender a me proteger do iníquo, mas nunca me virarei do avesso; não vou
abraçar minha antinomia. Que me parem de aconselhar a me trair. Há de ser amor
mesmo. E a perda há de se esvanecer por baixo do tanto de amor que eu hei de assentar. Ou se aprende a tê-la nos pés, mas que pelo menos ela não me conduza
aos caminhos escuros. Que só me lembre de por onde eu quero caminhar agora – e,
algum dia, adentrarei uma clareira. Aprende-se a ter a perda saindo às vezes
pelas mãos, mas que não contamine aquilo que eu tocar. E algum dia serei
tocada. Espero que por algum amor também. Porque bem sei que não me protejo
eficazmente da iniquidade alheia.
Acordo para a minha vida e é um
susto. Como sou misteriosa. Como
perpasso pelas sensações mais diversas, pelos estados de espírito mais
extremos, vou do claro ao escuro com uma simplicidade mortal, mas bem na
esquina do inócuo com a do nocivo, sou assim: a experiência profunda do
contraste. O tempo na minha vida é todo raso e profundo, porque eu atravessei tantas faces de mim mesma, retornando às pontas soltas e dando voltas em círculos, escapando às vezes do sentido, e vendo tudo sempre diferente só que da mesma forma. Vivi acreditando ferozmente em coisas diametralmente opostas, ao mesmo tempo. E o que recebo dos outros é ou todo
eu, ou nada eu, e tudo se mescla nas minhas cores e tons, e os sons são altos
acima do chão e eu percorro distâncias inimagináveis em uma fração de segundo.
Eu vivo os outros, para me dar um pouco a mim, e se eu conseguir me dar, ah, aí
eu vou ter na pele o significado das palavras, e então elas deixam de ser só
escritos para ser vivências, e assim eu posso construir alguma coisa. Sozinha,
não. Mas com o que eu faço por mim mesma
do que os outros me dão e do que posso dar-lhes. Então, obrigada àqueles que me
dão. Eu aprecio, eu aprecio!
(E por que eu me assusto? Porque
eu tenho algum ideal de pureza, algum ideal de constância, clareza, coerência,
disciplina – ? –, certeza, e tudo isso agora está me sendo uma afronta à minha
necessidade de libertação, meu estado de dúvida e desequilíbrio, meu flerte com a escuridão. Eu sei, porque já estive aqui antes; igual, mas diferente. Set my spirit
free!)
quinta-feira, 23 de agosto de 2012
Redenção
Cada vez mais eu tenho uma
certeza inconsolável de que eu venha a carregar eternamente a marca dos meus
erros. Como se tudo que eu tocasse virasse pedra, a pedra que me deixaram no
lugar de um coração. E não deverá ser tão mau, porque aprenderei a não chorar.
Quem sabe um dia eu acorde para descobrir que já não me importo. Que vá o amor,
que vá a tristeza, que vá até a saudade, mas que fique aqui o meu erro, que
fique aqui todo o arrependimento. Que fique, que fique, que fique. Que dure a
auto-piedade. Nada mais é prova do que existiu, e carregar a marca do que não
existiu me deixa agora sem identidade, sem realidade. Não sei outro jeito de
ver os fatos. Para mim, um confronto não resolvido é uma luta vencida por um
dos lados. Consigo conceber nós que se desfaçam, sem deixar pontas soltas por
aí, mas não é este o caso. Se um vence, outro é vencido. Ser a outra está me
consumindo até as pontas dos dedos. Que paz é essa, que não permite diálogo? E
o diálogo que eu precisava ter, e nunca pude, fui levada a impô-lo a quem quer
que me desse a palavra. A palavra maldita, que de tão não-ouvida já não se quer
proferir. Porque há quem ouça, mas quem é que entende? E quem é que resolve,
senão o vencedor? Na falta dele, só depende de mim? E que ilusão é esta? É como
ser a via única de um segredo. Parece até doença mental. Não consigo explicar
meu nó nem a mim mesma. Para mim, um conflito irresolúvel é aquele em que um
está certo, e outro errado. Estar errada e seguir errando me consome já a
sanidade. Porque é o outro lado que tem a razão, e a tem de forma absoluta, sem
qualquer esmola ao perdedor. Porque eu fiz tudo, tudo, tudo o que podia, e até
o que não podia, em nome da redenção. Negada, sem cerimônia. Na falta de outro,
fui obrigada a olhar para mim. E não há glória. Preciso gostar de mim. Não
precisa haver louvor, sabe. Não ainda. Não precisa haver orgulho. Todos os meus
pensamentos foram reduzidos a pó. Que eu gosto de jogar ao vento para ver como
é fácil me desfazer toda. Para ver como eu não existo. Eu não estou aqui. Isso
não está acontecendo. Estou cansada de saber de tudo. Preciso agir. Preciso
encontrar alguma forma de me perdoar.
