sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Alucinógeno

Peço licença para escrever um algo tão particular, um acaso tão espontâneo, que mal cabe em minha arrogância de poeta. (O poeta quer ser lido como se fosse todos.) Será um algo despretensioso, nascido pronto e livre, sem missão para cumprir. Não que meus outros escritos sejam tão diferentes deste, mas este pecará como nenhum outro. Termina a madrugada de um longo dia. Vejo o céu de verão passar do negro ao marinho, do marinho à cor púrpura. Sei que logo abraçará feições do cinza ou do pálido azul claro. Tem chovido. É fim de ano também. Sinto os espíritos, aqueles próprios da sociedade ocidental moderna em que me criei. Futilidades. Humanidades! Tudo que temos. Sinto todo o peso do meu ano nas costas. Talvez esteja cansada, mas não é isso o que me perturba. (Protelar o descanso físico, porque vivo neste instante urgência emocional, como tantas vezes.) Chorei um tanto, e ao levantar o olhar descobri um céu rosa. Não cuidei do mundo, ele segue sem mim. Minha vida segue sem mim. Minha alma continua em escuridão, feito ainda noite. Não consigo recordar o que aprendi. Este fim que tenho nas mãos me faz resgatar sensações de outros fins, de outros anos, outras vidas vividas, outras pessoas que fui. Quem fui a cada tempo. Não sou muitas e uma, sou muitas e nada. Não consigo pacificar todas a um só tempo. Algum demônio sempre está à solta. Tendo sido tantas, como seguir sendo esta, como passar a ser outra coisa, como resignar-me ao destino de outras mais? Certeza apenas da inconstância. Certeza apenas do desafio que me sou. Falta de controle sobre tudo. Estando assim isolada, encarcerada em minha mente, temo até me dissolver no ar perante a menor interrupção. Estou num processo. Emoção pura. Corro o olhar à volta, meu quarto, minhas coisas mundanas, meu cotidiano. Temo partir e me perder, sem essa materialidade. Os pedaços de mim. Temo ser invadida pelo que não é eu. Temo não ser mais do que um espaço. Organicidade. O que me leva através dos dias, semanas, meses, anos. O que faz a minha vida. E isso é pouco. O material me enclausura, o material me desespera. A consciência da finitude me destrói. Os corpos acabam. Assim como o ano morre e cada um se vai, irei também, para além de minha compreensão. A certeza disso é insustentável. Temo fechar os olhos e deixar de ser. Eu sou meu corpo? Eu sou meu cérebro? Eu sou minhas coisas? Eu sou essas palavras que estou pensando? Perdi o tempo e o céu ficou cinza. Minha existência é cinza. Parece certo que eu tenha de deixar meu quarto neste dia, em tal estado de encontro com o... Nada? O peso da morte de cada segundo da minha vida me carrega agora para além dos portões do lugar mais negro, mais devastador. Temo não saber mais como é que se vive. Como se distrair da devastação do segundo. Penso em morte porque isso é pensar em vida. Viver é morrer. Penso em fim porque estou sendo tirada de mim, das coisas a que me agarro para ser concreta. Não sei consistir de outras formas. Sem saber ao certo como voltar a um estado anterior menos impossível. Os olhos não param: correm alucinados pelo ambiente, como se procurassem uma resposta perdida. Por que eu perco tanto? Poderia supor que se perde para se ganhar, mas o que ganhei? Se é esta espécie de catarse, agradeço, mas não a quero, que de nada está me servindo. Penso em tudo que me foge, tudo que me escapa, tudo que não pode mais ser, tudo deixado para trás. Mal posso suportar. Eu quero tudo, eu quero que tudo permaneça. Sem mais perdas. Sem mais esquecimentos. Sem mais angústias. Meu corpo resolveu chorar a vida, chorar o ano. Neste momento que agora já é manhã. A potência do que sinto é tão grande, tão avassaladora, que me sinto maior que o mundo, mas de forma perigosa, prestes a explodir. E sinto mesmo como se ninguém no mundo estivesse acordado, como se ninguém pudesse ver ou ouvir. O mundo é meu, embora esta emoção me impeça também de cuidar dele como seria devido. Tudo amanhece, e eu sequer repousei, nem por um instante, nem por um segundo me desconectei da energia vibrante do mundo. Estou impossivelmente atrelada ao todo do mundo enquanto vivendo num cárcere interno, psicológico. E, ainda assim, é tudo tão material, tão concreto, que já não sei o que me separa do mundo, já não posso distinguir a linha tênue que separa o mundo desta emoção. Sinto-me louca, de tal forma que não saberia dizer nem se isto é real. (24.12.11)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Hipérbole

