sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Cachinhos

Quando nos conhecemos, tínhamos pouco ou quase nenhum cabelo. Sedução. Quando eles despontaram, virei ternura. Intimidade. Eu cabia na palma da tua mão. Ali me achava protegida. Quando fui ao chão, o coração ficou contigo. Raiz e caule crescendo para ficar da tua altura. Resistência. A vista debaixo era outra. Eu estava prestes a florir quando me cortaste. Temor. De onde estive, não vi teus movimentos de fogo, água e ar. Quando te dei frutos, das cinzas, vi o mundo desertar, e fiquei subterrânea. Fragilidade. E os cabelos caíram sobre os olhos, meus e teus, desencontrados. Há muito tempo não vejo com clareza. (Lente do amor.) Se me vens, espio para fora, e tudo é fora de alcance. Anseio. Se o inconsciente ousa delirar com o toque, na minha boca de terra. Com o sonhar de cabelos derramando na face, enchendo as mãos e o aroma. E olhos bem fechados, de (pu)dor. Saudade e perda. Lama, lava, redemoinho, e tudo que, para mim, é demasiado, e a ti, insuficiente. É a palavra que eu nunca mais vou ouvir. Suave e bela.

sábado, 24 de setembro de 2016

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Cerceio, exultação

Nunca antes tive tanto a dizer, e tão pouco tempo para dizê-lo. O verbo me exige. Nunca fui tão outra, e tão eu mesma. Não raciocino: sou bicho. Sou a inocência que inundou meus dias. Tão distante daquilo que, embora perdido, sobrevive no rosto deles, no sumo da vida, a materialização. Tudo tão denso, tão fora da cabeça: mas mil pensamentos estourando sem tradução. Nunca a vida foi tão real. Existo fora de mim. São partes do meu corpo, e todo o meu combustível. Para não esquecer de tudo que eu precisava dizer, levado pelo ralo com a água morna de quando eles dormem. Tentei com toda a força do meu ser. Daquele grande amor (resistente) que me faz dever-te todo um respeito nada correspondido. Todo um medo desacreditado. A ilusão com que dividi a cama por três anos. Não só para carregar sozinha, mas o meu amar cerceado -- é isto, assim defino o que foi estar contigo: não poder amar, exultantemente, como me vinha. Te amar era precisar diminuir a importância de tudo. Olho para eles e sinto unicamente: importância. Tudo importa tanto. E por querer transbordar me veio justamente o cerceio de ter de me dividir. Não me conformo. Constantemente cercada do que me tolhe, dentro de um pedaço do meu sonho. Rendida neste impasse temporal, em que as coisas mais resistentes não se retêm. Tudo escapa sempre. Ver que ficaste para trás, para terceiro. Ficaste para nada. Não ficaste, e não quero. Ainda que lateje. Não reconheço, não me lembro mais do toque. No inconsciente vêm coisas que a razão não sabe admitir. Que estou assombrada para todo o sempre. Que nem a pureza deles oblitera, mas me faz sobejar, de alguma forma muito distante de ti. Aqui, sim, não há dúvida. Te amar era isso: ser a dúvida nos teus olhos. Promessa de fim. Agora eu sou a certeza nos olhos deles. No reconhecimento, na delicadeza dos pequenos pés que se movimentam ao meu seio, na docilidade, em todas as milhares de transformações que acontecem diante dos meus olhos a cada dia. Isso é vida, é luminoso. Que eu não seja a sombra, pois sei que não carrego sozinha a tua falta de amor. Está dentro de ti a incapacidade de amar. Algo que não cabe. Algo apenas possível porque fui ovelha, depois pedra, depois três. Mas eternamente três. Promessa de eterno.

