sábado, 29 de setembro de 2012

Intimidada(e)

Para me lembrar de que, um dia, não tive esse medo-de-reação tão gritante e palpável, concreto, que me faz assim companhia ao lado. Preciso estar em outro nível, em outro âmbito de consciência, para interagir. Não: eu sou mais esquisita ainda. Como é que eu vou explicar que só ele não me intimidava? Não: as pessoas são gentis, mas são um enigma. E só ele eu era capaz de decifrar. Que nome dar a isso? Intimidade. Vivíamos em naturalidade completa um em reação ao outro. E já não posso me naturalizar com mais ninguém. O processo me dói, a invasão me fere, a displicência, o não-dito, o cansaço? O abandono. Estou assim tão sozinha, que mal me lembro de como era conhecer alguém, e ser um ponto central. Ah, de que me valem os pontos periféricos que me fazem ser parcimoniosamente? Não, não quero a dependência. Já a tive, e a sei bem: é dor demais para que alguém deseje repeti-la. Mas a centralidade. Uma intimidade qualquer que não me doa tanto também. Que não me faça desinteressante-interessada. Que não me faça questionar toda e cada palavra, debater-me em dúvida e temor profundo de não ser conhecida. Por que eu haveria de querer que me conhecessem? Pois ele conheceu, conheceu e se foi; e eu o conheci, conheci e me fui! Sou hermética, esquisita, cansativa, olho para baixo, tremo, viro um copo, uma garrafa inteira, olho de soslaio, quero sumir! Por que fazem parecer tão fácil? Chegam, na naturalidade imbatível. Não: sinto-me além de tudo. Vejo-o assim, e é a ponte inatravessável. Um abismo que não tenho forças para transpor. Socorro, daqui do outro lado tenho alguma coisa para dizer que não sei o quê. O que ele me deu é grande, importa, importa muito, afeta alguma coisa. Quisera não me importar. O que ele faz existe, existe grave, existe em alto relevo, existe em primeiro plano. Por quê? Porque estou curiosa. Fome de atravessar a ponte. Quero tanto, que me precipito. E é mesmo precipício lá embaixo. Sei-o bem: do outro lado me convida, mas às vezes se impacienta. Vem ou não? Venha logo. Estou cansado. Não vou te buscar aí. E tem outras pessoas à espera para atravessar, sabe? Não é caso raro nem especial. Esse é o problema: faço da coisa um caso raro e especial, mas sou apenas uma noite, um segredo, uma carta, uma cama, um deslize, um passado curto, um fragmento, um poema morto, uma impertinência, céu nublado com chances de chuva a qualquer hora. Não sei, estou atormentada ainda pela importância que afinal não tive. Sozinha, sozinha, sozinha. Não estou infeliz: estou solitária. Sim: solta, perdida, vaga, desapropriada. Sem desprendimento também: solto-me de tudo para perceber que estou presa ainda ao nó mais central, mais fundamental  o meu medo. E aqui estou, sem a menor perspectiva de me tornar a companhia de alguém. Atada. Às vezes, eu sinto tanto a falta dele que parece que vou morrer. De novo. Sacudo-me, e há vida nova ainda. Desemboquei já em uma coisa outra. Rio e abismo e ponte caída lá embaixo, ainda. Fracasso? Vitória?