Quarto, vazio e escuro. Para que quartos e salas e ambientes fechados? Eu sempre preferiria amplos espaços abertos onde o limite é o meu olhar ou meu pouco comedido vagar em devaneios, fecho os olhos e sou também o horizonte. Meu quarto vazio e escuro, repleto de um denso pesar, que paira no ar estagnado preenchendo minha percepção com lucidez, numa imposição acostumada. Para mim a lucidez sempre fora um hábito. Pesa uma solidão lamentável, mas conformada, serena até. Isenta daquilo que fundamentasse uma reclamação, atenho-me àquilo que naturalmente me é disponível, perdida em meio a sons e sonhos quaisquer, daqueles que preenchem talvez quase satisfatoriamente a mente inquieta, porém não o suficiente para que lograssem aquietar o espírito, nem o ávido corpo, embora este se manifeste recluso e pacificado – a omissão. A verdade dura é que eu sou quase nada nesta noite inútil de domingo, e na maioria dos tempos de qualquer dia, mesmo porque falar de domingo nada significa, nem justifica. Que é um dia em uma semana, em comparação a toda uma vida? O céu vai cedendo ao escuro com crescente complacência ao passar dos segundos, como se me desafiasse a impedi-lo ou a enveredar por qualquer tentativa de acompanhar o tempo, fazê-lo útil, ou sequer meu. O tempo não é meu para dar, e o tempo não é meu para subjugar, e nem tal vã declaração detém qualquer sentido, considerando que não é de meu interesse dominar coisa alguma, nem ter posse de nada. Queria ser, em vez de ter coisa alguma. Eu cedo à ignorância na mesma medida, pálida, oca, inexpressiva, de forma a não expressar à minha própria companhia o vazio interior, uma vez que se trata de esforço inútil. O nome é inutilidade. É tempo de esperar por algo, um algo que complete e realize, que leve a realizar. É tempo de considerar o pretérito e dele abdicar, renunciando às fraquezas anteriores, impondo a si a aprendizagem, ou dita sabedoria, adestrando a arte de merecê-la. É tempo de abandonar o hábito miserável de perder tempo. Tempo de ousar no cultivo da pretensão de viver, o que não estou levando à prática. Estou na prática para a prática. Plenamente ciente de quem vim sendo e daquilo que importa, estou pura e ávida por praticar e executar o que seja útil. Minha avidez por descobrir os horizontes de mim é quase imperceptível em minha vivência tímida e receosa. Apesar de parecer nula a perspectiva do menor indício de mudança, a impressão da expectativa persiste, mais como uma idéia submissa a um devaneio o qual, por mais fantasioso que seja, deu-me mais propósito e tendência ao aperfeiçoamento que qualquer realidade até hoje conhecida. O ar continua ofensivamente estagnado, quase moribundo, mas eu agradeço por não haver uma voz inimiga para perturbá-lo, a qual me salvaria do preterido ócio para condenar-me ao desespero. Escolho a solidão. (Algum domingo.)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Procedência