sábado, 28 de maio de 2016

Quebrantada

É ele. Ele habita, seu corpo ocupa um espaço no mundo e ressoa na minha alma em abundância. É ele, a mesma pele e a mesma displicência, o mesmo garbo distraído que transbordava desde os sete de setembro, provavelmente desde os vinte e quatro de novembro todos. É ele, mas a voz é outra; é a voz de ele para outros, porque é agora que eu percebo que eu sou outra também. E essa gravidade toda ressoa tão dentro que tudo que eu disser daqui pra frente, após ouvir sua voz, será cerceado. Medido, mas atrapalhado. Desconcertado. E respondido em automático como a conversar na descontração com uma pessoa qualquer. Mas não. É ele. Seis meses, dez meses, três anos, vinte e três ou quanto for. Quantas eternidades eu precisar para tirá-lo de dentro de mim. Para não ser mastigada viva. Para não ter meu espaço, tão delicadamente construído, feito em pedacinhos. Para não ouvir perguntas e ter respostas - coisa de conversa racional. Para não sentir em mim, de repente, algo de frágil que não vinha há meses: algo de medo. Algo de ser julgada por ele - que é tão diverso de ser julgada por todos. Tão mais pungente. E de ver a distância que impera em se manter. Quem é ele? É ele, mas não é. É esta casa, mas não é. Sou eu, mas não sou. São meus filhos. São os filhos dele. Ele, que nada tem a ver com isto; ele, que tudo tem. Uma jornada infinita de criação de vida, resumida em minutos. Sinto-me diminuída. Sinto-me a anos-luz de tudo e todos: eu era isso? Eu era ele, ele era comigo, essa era a vida? E esta vida de agora, que é aos olhos dele? Que efeito ele tem? E a vida dele: que eu não quero, não posso, não aceito saber. Não quero saber de nada. Aqui estou no limite de tudo que poderia suportar. E a coisa mais bela era poder ficar em silêncio. Mas ele exige. E o amor tira mais que dá - sempre. Ele fere. E a palavra que eu necessitava ouvir - porque tão tola - nunca veio. Os sentimentos seguem obscuros, as mãos atadas e o olhar não sustentado. O coração que não sangrou porque há tanto tempo petrificado. E eu amolecendo neste mundo inocente, tão completamente avesso a ele, a tudo de antes, tão segregado, intransmissível, irreconciliável. E ele aqui à beira. E eu tão outra que não sei me portar. Mas desmontando com a visão dele. Por quê? Depois de tanto, tanto mais e tão maior. Ainda ser diluída e soprada ao vento. Ainda ser um nada no meio desse mundo dele. Ser deixada ao mundo meu, tão vasto, tão agudo, tão forte, que não entendo: por que tão ferida por ele? Ainda. Como se sacrificada. Vivendo intensa o amor maior do mundo, mas com esta sombra. Por que, meu Deus? Nada poderá ser simples. Eu pensei ser livre. Mas ele irrompe, subtrai. Feridas fundas, eternas. Nas entranhas, no útero. Nos meus dedos das mãos, que arderam para tocar. Por quê? Tocá-lo? Quem? Em reflexo, automático? Porque estive fora do mundo, e agora em confronto o mundo hoje se choca com o de antes. Que esta frase nunca, nunca se complete. Porque, mesmo arisca, sou mansa: as raivas entaladas e eu poupando, poupando, consentindo, embora violada? Tola ovelha enrascada. Como perdoar alguém que nunca pediu perdão?

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Fluido

Tudo, toda a nossa rota de amor e desamor culminou neste momento. Toda a minha vida foi um buscar a ti, a caminho da mulher que eu queria ser (e tanto dela me dói ainda querer). Toda a entrega e a perda uma via para este ponto onde tudo muda. E o que eu ganhei é o que eu perdi. E o que eu tenho não se tira. Foi preciso perder - tudo, e a mim mesma, para não ter nada a perder, tudo a perder, para nada ter além do resquício do que era certo a se fazer. Estar cercada de dor por todos os lados e saber que a hora é essa. A dor circunda, lateja e afoga, declarando que é tudo que existe. Indesviável. Uma verdade interna que sustentou o débil, cultivou, até transbordar em plena e ávida vida. A dor salva. Deixei-me abraçar de dentro pra fora. Em fisiologia extrema, em espiritualidade máxima. Sem idealizações. E o que acabei me tornando é exatamente quem eu deveria ser: e fiel ao que eu queria desde sempre. Mesmo na perda, na morte: há redenção, há nova vida. Com uma força arrebatadora, uma vontade de viver que vem de sofrer, que vem de estar no caminho da fé, designado por Deus, uma força de ter renascido junto com meus filhos. Eu, que mal sabia viver, fiz meu corpo e alma de morada para mais duas vidas. Que nome? Sangue do meu sangue, e todos os fluidos misturados, e a passagem, o ponto onde tudo se transforma, nas horas mais difíceis e mais perfeitas de toda a minha vida: a dor é emoção. Tanto tempo os carreguei comigo, que já não sabia ser senão com eles, por eles. Ao amparar meus filhos nos braços, sinto: que milagre ter sobrevivido, que bênção a existência deles. Deus é perfeito e a natureza também. Enquanto sangro, em leite e lágrimas, sei que fui tentada, enganada, torturada. Macularam o sagrado em mim. E o que perdi por não ter cedido foi uma coleção de superficialidades e mentiras. O que ganhei foi a liberdade de viver a minha pura verdade, por mais dura que seja. Eu não sinto a tua falta. Eras uma tormenta. Sinto falta da enorme esperança que eu tinha de felicidade contigo. Sinto falta até da paixão que me era tão real, embora tão falsa nos teus atos. Não me sobrou espaço para mais nada. Estou vivendo intensamente, sem fôlego, com o coração explodindo de responsabilidade. Olhando meus filhos, eu sei: é justificado. Minha vida está justificada.