Deslize afásico
Clarice, preciso de ajuda. Estou
com uma claustrofobia profunda do mundo lá fora. Não quero ser vista, estou com
pavor de responder uma pergunta, não confio mais em ninguém, escuto como se
falassem num outro nível, distante e indiferente. Parece que as palavras
resolveram me pregar uma peça, já que dependo tanto delas para sobreviver. Meu
único caminho rumo a qualquer clareza, que é sentir explicando, me é agora uma
trilha sombria e intrincada que eu atravesso aos tropeços, à procura vã de um
atalho que me salve. E nem adiantaria eu dar mão à escuridão. Quisera intuir a
direção a ser tomada, simplesmente, sem analisar, ou que ela me aparecesse como
em um milagre. Mas nunca foi assim, simples, para mim. Descaminhei-me
completamente. O tempo é uma companhia morosa e derrotada. Sou só presença,
corpo em movimento, rosto contraído, unhas roídas. Estou vazia. Não me ouço nas
palavras que digo, não me sei manifestar quando incorro em algum diálogo. Sou
toda atos histérico-libertadores. Café, cigarro, álcool? Estou dispersa. Estou
com pânico da mudança, e pânico da estagnação. Estou ineditamente sem palavras,
é o incomunicável do coração de uma mulher, estou maculada, não vejo o
princípio nem o fim de meus pensamentos, caí no meio deste trecho como quem
acorda assustada de um sonho sem poder recordá-lo com exatidão. Esbarro num
detalhe inominável e me vejo atada ainda às indagações mais infrutíferas, e
logo refugiada em mais um estado de embriaguez, muda, silenciada de dentro para
fora.
quarta-feira, 22 de agosto de 2012
Clarice me ajudando
Em busca do outro
Não é à toa que entendo os que buscam caminho. Como busquei arduamente o meu! E como hoje busco com sofreguidão e aspereza o meu melhor modo de ser, o meu atalho, já que não ouso mais falar em caminho. Eu que tinha querido O Caminho, com letra maiúscula, hoje me agarro ferozmente à procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas o atalho com sombras refrescantes e reflexo de luz entre as árvores, o atalho onde eu seja finalmente eu, isso não encontrei. Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.
A experiência maior
Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o âmago dos outros: e o âmago dos outros era eu.
Pertencer
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso. Quem sabe se comecei a escrever tão cedo na vida porque, escrevendo, pelo menos eu pertencia um pouco a mim mesma. O que é um fac-símile triste.
Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova da 'solidão de não pertencer' começou a me invadir como heras num muro. [...]
O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertencesse. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado com papel enfeitado de presente nas mãos – e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, então raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.
Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força – eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa. [...]
A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles d'água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho.
Em busca do prazer
E tanto sofrimento por estar, às vezes sem nem saber, à cata de prazeres. Não sei esperar que eles venham sozinhos. E é tão dramático: basta olhar numa boate à meia-luz os outros: a busca do prazer que não vem sozinho e de si mesmo. A busca do prazer me tem sido água ruim: colo a boca e sinto a bica enferrujada, escorrem dois pingos de água morna: é a água seca. Não, antes o sofrimento legítimo que o prazer forçado.
terça-feira, 21 de agosto de 2012
Loucura
Quem sou eu quando chego em casa
e olho através da janela que não fecha? Viva, respirante, no interior de uma
onda de tempo que arrasta as coisas todas para longe dele, e me faz a ilha que
ele me condenou a ser? E eu me deixo ser condenada? Quem sou eu quando sinto a
densidade do tempo passando, correndo dentro de minhas veias, enxurrada de
existência cardíaca? Quem sou eu, vendo, ouvindo, balbuciando? Não me sei
identificar, perdi o jeito de dizer as coisas, não me sei expressar, contorço e
salivo...