Eu quero a minha mãe. Eu a quero, sou somente um pedaço destituído de mim. Eu a quero como se toda a minha vida fosse limitada a uma busca por uma face amiga, aos prantos, através das ruas loucas e infinitas de um país alheio, longínquo e irreconhecível. (Queria saber falar a língua da vida.) Eu a quero com tal inocência, tal infantilidade, que me submeto ao óbvio e simplório, porque sabem sim falar ao coração. Eu estranho a sua ausência, embora devesse, após tantos anos, estar a ela acostumada. Uma independência incumbida a mim cedo demais, que eu quisera não ter tido. Precocemente me foi impingido o fardo de me ser, já aquilo que eu seria sempre. (Queria ter podido descobrir o que eu seria.) Já alguma vez me pus a calcular toda a reconfiguração do transcurso de minha vida caso ela aqui estivesse ou houvesse estado, e a certeza da diversidade é devastadora. Nessa hipótese inconcebível, aquilo que eu acabaria me tornando seria tão fatalmente irreconhecível se posto em comparação àquilo que de fato acabei sendo, tanto que me assusto comigo. (Queria não pensar no “e se”.) O que sou é muito pouco. Relaciono-me com a ausência de minha mãe da seguinte forma: como um direito que se tem, ou se deveria ter tido, porém se perde, sem meios para reivindicá-lo. E relaciono a ela tudo que de falho existe em minha vida, agravando ainda as falhas atribuídas a meu pai, as quais, de forma imensurável, fizeram-se decisórias e inveteradas em minha virtude. Há de se culpar, talvez, a sociedade, pelo cultivo da bizarra noção de grave responsabilidade que aos pais cabe no que concernem os cuidados de um filho, tendo sido essa idéia a responsável por cativar-me e levar-me ao martírio em que me encontro, costurando rente à minha pele essa crença, em verdade insustentável, na condição incondicional do amor paterno. Mesmo que este não precisasse ser incondicional, quisera eu ter acreditado alguma vez me adequar às condições mais favoráveis à aceitação, quisera ter proporcionado o ambiente menos inóspito, um que me pudesse salvar. Ou talvez seja mesmo minha a responsabilidade, ou mesmo a culpa. Não sei, mas, pelo que aprendi da coerção da vida, da relação que existe entre ceder e impor, adquiri essa aspiração por algo que me parece devido, algo que não tenho, algo que eu deveria merecer. Meu trauma de aceitação. E todo sentimento que eu expressar pode (e provavelmente irá) se tornar diminuído, padronizável, vulgar, menosprezado, estando a vulgarização contida irremediavelmente no ato mesmo de expressar-me, em que se perde a impressão primeira que se teve e se tentou explicar. Jamais haverá palavras. (Um dia vou simplesmente parar de usá-las.) Mas, ao contrário do que comumente acredito, que eu deveria sempre ser trágica, na verdade eu aprendo. Quando o pai vier a conversar, à espera de que eu emita uma palavra fraca, a fim de condenar-me, agraciá-lo-ei com meu mais dedicado silêncio, e este, que poderá ser julgado obnóxio, será na verdade minha vitória de resistência. Quando o pai vier a atacar, pelo prazer de ver agonizar, negar-me-ei a fazê-lo, padecendo deveras mais com o esforço de dissimular meu sofrimento. (Mas me poupando da humilhação que é irmã deste.) Quando o pai abandonar-me à minha própria sorte, sem conselho ou fundamento, farei melhor à minha custa, sem emitir a mais tímida solicitação de auxílio, que eu compreendo como uma reivindicação, à revelia do conflito provocado por essa crença. Quando o pai punir-me pela inocência com palavras malditas, carregadas de uma impureza incurável de corpo e alma, serei oclusiva para com o mundo, bastarei a mim em meu interior de pura calma etérea, imune a violações dessa natureza. Todavia, não. Não me cabem tais atos. Quando vem a mim o pai, eu acabo. Nada valem minhas constatações e intenções, pois se perdem no ar perante a simples menção de determinação do pai. Eu sou sozinha. Se a mãe ousar condenar-me também, apesar da incontestável fragilidade costurada à minha face, ponho-me ainda menor, se assim possível for, extinguindo-me no ar junto às minhas palavras, inúteis. Pergunto-me se nos outros é também assim tão percussiva a ação paterna ou materna. (Não ousaria pensar que sou a única.) E mesmo com isto quero ainda a minha mãe, pois nela vejo uma personificação da graça. Toda falha fere, mas eu perdôo fácil e leve, de tão pura que ela é, de tão humana que ela se deixa ser. Pois, apesar de enérgico, seu ataque não impõe dor, afinal, ela enxerga e assume sua responsabilidade de mãe, de tão mãe que é, e sua fala é como uma conquista feita em paz. Quando cessa a voz, o peito aperta e faz um apelo irrefreável por mais doçura, mais aceitação. Quando vem a mãe, eu sou filha. Eu me entendo por filha e me despejo voluntariamente no molde designado, quase sem questionar. (O que não me impede de refletir.) Não, se há um Deus, que este permita que eu me vá antes dela, não permita que eu fique sem sua existência, ao menos isso hei de sempre ter enquanto respirar, pois não sei suportar mais que uma distância. Deixe que eu a veja uma vez mais, ó céus, e eu não hei de deixá-la, não acho que possa suportar outra despedida. Por que, se já foram tantas? Não deveria eu haver me aperfeiçoado na habilidade, pela prática? Se há um Deus, que ele permita que ela tenha a paz que merece, que eu não lhe pude dar. Eu quero a minha mãe como uma filha, a filha que sou, e nada mais. Que me entendam mães e filhas. A ameaça que me impõe o amor que tenho por ela é apenas de que eu não saiba sem ela viver. (Original abril, 2010. Reescrito.)