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Constrangida

Que belo é o mundo... Minha hora favorita, é crepúsculo com chuva. Passo diante da fonte perto da torre onde nunca fomos... Passo diante do nosso hotel de namorados... O escuro dança com minha lágrima, contida. Sou insonte. Impenetrável. Quem me vê não saberá que eu carrego um buraco negro. Toca-me, se tens coragem... Cairás para dentro... Arrasto, peço perdão, e te arrasto de novo... Então não sou transparente, sou turva... Sou artefacto: minha arte nula de sonhar-te, o fato nulo de não ter-te, vou crescer-te e anular-te, como fui nulificada... Não me digas nada... Porque coleciono palavras... Sou romântica pós-moderna... Fujo para o vento das árvores... Que placa me guia ao caminho de mim? Sou inencontrável... Se alguém me esbarra, tenho-me por descoberta... Ah, que errada... O escuro parece teu cheiro cantando para me ninar... O frio parece teus olhos escrevendo para eu te amar... Mas já oscilo em ódio ou indiferença... Tanto faz... Não, não tanto faz, não odeio nunca... Darei as costas amando, todos, todos, todos que me violam... Eu sou violenta, adoro dor... A sede parece tua voz me exalando um sono... A solidão parece tua pele me escondendo... Que irrisório... Que grave idéia besta... Que escárnio me circunda em toda e cada relação... Menos contigo... Mas não existes... Quero ser real, respeito, companhia... Sinto falta de qualquer íntimo... E teu íntimo, vê só, era eu... Mas se me queda aqui meu íntimo, que és tu...?! Quero nada, quero um anestésico... Dê-me anestesia, alívio, e eu farei disto também coleção... Pareço louca... Consterno... Que peso, que trauma, meu bem, meu mal, o que é que fizeste comigo? Nunca mais me sinto normal...?!

Ele bebia água... Todos eles bebem água, bebiam, beberão... E tudo vai e passa, quase nem se sente! Não é para sentir. Simplifique. Dessensibilize. Dê aquela descarga elétrica na tua paranóia. Sê tu...

Bicho de sete cabeças...!

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Sobre a natureza da luz

Longe, lá de longe, que canto é este? É som de voz nenhuma. Parece vento, parece onda. Copiosamente sofro. Copiosamente, vou digerindo o resultado de cada ação. Copiosamente padeço no meu paraíso, assim tão irritantemente humano. Comum e singular. A única constância é o estado de variação. Há que haver uma restauração, ou renovação infalível. Infalível: se falhar, reergue-se. Sem escusas. Sem pecados. Reergo-me, vem-me um agudo ao ponto entre as sobrancelhas. E ecoa. Sou propagação, meu bem. O toque vibra. Vês? Não vês, mas podes sabê-lo. Estou querendo muito te contar. Contar que não ouço voz alguma? É o ébrio tomando conta de mim. Flutuo no escuro. Como me ensinaste. Como é que eu vou contar que aprendo? És misterioso. Tens um sorriso escondido atrás do ângulo que não me calha transpassar. Tens qualquer urgência de partida e ausência. Não persigo. Vês que me excedo? Só de pensar-te. Desafio qualquer senso de fronteira. Pois que perdi o tino da circunspecção. Estou solta. Ouvindo instrumental. Impura. Colhida e largada. Flor condenada, sabes? Mas flor. E investigante. Farei da tua distância um dom. Farei. E, tudo que de bom vier do toque deixado, eu cultivarei. Vês? Sobejo no ambiente inóspito. Não sou flor de véspera. Minha luz é póstuma. Devo ser novembro. Copiosamente emudeço, para ouvir os sons da natureza. A vida fala a mim. Sou muda transviada. As raízes todas se desatam oblíquas. Sou vida, não faço cálculos, não me atenho a ontologias (sobre)humanas. O humano em mim é só som e ar e água. Natural. Sou qualquer coisa, matéria inesgotável. Existo em paz, em conjunção com os tempos. O instante. Amo-te quando apareceste, amo-te quando inexistes, amo-te quando me esquecer de ti. Ama-me quando me fiz notável, ama-me quando me faço ignorada, ama-me quando sequer lembrares de um dia haver-me. Amemos, sem tempo verbal. Sem lógica de sentido. Sem saber flexionar com o corpo o verbo amar. Sem curvatura ali onde o tempo cede, e o som se ouve, lá de longe. És distante. Estou querendo muito te ver de perto. Não há sentido; é sussurro de vento. Não pesa, nem me carrega; não mata. Insinua. Para fazer-me a sombra um tempo, e não voltar, se o caso for. Não te assustes. Foi qualquer detalhe de vida que me fez planta aérea, qualquer desejo secreto de ser epífita. Qualquer luz tua na minha. Agradeço a cortesia, e já me ponho em retirada. Bem devagar, para ver se alguém ainda me alcança. Mas sem espreitar. Se o caso for.