Será que me esgotaram as palavras,
ou é pura repressão ainda, minha segunda pele que de tão antiga me fez agora
fortaleza, pedaço inacessível da própria mente? Quem sou eu, quando o sinto em
cada música, sabendo ainda que o que sinto dele é na verdade eu, um pedaço de
mim expropriado, pois que nada dele resta em mim? Quem sou eu, quando percorro
as ruas dessa cidade pequena demais para que eu pudesse reinventar caminhos,
mas grande o suficiente para que eu siga o meu único caminho sem jamais encontrá-lo?
Quem sou eu, manutenção de vida, prolongamento de tempo, vacuidade humana,
matéria, organicidade, desperdício, fúria, ingenuidade, todos os abraços em que
morei (de aluguel), todos os sorrisos (poucos) aos quais me abri? Quem sou eu,
algo entre o que vejo e aquilo que vêem? O espaço entre a pergunta e a
resposta? Um olhar perdido no meio do caminho? Todas as tentativas falhas de me
explicar? Vou tentar agora me dizer algo muito importante, e totalmente
irrelevante, como se estivesse sendo apresentada a mim mesma e quisesse muito
causar a impressão de saber do que estou falando. Pela última vez. Porque já não posso seguir este caminho.
Raquel, você sente falta dele porque ele foi seu único abraço, o único abraço que era completamente abraço, só morada, só suficiente por horas e dias e anos, dentre os vários beijos de outros, e o sexo de outros que não te atinge, você ainda prefere um abraço, você sente falta dele porque foi sua intimidade de alma, ele que nunca lia as suas palavras, mas se apaixonou por elas mesmo assim, e tinha aborrecimento de te ouvir – porque você sempre tinha razão –, mas amava as suas certezas e perdoava as suas dúvidas, você tem medo dos outros, mas nele você confiou de olhos bem fechados, e o sorriso dele te fazia abrir, desabrochar, e você sente falta até de ter com quem brigar, você que tem pavor de confronto, mas precisa da coragem de se defender para se afirmar, e você sente falta dele porque só ele te fez bonita, daquele jeito que você não precisava se esforçar, mas se esforçava com o prazer maior do mundo, e agora você não aceita ressignificar do zero todo o universo semântico da sua solidão e da sua falta de autoconfiança, você sente falta dele porque você é mulherzinha, e ele te introduziu ao mundo, e você sente falta dele porque você é tudo aquilo que falam pra você parar de ser, e você apesar de não parecer é muito exigente e quer toda a liberdade do mundo que é estar com uma pessoa só e se sentir louvada, você é absurda, você só se engana dizendo que gosta da busca, você queria era ser encontrada, você vê filmes demais e gosta de chamar as coisas de suas, e porque ninguém mais vê o que ele viu, e porque quando você vai falar dele você fica completamente inútil e fraca, e muito provavelmente você gosta de se humilhar, porque aí você lembra de como ele te fazia se sentir forte e útil antes, e você sente falta dele porque você fica apavorada quando chega em casa e tem que pensar no que você se tornou, e em todas as mudanças que te aguardam pela frente, e que isto é só o começo de uma jornada infinita e impossivelmente efêmera de vida e dor e não saber por que é que você acorda todo dia, e se algum dia você arranjar um novo motivo (provisório) não importa, porque você vai continuar inquieta, porque você merece ser feliz, mas não se deixa ser, e você acha que é uma velha sem mais chances de se revolucionar, então você se revolta, mas não age, e você sabe que está ficando maluca porque fala demais sozinha, e você é uma proporção exata entre esperança e tragédia na ambivalência mais nociva, e aí quando se trata dele de repente você é cheia de palavras, mas você esquece que ele não existe mais, e você está se devorando na espera por outra coisa que te consuma assim e te faça sentir alguma coisa que não seja apatia.
Sim, acabou. Tenho que encontrar
outra pele para vestir.
sexta-feira, 17 de agosto de 2012
Ato de contenção
Tu. Tu mesmo. Não leias estas
palavras. Porque é um sonho meu, e não desejo impor minha verdade às mentiras
de ninguém. Porque é medo ainda, medo ainda do que eu possa querer, medo ainda
do que eu possa perder. Não quero fazer confissões. Já não tenho desabafos.