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Da dualidade

Só peço, a não sei quem, nem como, a possibilidade de ser duas: uma que siga a tal disposição dos dias reais de minha vida, representando aquilo que de concreto acabei sendo, e outra que siga os mesmos princípios – senão não seria eu, e apesar de tudo tenho apreço por mim –, mas que tenha coragem, ao invés de tanto medo, e vivencie também, e principalmente, meus sonhos inebriantes, tornando-os palpáveis. Simplesmente em função da impossibilidade da convivência ou concomitância das duas versões de mim em uma só pessoa. Seria inconcebível manter minhas condições atuais de existência se eu perpetrasse a aventura por meus mais irresistíveis sonhos, mesmo porque muitos deles continuariam ainda irrealizáveis ainda que eu me dispusesse a abster-me das estruturas sobre as quais se sustenta meu viver real, e me dispusesse a enfrentar as conseqüências daquilo que quero para o que eu sou. (Saltar para o abismo e descobrir que nada há lá embaixo para mim.) Talvez eu explodisse em contradições. É tudo demasiadamente conflitante e ofensivo, meu sonho desafia demasiadamente minha covardia natural. (2010)

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Da distração

É uma implosão, uma explosão de vazio que não se pode conter dentro de mim. Fico a buscar aquilo que me distraia da minha vida, sem saber por vezes que a distração da vida é a vida, sem saber que querer distrair-me da vida é não viver, é meu desperdício, é uma mediocridade extremada, a qual eu suponho revogável, embora não consiga arcar com o custo. E a vida que eu vejo a ser vivida me ofende, o cotidiano é desprezível. Eu mesma sou uma vergonha para mim, mais freqüentemente do que gostaria de admitir, no que começo a duvidar do meu próprio julgamento, perante a possibilidade de ser essa mesma humanidade ofensiva que eu vejo a única e toda humanidade que se tem criado em todo canto, a possível, aquela que me é dado praticar, e faço perpétua a cada dia, não que seja por essa conseqüência mais decente ou admissível. Não que esperasse de mim mesma coisa melhor do que o ordinário humano. (Sou humana demais.) É apenas que a humanidade disponível não é compatível com o que desejo, e, apesar disso, tenho de não apenas me habituar ao duro e real viver como também empreender nele algum êxito, tanto por tal ser a exigência comum – de fora para dentro – como por uma ânsia das entranhas, diria talvez instintiva. Penso, e não encontro na exterioridade o que se manifesta em minha consciência. Estou presa a este corpo que não me oferece espaço para viver. Não me dou por misantropa, posto que a isto chame apenas excesso de consciência (ou loucura). Mas não posso mais permitir que me julguem ingênua ou além da conta dramática: estou como que hiperbolicamente consciente de minha insignificância, mas íntegra e convicta o suficiente para defender a dimensão do meu erro de existência e a premente potência de minha instância. Eu entendo que se trata de um desamparo admissível, porém, quisera eu admiti-lo justificável, quisera eu talvez não ter a pouca sapiência que me está a condenar. Talvez se eu não entendesse estaria a exigir menos da vida, talvez não temesse o julgamento que me fazem eu e todo o resto: em verdade é um louco receio, à espera de minha própria aprovação. Tenho medo de entender que todo meu comportamento que tanto me incomoda seria a pleno reversível, bastava talvez reconhecê-lo, bastava talvez que eu fosse um pouco menos eu mesma, bastava talvez ser mais humana, ou menos, o que conviesse, se eu ao menos entendesse efetivamente de que se trata a humanidade. Seria lástima ou ventura a minha competência de seguir versando acerca do que nem mesmo entendo? (2010)