sábado, 22 de setembro de 2012

Fé revisitada

Para Victoria, Bibiana, Lia e Carlos

Porque há um sentido maior na receptividade. Colhemos o que nos é dado, buscamos no dado o sentido de vivê-lo. Porque o mundo é possibilidade: densa teia suspensa, céu aberto, chuva torrencial, liberdade. Como se anular uma possibilidade inexplorada? Como se contentar com um só caminho no mundo dos caminhos possíveis? Como aceitar uma certeza insustentável? Estou certa de não saber. E tu, que sabes, sabes-lo porque o sentes: Deus está, porque não poderia crer num mundo totalmente ou unicamente humano. Um mundo concebido humanamente, como criação contingente numa teoria de uma simplória "sociedade" de homens. Uma, em infinitas. O humano, na infinitude ontológica. E que garantia teríamos? Deus está, mas não como uma força consciente. Não fere. Não calcula os nossos caminhos. Porém, os caminhos lá estão. Traçados. Por qualquer coisa maior que acaso. Não me creio superior: como haveria de saber inteiro de antemão o "meu" caminho, ou mesmo "o" caminho? Não. Há significado em buscar um íntimo nos outros, esbarrando entre si os caminhos. Cuidado: o caminho não deve ser inteiramente compartilhado. E os passos, só tu sabes como os dar. Que luz-guia espero ver no infinito do meu caminho? Deus me tem uma surpresa aguardada. Há qualquer ato de fé em consumir a noite e sorver a aurora. Bom dia: eu sou luz. Ninguém me vê no céu. E eu os vejo a todos. Vivendo a perspectiva do inexplorado. Vivendo a não-expectativa do momento agora a ser sorvido todo. É a protoexperiência de cada segundo pelo seguinte. É uma protovida de viver sem morte. É o protoamanhecer que se vive a cada noite. Eu amanhecerei. O céu, ninguém me dá, mas me fizeram ver. O poder da rejeição está em mim. As rejeições mais sutis são as mais horríveis. Céu, dê-me qualquer resposta, a duração da companhia. Dê-me um sorriso de ser lembrada. Dê-me a força de registrar esta lembrança de uma noite, de minhas noites, de sensações nunca vividas relembradas e compreensões destiladas e a revelação embriagada. Alguma chave gira em meu pensamento, conferindo nova lente ao meu mundo, quase um novo paradigma, não de raciocínio, não de racionalização, não de sentimentalização, não de emocionalidade, não de intuição, mas de vida, de vida, de vida. Viver. Não se tolha a vida, não se faça um corte brutal, não se limite, não se acate a conjugação de uma falha. Não se tema o deixar as coisas por viver, deixar as coisas ainda por vividas, deixar as coisas, deixar as coisas que não se podem levar, deixar o que não se pode desatar, não se tema o atar-se frouxamente aos laços todos. A vida é frouxa, a vida é branda e amena. Como se atar a tudo com tanta obstinação? O mundo é fluido. Balança e oscila e faz dança de ondas com todos nós. Tudo é igual e diferente. Ninguém me supera, ninguém me atinge, ninguém me basta, nem me anula. Ninguém me serve. Tudo se complementa sem preceptividade. Não há rigor, nem palavra de ordem. Estamos soltos. E é preciso coragem. O mundo requer pequenos grandes atos. Como "amanhecer". Ou "viver".