Quero o prazer de ouvir. Vem, despeja em mim todo o teu ínterim, todo o teu
âmago. Quero destilar um tempo meu em outro alguém. Pode ser em ti. Não estou
plena de outro, nem plena de mim. Será que estou à espera? Mas não à tua
espera. Estás também à espera de outra coisa. Não sabemos bem o que queremos.
Falas de paz, e eu me sinto arder um pouquinho ao teu lado. Quisera poder
dar-te alguma. Falas de ir embora, e eu me sinto em fogo brando. Não tenho
expectativas. Todo o horizonte está límpido, calmo, restabelecido, apaziguado,
disponível, para nós ou para quem quer que seja. Para ti. Eu torço por ti.
Sinto-me calar, para recepcionar as tuas palavras. Sim, minhas palavras saem tortas;
meus sorrisos, trêmulos; meus olhares, insustentáveis. Medrosa. Tenho que não
falar, não agir, não olhar, para me proteger da minha honestidade. Caso contrário,
entregar-me-ei. Poderei querer e perder. Embora não saiba bem o que é que
tenho. Então fico aqui, aconchegada em meu universo íntimo de complacência
silenciosa. Sim, devo mudar eventualmente. Espero os universos colidirem em
cada palavra, em cada olhar. Uma coragem momentânea me conduz direto para
dentro dos teus olhos e das tuas palavras, um segredo inabitado, assim fugaz,
assim visceral, assim eterno, como se tudo ficasse em suspenso por um milésimo
de segundo, e tudo se sustentasse estático para dar-me uma deixa, um convite ao
risco, a jogada precisa em que apostar. Mas será que quero querer? E pronto, vai-se
o momento. O sonho é sonho. Eu posso ver-te: mas não posso alcançar-te. Eu
misturo todas as coisas. O corpo com as palavras. E a falta de distinção só me
atiça mais a chama. A quem tento enganar? Estou flertando com um sonho. Falas
de viver uma aventura, de ser surpreendido, e eu me sinto até tentada a me
desconstruir, deixar cair todos estes muros à minha volta. Falas de buscar não
viver pelas reações e pelos juízos dos outros, e eu sou a explosão reflexa. O
que é que te fizeram? Vem, despeja aqui o jeito que quiseres ser, o desafio que
quiseres impor e aceitar, a palavra bruta e o olhar mais impenetrável. Faz uma
loucura. Olha aqui, porque não sei ainda trazer o teu olhar. Mas bem saberei recebê-lo.
Vem, sê tu mesmo, despeja em mim. Abaixa também os muros, e verás que sou bem
mais do que pareço. Um incêndio sutil, do mais desprendido, ainda que
apaixonado. Eu, língua atada. Esfolada viva? Por um olhar, por uma palavra tua.
quarta-feira, 15 de agosto de 2012
Contraste
Não se preocupe, estarei nos
bastidores. Saberei exatamente por quais ruas andar e ainda apreciarei as gotas de chuva que castigarem meus cabelos. Sinto-me a nuvem escura no céu azul que aborrece a todos pelo seu
contraste. E contraste será a minha palavra. Sinto-me um personagem meio gótico,
meio trágico, de uma trama toda colorida. Sinto-me uma calmaria retumbante de
silêncio em meio ao rebuliço jovial e leviano da multidão. Sou uma testa
franzida, um par de olhos atrás de um par de lentes, olhos sérios e
condenadores, um desafio ou um convite à zombaria, um alvo fácil, um pé
batendo, um baixar de olhos em timidez, um virar de olhos em discordância, em
discrepância, como se fizesse questão de não me conformar, mas também não
tivesse a segurança para discutir. Sou um par de olhos esbugalhados,
horrorizados, afetados, encantados, amorosos-mas-inalcançáveis. Quem é que ousa
olhar para estes olhos? Quem, em meio a esses outros pares de olhos tão
descomplicados, tão ignorantes? Eu tenho o olhar de quem sabe. Só não me
pergunte a (des)graça de saber. Eu tenho o olhar de quem pausa para absorver,
contemplar; encarar a escuridão e esperá-la encarar de volta. E como quero que
encare. E seria como contemplar um reflexo. Eu tenho o olhar de quem não tem
medo de sentir todas as coisas. Pelo contrário: eu sigo buscando sentir bem
cada e toda coisa. Eu entrego bem no olhar tudo o que for sentido. Entrego
fácil tudo aquilo que é muito difícil de ter e receber. Tanto sentimento no
olhar assusta. Quem é que quer o fardo dos sentidos todos? Quem é que quer o
fardo de um olhar tão honesto? Quem, em meio a esses outros pares de olhos tão
dissimulados? Eu não tenho pose. Eu não tenho frases sagazes. Eu só tenho a
leveza do meu desprendimento concedido precisamente pela falta de olhares
cobiçosos repousando sobre mim. Ah, por que quereria esse peso? Tenho a leveza
de ser discreta, porque sou só minha e ninguém me vê aqui no escuro. Tão
discreta, tão preto sobre preto contra preto no preto, tão sutil, tão
olhares-no-silêncio, tão respostas-sem-enfeite, tão corajosa na minha timidez
escandalosa, tão simples em minha complicação, tão benevolente, tão inocente em
minha retidão, tão completamente íntegra em meu isolamento, e ainda tão
suscetível em minha genuinidade, que tento compensar sem muito esforço com
minha seriedade defensiva. Não se preocupe, estarei sozinha. Sou incognoscível.