Manhãs

É noite injusta. Minha inaptidão ao ato de adormecer me atinge já o limite do suportável. Não é falta de sono, nem de cansaço. Mas uma tal inquietude que nem chega a ser de pensamento, que os tenho em grande número e intensidade, fique claro, e tenho, contudo, em meu domínio a arte de subjugá-los. Estou só e a noite é minha, mas por que a quereria? Se eu te vejo e é quase nunca, quase sempre em alguma manhã, mas tu estás a dormir enquanto penso em ti na minha lucidez afogada? Pensar em ti é uma impropriedade minha de cuja realidade tu jamais deverás ter conhecimento. Ah, mas o teu conhecimento é tudo o que eu quero. Quero o teu reconhecimento, tu buscando o mistério em mim. Mas, enquanto eu dormir, tu estarás acordado, e eu não terei conhecimento de ti, e todos estes dias, em que não habitas meus olhos cobiçosos, são também isentos da espontaneidade encantadora de ti, e isentos de uma parte tão idônea e desejável de mim a qual aflora para ti apenas, e, ao passarem, tais dias deixam mais profunda em mim a ausência de esperança. Então não espero mais, porém te quero ainda, e à revelia da prudência ainda esmero ter qualquer visão tua na manhã, que a procuro até na noite, sem precisar de qualquer sentido, nem de pensar muito a respeito. Quase me é natural. Quase, mas não me é natural estar em tua presença, e tampouco o é estar a todo tempo contigo no pensamento. Chega a dar em mim sensação corpórea da atividade de um estranho parasita na cabeça, muito embora tu sejas um escândalo de êxtase, meu êxtase confuso, inobliterável, inatingível. Se eu te vi e foi uma graça, foi também a condenação. Enquanto escrevo, tu estás a viver sob outra perspectiva, num outro patamar de existência, tão distante e a um intervalo psicológico tão profundo de meu ser que realmente dou caso à dúvida acerca de minha coerência, posto que me esteja tanto ocupando de acatar com a paciência inútil de, sem esperar, esperar-te. Esperar o quê? Esperar manhãs em que se choquem e se ocupem uma da outra as nossas paralelas existências, por um instante sequer. Mas me calo, que sempre hei de culpar-me pelo desejo que me ocupa agora, é verdade, embora sejas tu o responsável pela origem de qualquer intenção minha, e por mais do que apenas minha vontade de manhãs.  (01.05.2010)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Da amiga

Era meu destino também ser menor do que ela. Eu a amaria como deveria ter amado a mim mesma, atenta e subserviente. Em função da preferência unânime. Porque a felicidade dela seria de uma agudeza enternecedora absolutamente necessária, sempre. Gratificante. Eu aceitaria sua omissão, sua displicência e sua ignorância em maternidade dolente, embora ela não fosse algo de filha. É que estamos vivendo em tempo psicológico, e a eternidade de um segundo plano já me pesa demasiadamente nas costas. Eu fico nos bastidores de sua excelência de pessoa. Silenciosa na prontidão característica de meu ofício. Seria eterna minha típica responsabilidade de sutileza e seriedade perante o mundo. Sem encantar. Só sendo encantada. Silêncio consternado. Minha pessoa ainda por ser conhecida e ouvida.  (2010)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

