sábado, 28 de maio de 2016

Quebrantada

É ele. Ele habita, seu corpo ocupa um espaço no mundo e ressoa na minha alma em abundância. É ele, a mesma pele e a mesma displicência, o mesmo garbo distraído que transbordava desde os sete de setembro, provavelmente desde os vinte e quatro de novembro todos. É ele, mas a voz é outra; é a voz de ele para outros, porque é agora que eu percebo que eu sou outra também. E essa gravidade toda ressoa tão dentro que tudo que eu disser daqui pra frente, após ouvir sua voz, será cerceado. Medido, mas atrapalhado. Desconcertado. E respondido em automático como a conversar na descontração com uma pessoa qualquer. Mas não. É ele. Seis meses, dez meses, três anos, vinte e três ou quanto for. Quantas eternidades eu precisar para tirá-lo de dentro de mim. Para não ser mastigada viva. Para não ter meu espaço, tão delicadamente construído, feito em pedacinhos. Para não ouvir perguntas e ter respostas - coisa de conversa racional. Para não sentir em mim, de repente, algo de frágil que não vinha há meses: algo de medo. Algo de ser julgada por ele - que é tão diverso de ser julgada por todos. Tão mais pungente. E de ver a distância que impera em se manter. Quem é ele? É ele, mas não é. É esta casa, mas não é. Sou eu, mas não sou. São meus filhos. São os filhos dele. Ele, que nada tem a ver com isto; ele, que tudo tem. Uma jornada infinita de criação de vida, resumida em minutos. Sinto-me diminuída. Sinto-me a anos-luz de tudo e todos: eu era isso? Eu era ele, ele era comigo, essa era a vida? E esta vida de agora, que é aos olhos dele? Que efeito ele tem? E a vida dele: que eu não quero, não posso, não aceito saber. Não quero saber de nada. Aqui estou no limite de tudo que poderia suportar. E a coisa mais bela era poder ficar em silêncio. Mas ele exige. E o amor tira mais que dá - sempre. Ele fere. E a palavra que eu necessitava ouvir - porque tão tola - nunca veio. Os sentimentos seguem obscuros, as mãos atadas e o olhar não sustentado. O coração que não sangrou porque há tanto tempo petrificado. E eu amolecendo neste mundo inocente, tão completamente avesso a ele, a tudo de antes, tão segregado, intransmissível, irreconciliável. E ele aqui à beira. E eu tão outra que não sei me portar. Mas desmontando com a visão dele. Por quê? Depois de tanto, tanto mais e tão maior. Ainda ser diluída e soprada ao vento. Ainda ser um nada no meio desse mundo dele. Ser deixada ao mundo meu, tão vasto, tão agudo, tão forte, que não entendo: por que tão ferida por ele? Ainda. Como se sacrificada. Vivendo intensa o amor maior do mundo, mas com esta sombra. Por que, meu Deus? Nada poderá ser simples. Eu pensei ser livre. Mas ele irrompe, subtrai. Feridas fundas, eternas. Nas entranhas, no útero. Nos meus dedos das mãos, que arderam para tocar. Por quê? Tocá-lo? Quem? Em reflexo, automático? Porque estive fora do mundo, e agora em confronto o mundo hoje se choca com o de antes. Que esta frase nunca, nunca se complete. Porque, mesmo arisca, sou mansa: as raivas entaladas e eu poupando, poupando, consentindo, embora violada? Tola ovelha enrascada. Como perdoar alguém que nunca pediu perdão?

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Fluido

Tudo, toda a nossa rota de amor e desamor culminou neste momento. Toda a minha vida foi um buscar a ti, a caminho da mulher que eu queria ser (e tanto dela me dói ainda querer). Toda a entrega e a perda uma via para este ponto onde tudo muda. E o que eu ganhei é o que eu perdi. E o que eu tenho não se tira. Foi preciso perder - tudo, e a mim mesma, para não ter nada a perder, tudo a perder, para nada ter além do resquício do que era certo a se fazer. Estar cercada de dor por todos os lados e saber que a hora é essa. A dor circunda, lateja e afoga, declarando que é tudo que existe. Indesviável. Uma verdade interna que sustentou o débil, cultivou, até transbordar em plena e ávida vida. A dor salva. Deixei-me abraçar de dentro pra fora. Em fisiologia extrema, em espiritualidade máxima. Sem idealizações. E o que acabei me tornando é exatamente quem eu deveria ser: e fiel ao que eu queria desde sempre. Mesmo na perda, na morte: há redenção, há nova vida. Com uma força arrebatadora, uma vontade de viver que vem de sofrer, que vem de estar no caminho da fé, designado por Deus, uma força de ter renascido junto com meus filhos. Eu, que mal sabia viver, fiz meu corpo e alma de morada para mais duas vidas. Que nome? Sangue do meu sangue, e todos os fluidos misturados, e a passagem, o ponto onde tudo se transforma, nas horas mais difíceis e mais perfeitas de toda a minha vida: a dor é emoção. Tanto tempo os carreguei comigo, que já não sabia ser senão com eles, por eles. Ao amparar meus filhos nos braços, sinto: que milagre ter sobrevivido, que bênção a existência deles. Deus é perfeito e a natureza também. Enquanto sangro, em leite e lágrimas, sei que fui tentada, enganada, torturada. Macularam o sagrado em mim. E o que perdi por não ter cedido foi uma coleção de superficialidades e mentiras. O que ganhei foi a liberdade de viver a minha pura verdade, por mais dura que seja. Eu não sinto a tua falta. Eras uma tormenta. Sinto falta da enorme esperança que eu tinha de felicidade contigo. Sinto falta até da paixão que me era tão real, embora tão falsa nos teus atos. Não me sobrou espaço para mais nada. Estou vivendo intensamente, sem fôlego, com o coração explodindo de responsabilidade. Olhando meus filhos, eu sei: é justificado. Minha vida está justificada.

Peço licença, então, para viver em paz a vida minha, que costurei tão sofregamente. Porque, agora, ela pulsa.