Não perderei nada, porque paro bem para ver tudo, porque paro bem para pensar
tudo, porque mantenho bem a distância de que os iluminados abrem mão para
ganhar aquilo que pode ser perdido, então posso ter o tudo eterno e imperdível
que é o nada, o meu nada no escuro, que é talvez uma promessa de tudo que eu
sei que não se concretizará, mas serve de qualquer apaziguamento na terra onde
as coisas não acontecem, só se pensam e se sabem e se observam. Saberei mais,
porque quem é sozinho se ergue. Porque nada dura, e já me basta o exercício
diário de me ser para mim mesma. Por que precisaria de mais exigências além das
próprias? Quem é que suporta olhos tão conscientes, tão sóbrios? Porque a minha
sobriedade é a maior das coragens, na terra dos inebriados. Quem é que suporta
a total falta de pretensão do meu contraste, na terra dos pretensiosos? Separo-me
na terra, para reproduzir a segregação de alma. Se cultivo a solidão, mas
permaneço sem ego, o que me resta? O meu mundo todo hermético-infinito, o meu
escuro natural. Um par de olhos que, de tanto ver o que não podiam ter,
não acreditam no que querem enxergar. Um par de olhos que, de tanto recusar
serem fechados, castigam-se pela falta do que ver. Toda a paisagem é inútil. A
vida toda que se movimenta fora de mim é vibrante demais, ruidosa demais, desinteressante
demais, excessivamente isenta de minha natureza. Não ver me sufoca; ver me
ameaça. O que me resta: viver o contraste.
segunda-feira, 13 de agosto de 2012
Materialidade
Ninguém normal e feliz precisa de
tantas coisas, de tanta materialidade. Volto a este quarto, meu lar de tantas
histórias doídas, incrustado de toda a materialidade de minha vida, e sinto um
desolamento ainda superior ao de antes de deixá-lo. Minha única possessão é
também minha ruína, meu ambiente inóspito, ainda mais aflitivo que minha mente.
Porque estive longe, encarcerada apenas pelos meus pensamentos. Minhas pernas frenéticas
me conduzindo aos encantos mais inéditos ou esquecidos, pernas livres, os olhos
fazendo reconhecimento de terreno, os sonhos construindo milhares de enredos
possíveis (e improváveis) no meu coração de insatisfeita, sempre insatisfeita, porém
disposta. Nem ao meu quarto pertenço. Penso nele ainda, e teço decepções
inúmeras, concluindo ter sido ele o mais próximo de todas as minhas
materialidades. Ele foi profundo conhecedor do meu espaço e dos meus objetos,
minha materialidade que é tudo que tenho agora. De que me vale ter espaço e
objetos? Olho para todo o material da minha vida e vejo que nada compensa, nada
supera, nada preenche, nada distrai, nada eleva, nada vale a completude que eu
tinha quando era amada. O amor de outro me torna real. O amor de outro me torna
útil. O amor de outro seria um motivo para voltar, para estar. Sem isso,
observo a materialidade, interajo com ela, ocupo-me dela em mediocridade
resignada, e tudo me parece apenas fútil, apenas claustrofóbico, apenas
destrutivo, apenas desperdício, apenas solitário. Afinal, por que voltei? Quero a
liberdade de andar por ruas em que não me espreite a sombra do amor perdido.
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