De morrer sozinha

Se eu quedar sozinha, aquietar-me na aflição interior, ó ironia, levada sou pela contradição de que sou cativa. Quero e não quero, vale para tudo quanto exista. Sinto a onda crescente de angústia, que brota algures do abdômen, queimando seu caminho coluna acima, deixando apenas ausência. Ausência de ar e taquicardia. Depois, em ausência de batimentos, o fogo é como a água para mim, a morte é como afundar na água pesadamente com uma serenidade escandalosa. O resto é silêncio. Não há uma árvore que seja para testemunhar minha queda, nem mesmo insetos em sua vida murmurante, um centésimo de segundo colossal de minha vida é tudo que tenho, é tudo que me resta para confessar-me. O que fica para provar ao mundo minha existência, que no próximo centésimo não mais significará o pouco com que se contentava significar outrora. Não que houvesse opção. Morte deleitosa, do tipo por que se anseia. A saudade dura uma morte, um milhão de mortes morridas em uma por um só corpo, que eu sentia no inócuo ato de conservar alguém no pensamento, praticando-o. Como se pratica uma pessoa? Pois é isso que faço. Eu penso nos outros como se fizesse planos futuros que nunca se hão de realizar, praticando apenas, e a prática é uma espera pela força de poder realizar. Mas a força que não pode ser pertencida, que fazer dela? Continuo morrendo na minha solidão dos fracos. Interiormente, ensaio a propósito de nada a vida digna de ser vivida, consoante meus parâmetros ridículos, embora lúcidos, demorando-me no lamento desta falta de potência. O resto? Não sei. Não vou além de mim mesma.  (2010)