Peço licença, então, para viver em paz a vida minha, que costurei tão sofregamente. Porque, agora, ela pulsa.

terça-feira, 26 de abril de 2016

Solo

Estamos chegando ao fim (ao início). Despeço-me do tempo arrastado, falso repouso, iludido estado de graça, esta solidão de sujeito composto. Despeço-me da falta de ar. O que era antes agilidade e esbelteza. Alguma vaidade. Despeço-me da água quente nas costas, infindável refúgio. Em que as entranhas confeccionaram a vida a partir do nada -- a partir da morte. Cada noite e cada despertar para criá-los dentro de mim. Não é pouco. Todo o tempo para rejeitar a insensibilidade. Todo o tempo para ser firme nos próprios pés e mãos que os carregam. Todo o tempo para gerar a minha vida inteira, seguir meu rastro até este lugar de intensa, aguda e completa solidão. E um perfeito desejo de estar só, de fincar estes pés na terra e amparar meus bebês - meus, meus bebês - como sou eu apenas minha e como um dia eles serão apenas de si mesmos - se Deus permitir, que Ele nos tem ao cabo. A bênção da vida e o fardo da morte, tudo junto e ao mesmo tempo. E tudo junto com esta constante companhia, e esta eterna solidão. Jamais serei uma. Sendo eu, despedi-me há tempo do poder de ir e vir (quem o tem não sabe, não pode saber). O poder de ser ou não, a liberdade de qualquer coisa: inexiste. Mas a liberdade que eu ganhei: de dizer limites. O que vem da solidão: é o limite. Uma quase incapacidade de bem existir no mundo. Cria-se outro. Cria-se força de onde não há. Criando a vida do nada, da morte. Criando a si para minha cria. Um sonho que veio como pesadelo. A bênção que veio atravessada, antitética. A mão de Deus que veio sem redenção, sem paz. Mas é Deus. Sem perdão. Estar tão completamente só me exime também, pela primeira vez, de pedir escusa. E, afinal, estar tão só é uma dádiva de pureza. Não devo nada, e tudo depende apenas de mim. O desespero e o conforto. Isto é meu. Não divido com ninguém. Tenho nas mãos e nos pés e no ventre e no coração tudo que eles são. Tudo que somos veio de mim. É belo e doloroso, sem orgulho de poder ser coisa alguma. A ponto de não caber ninguém mais, nem mais nada. Eu abri, arregacei, isolei, me decompus inteira para tê-los. Eles vão coroar, vão arregaçar, e eu vou abrir os olhos sendo mãe. É meu, ninguém vai entender, nem sentir. Não há como compartilhar. Estou ofuscada de mim. Ninguém vai saber por que a dádiva virou dor, virou solidão, e agora virou a pura necessidade. Eu nasci pra ser mãe. Mas Deus me fez também arregaçadamente sozinha. E abraçar isso é o que me resta. Como ato de fé. Estamos chegando ao fim (ao início). E o peso é maior que o mundo, é maior que eu. E, no entanto, se contém aqui, neste corpo de três corações. Neste esconderijo, armadura. Cobrindo-me, aterrando-me, fechando e firmando por tantas luas: para enfim abrir, alargar, estender, trazê-los de dentro do meu mundo -- que a terra os tenha. Que a terra de sempre nos ampare.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Calvário