Da mentira

Que assim seja. Que eu seja. Estou sendo assim e não sou capaz nem de ao menos intencionar estar sendo outra coisa, tamanha a gravidade deste estado tão letárgico. Tem-se tratado tão mal e com tamanha condenação a mentira, que quase me sinto incumbida de defendê-la, por assim dizer, afinal, sob minha perspectiva, ela tem-se apresentado subserviente em tantas ocasiões, e constituído eficiente meio de defesa e de poupança. Sinto-me mentir, e é quase natural, quase um ato instintivo, herdado de sabedoria nata de espécie. E parece árduo submeter-me ao juízo comum de rejeitar a mentira, como se a fosse trair. Haverá os que dirão que ela peca ao fazer padecer os que por ela forem ludibriados. Pois, sobretudo, minto mais a mim mesma, direcionando o dano todo à minha própria pessoa, e menos a outrem. Nesse caso, quem, munido de justificativa plausível, poderia impedir-me de me infligir algum mal? Uma mentira pode às vezes ser mais fiel que uma correspondente verdade. A tentação de mentir e a potência da mentira: há quase lascívia na forma como sou compelida a sucumbir. Mas há de ser dito também que, à revelia de tudo que já disse, eu sofro mesmo com a mentira, a irrealidade, a dissimulação. Porque a culpa há de decompor-me toda, como um ser indigno do que muito benevolamente me é oferecido, indigno do que muito idoneamente eu seria capaz de realizar por minha própria conta, e recuso, e fraquejo, e acabo revelando-me ingrata pecadora, sentindo-me solitária na presença dos outros. Talvez eu sinta falta de mim mesma, que não sei onde está, que não sei onde estou. Sinto uma solidão que provoca em mim repúdio da minha própria presença, como explicar? Estou indefensa em relação ao que se passa à volta, que me parece de todo ininteligível, e submissa àquilo que a vida ordena que me suceda. Mas será mesmo que a vida está fora de meu controle? Cria-se uma mentira por acreditar-se que a realidade não basta, por negação, por receio das conseqüências dessa realidade mesma, ou seja, falta de confiança em sua própria conduta, por excesso de escrúpulo, não ausência do mesmo. Estou me fazendo entender? Mente-se a si mesmo para poupar-se de angústias agudas, para poupar-se tempo ou eximir-se, por desinteresse em medir a dimensão do fracasso, da frustração súbita ou enraizada. A mentira é um medo. A mentira é a crença de que se tenha feito ou se esteja fazendo algo de muito incorreto, muito censurável. Aguda fraqueza. Penso que seja muito razoável adotar uma conduta que poupe a si de reprimendas, e poupança é do feitio da mentira. Haverá os que dirão que basta adotar então a conduta que não lhe pareça criminosa e que não instigue a insurreição do grande medo, postura a qual tornaria a mentira desnecessária – se é que já não o fora antes. A esses eu diria simplesmente que a mentira é muito mais engenhosa do que jamais poderíamos ter a ambição de ser, de forma que é também utópico e pretensioso crer em nossa capacidade de dispensá-la sem que haja um custo. Não é simples lutar contra a própria natureza, e uma natureza pode pecar. Não que a mentira seja o caminho natural mais dócil ou fluido, pois invariavelmente traz inclusa vasta gama de novos impossíveis embates; ela é apenas um caminho natural, e também o que mais tende ao martírio, pelo qual o ser tem desmedido fascínio. Sentir-se padecer com orgulho: não o fazemos todos, como grandes tolos, em silêncio, exibindo-nos a nós mesmos? Pois isso também é uma mentira, e sofrível. Mentir é sofrível e irresistível. Dissimulo tranqüilidade, mas bem dentro de minha profundeza penso nele, no outro, nela, na outra, naquilo em que não se deve pensar, sem nem ao menos saber explicar por quê. Talvez eu necessite de um conflito existencial para consistir de formas possíveis. Talvez eu esteja apenas buscando desesperadamente uma tensão, uma pungente aflição interna, no intuito de sentir-me deveras viva novamente, eu que vivia em busca desta paz celestial que me tem sido oferecida agora, agora não a quero: não a aceito como se apresenta, agora tenho repúdio. Não sei ostentá-la e agora estou no anseio pelo que quer que não seja, se me fosse possível ser. Será que é devida esta constante insatisfação? Será justificável? Caso não seja, ter-se-á, ainda, a mentira, servil e dolente, preservativa, tentadora. Seu abuso, porém, implica que se atinja a camada proibida, aquela que revela o vão de todo o processo. É um desfalecimento. Mentir para si revela-se inexeqüível, ainda que permaneça imprescindível. E dói ocupar-me de pensamentos dele, o proibido, dela, a proibida, cativa de meus devaneios impróprios que, quando raro me escapam da rotina consciente, invadem-me os sonhos, cavando e perpetrando seu caminho nas profundezas do meu inconsciente. De lá não podem ser expelidos. Fico sendo este complexo de impertinentes pensamentos. Como explicar minha lamentável incapacidade de relacionar-me à realidade tangível? Como explicar minha lamentável falta de resistência para com os escombros tentadores do passado e da memória e da potência de minha mente? Por que este fascínio pela introspecção e pela total deficiência de conexão com a realidade? Por que esta condição de tempestuosidade? Saber que se veio a algum fim – porque senão não haveria fim em viver; não saber, todavia, qual fim seria. Fica-se à espera inútil do acontecimento compassivo, exorável, a salvação, um reconhecimento que seja da vida quanto ao valor que se deseja ter, ou ao valor que se deseja que ela tenha. E tal valor, em cuja existência e dimensão somente se acredita quando manifestadas por outrem, esse nem mesmo é compreendido: trata-se de conceito muito nômade, muito anônimo. E fico a contemplar o nada, novamente absorta em divagações intransitáveis, dialéticas, que são o diagnóstico de minha exigüidade. Não se muda e não se aprende: a evolução que por tanto tempo procurei convencer-me de ter realizado é ilusória. Vejo que sou a mesma, não mais que a mesma unidade de deficiências dispostas em torno de uma mente fértil demais, fértil e, todavia, inútil. Abundante e, todavia, inóspita. (03.04.10)

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Escolha

Quando se fecham os olhos, o mundo não existe para aquele que os fecha. Como há de se provar que o mundo existe naquele instante dos olhos fechados? Mas fecham-se os olhos para sentir e para não sentir. Fechar os olhos é uma dádiva, é uma escolha, a mais perfeita manifestação ou prova de que se existe, de que se vive. Estou aqui e fecho os olhos. No escuro vejo o que não sei, o que não sabia que sabia, o que ainda vou saber e nada, pois é um nada do qual não tenho conhecimento inteligível. Fechar os olhos é dar-se a si mesmo. Eu sei, porque vejo com o instrumento o mais valioso do olhar o céu, que não sempre, mas de vez em quando, faz chorar os olhos. Então eu os fecho perante a beleza incognoscível, intangível, graciosamente imensurável e igualmente isenta de sentido, porque tenho medo de compreendê-la, tenho medo de compreender que sequer poderia compreendê-la, e tenho medo de sua efemeridade, porque a beleza intolerável, a única verdadeiramente pura, é aquela que não se sabe reproduzir ou mesmo conservar. O céu é uma beleza intolerável, e choro na esperança de algum dia entender a razão de ele ser tão vasto, tão profundo, tão durável, e eu tão pequena e perecível. Fechar os olhos é tudo de que disponho para proteger-me. O sono é intolerável, pois suscita a isenção de todo controle, no que cedemos fechando os olhos. Um beijo é como o sono, mas proporciona também a doação de um ser ao outro, em que se abrem os olhos num gesto de substancial curiosidade, própria de tudo que não se vê. Abrir os olhos é um gesto de benevolência, geralmente associado ao intuito de conhecer. O que não se sabe é que uma compreensão vera e ainda mais profunda jaz no âmbito dos olhos fechados, em que também não existe julgamento. Fecham-se os olhos para que se admita uma insignificância digna. Sobretudo fecham-se os olhos para não entender, o que é uma atitude suprema exigente de sublimada idoneidade e humildade, e uma decisão repleta de consciência. Só quem fecha os olhos tem consciência de abri-los. Eu fecho os olhos para sentir, para não transtornar com uma paisagem indigna e irreal o que estou sentindo, o surreal, aquilo que não tem imagem proporcional ou correspondente, aquilo que não se mostra aos olhos alheios, contido nos meus. Devo fidelidade absoluta ao sentimento e fecho os olhos em seu benefício. Fecho os olhos porque sentir é só meu, portanto não pode ser compartilhado com a exterioridade, de modo que não desejo estabelecer com ela conexão alguma. Desprendo-me do mundo para sentir. No interior autônomo, começo a sujeitar-me à dúvida, posto que não haja testemunhas. Sentir se torna irreal. Sentir se torna algo de inexeqüível. Sentir se torna insuportável. Sentir é isenção de controle. Sentir é fechar os olhos. E a potência contida no fechar os olhos é uma graça dolorosa, quase um fardo, dá até medo de ter nas mãos uma habilidade tão valiosa, haja vista que é o poder da possibilidade. Porque através de olhos fechados tudo pode ser visto, tudo pode ser: não há um horizonte que limite o poder dos olhos fechados. Fechando-se os olhos, fecha-se a alma para tudo que se encontra fora da condição do si próprio, concessão necessária para que se possa abrir a tudo, para que se possa poder ver e, com a consciência adquirida, compreender que se existe, e que tudo existe, e que talvez a cada instante em que haja olhos fechados o mundo possa todo deixar de existir, e que talvez tenhamos mesmo de admitir uma dúvida fatal e intransigente. Fechar os olhos é uma doçura, um horror de coragem: não se pode garantir que novamente se há de abri-los, nem que se há de enxergar novamente. Esse há de ser o porquê de não se pensar o resultado do ofício das pálpebras a todo tempo, pois caso o fizéssemos bem capazes seríamos de não mais proceder a fechá-los, olhos que nos asseguram. Abrir os olhos é constatar: é mesmo, eu existo, então eu não havia imaginado, bem o disse Clarice. Como quando se olha um par de olhos que olha de volta. A realidade é demasiadamente expletiva. Estou sujeita à dúvida, mas é uma dúvida tão certa e humilde que não vou procurar eximir-me dela, não vou à busca de subterfúgios que me sirvam, nem enveredar por quaisquer tentativas de apropriar-me de certezas que não me sejam devidas. E hei de viver naturalmente, pois estou já farta de tanto forçar a alma a quedar-se em parâmetros incabíveis, hei de familiarizar-me novamente com a liberdade de espírito há muito perdida de meu hábito e adestrá-la, ainda que sob muito custo. (01.05.2010)