Desde quando? O logro, o desfrute, o desalinho e o suplício? Onde terminava e começava? Quando comecei a morrer, emprestando a teu uso meu corpo e minha alma? De ter centenas de vezes dirigido, caminhado em prantos -- ao teu encontro, ou do teu abandono, revivendo palavras tuas; de todos os cantos amaldiçoados da cidade, da minha própria longa memória; vigilância constante. Da cama habitada por outras; os teus ambientes todos por mim tocados, as tuas fases, dores e provações que tornei minhas; das tuas infinitas horas buscando a si do lado de fora; eu olhava adentro; das pilhas sem fim de livros e dedicatórias, histórias percorridas com outros olhos, sinfonias de outros ouvidos, que nada jamais soará igual; da gaveta de roupa íntima, e tudo que enterravas sob minha pele, centenas de cartas de amor descartadas sem resposta, e o pão das minhas mãos te nutrindo, o meu suor matando a tua sede, a carne do meu corpo um leito, que até um coração partido, sangrando, miúdo de tanta angústia -- era ainda tão maior que ti; a ponto de embalar os dois no sono mais profundo, à revelia até dos beijos negados. Mas a sempre reafirmação da propriedade. A vida doméstica, a escova de dentes e o antitranspirante em seus perpétuos lugares. O rastro úmido na cama. Um ar ao percorrer o espaço como quem reverbera: meu domínio. Que eu fiz: tudo que era meu era teu. Que fizeste: tudo que era teu era apenas teu. E o que era meu era pouco, era nada. Que julgaste. De se moldar inteira na freqüência tua, no aroma calculado, exclusivo, para o teu desfrute. De me aventurar pelo meio do céu, o meio do lago, das montanhas, o meio da noite do mundo -- parecia o meio da vida, o meio de um buraco negro com as tuas células feitas estrelas. Um universo se abrindo, fechando, me engolindo com semente e tudo, triturando. De abraçar e acolher esse universo, naturalizar-me nele; desaprender a falar a língua dos outros. Desaprender a ser vista e ouvida. Arregalar os olhos para o quanto o teu olhar mirava outras. E cerrá-los com tua malícia, tua lábia, tua soberba excruciante. A fé no amor sustentava a débil fresta da minha vida. Remendar a alma rompida enquanto o corpo se abria para acalentar a única reconciliação conhecida, paliativa. Da náusea constante, o corpo que lateja eterno à semelhança da mente, a falta de ar, palpitação, a lucidez esmagadora, tortura, paranóia, perseguição, o rastro de qualquer mulher, qualquer sugestão, qualquer desejo, qualquer roteiro de flerte, amor ou sexo -- trauma, desespero. Interdição: intocável, imóvel, inacessível. Petrificada. Rastejando por um deserto o mais inóspito -- gerando a vida a partir do nada; sobrevivendo, mas criando, nutrindo, migalhas num oceano de desdém, sem som algum, palavra alguma, o mais próximo toque a um universo de distância, longínquo a ponto de dúvida -- existe? Sem promessa, sem zelo, sem o mais remoto desvelar de alguém. Revivendo a morte a cada novo dia. E um rancor, mas tão profundo: a dor do mundo arregaçando meu peito. Imperdoável. Eu não era tão importante assim. Nunca houve abismo tão indesviável.

domingo, 31 de janeiro de 2016

Madrugada

- Você me ama?
Amo muito. Meu amor por você é muito forte.
- E você me amaria se eu ficasse doente?
Sim, eu cuidaria de você.
- E se eu ficasse triste?
Sim... Mas quero te ver feliz. Te fazer feliz.
- Me assusta isso...
Eu te amar?
- É o tipo de coisa pela qual se anseia, sem se ter, com que se fantasia, mas que, quando se tem, quer perder.
Por que querer perder?
- Para sofrer, se lamentar, se punir por ter perdido.
Você queria me perder?
- Às vezes, sim.

Eu não queria te perder.