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Carnívoro

Mas eu não sou comum, e aí reside toda a diferença do mundo. Busco uma forma discretamente única de me mover pelo espaço, traçando as rotas menos prováveis. E talvez minha intuição calhe falhar. Sinto-me tão livre. Tão livre, que chego a perder-me. Certamente, quando você existia, eu corria menos risco de vida. Está em todo o libertador-destrutivo que permeia minhas escolhas diárias, das mais simples às mais determinantes. Mas eu não sou sua responsabilidade. São, sim, as minhas escolhas. Toda a questão seria o quão livre de fato me encontro para fazê-las. Se, por um lado, seu laço comigo me atava à vida, atava-me também a um certo ângulo do mundo. Não sei, e sei-o bem: transito pelos ângulos mais variáveis, busco libertar-me de todas as amarras possíveis. Porque se me resta ainda esta amarra, que me abandonem todas as demais. Que tudo que um dia tenha feito sentido seja ressignificado. Então faço o que você desaprovaria, e também o que você sempre quis que eu fizesse. Passo mal só com o ver você nas coisas mais esdrúxulas, porque é delírio. Sofro sem razão de ser? Sou fatalista, eu diria. Penso em morrer amanhã sem que você nunca soubesse do tanto que aprendi. Penso em morrer amanhã sem nunca ter dado a alguém esse mundo todo que eu senti. Porque há qualquer espécie de desolamento nessas convivências rasas, nessa espera-que-se-pretende-inócua, nessa fome de viver que não passa. Há qualquer espécie de inquietação às quatro ou cinco da manhã, um resquício de embriaguez, uma mão que busca algo que apertar e afunda-se no travesseiro, o rímel que escorre, os copos d'água pelo quarto, o hálito da carne ainda em minha boca, o som da sua voz cumprimentando alguém bem ao meu lado. Há qualquer resignação em minhas pilhas de texto rabiscado, meu cheiro de biblioteca, minha pele morena de sol castigante, as unhas roídas, a mão que bate qualquer compasso musical, o peito arfando, uns abraços que eu colho por aí para me carregar pelo dia. Há qualquer fracasso em minhas conquistas, que mais parecem aquele presente todo embrulhado a la Clarice o qual não posso dá-lo a ninguém. Que lindo, que belo, que gesto, mas que patético. Só não mais patético que esta tola necessidade (ou é vontade?) de me fazer cativante para alguém. Já não suporto ser cativada. Parece que estampo qualquer tipo de título de alvo privilegiado aos ataques. Parem já! Eu amo você, e você não me atacava nunca. Eu falava da cabeça sem hesitação, e os nossos silêncios eram agrado, um som de universo. Sinto qualquer cheiro de banho, e sei-me assim, totalmente apaixonada. Seja lá quem você for, eu ainda o amo. E respeito (muito humilhada, confesso, mas sincera) profundamente a sua felicidade. Você se tornou para mim tão comum, tão distante, que eu quero ser comum e me distanciar de tudo isto também. Quem é que quer estas memórias? Sei que esperava ver em você mais que um mero homem, um mero menino atropelando os outros e seguindo suas vontades. Forço-me agora a ser mera menina atropelando tudo e sendo inconsequente. Isso tudo vejo com grande choque, porque não sou você e disso tenho qualquer orgulho inexplicável. Não fujo, mas canso-me já de enfrentar. Vamos dar as mãos, e me ignorar juntos? Imagine só, eu tentando sublimar a minha própria identidade. Seria renovação? Há qualquer dor aguda em minha barriga; enrolo-me toda feito bola e penso em corpo reproduzindo agonia sentimental. Que idéia simplória. Que sentido há em desejar o profundo?

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Ninguém está errado

Então é verdade. Tudo que acontece me torna mais calejada. Não mais dura: mais calejada. Os calos parecem assim uma película de inteligência revestindo minha sensibilidade. E eu continuo branda, suave...

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Metonímia

As minhas histórias não têm personagem porque de fato não acontecem. São sensações destiladas. Nem eu chego a protagonizar. Parece que não falo do concreto porque não falo mesmo. Embora as sensações sejam o que há de mais concreto para mim. Vivo de furtos, pequenas violações que me fazem. O que sobra de viver é o que escrevo, as migalhas deixadas que eu colho adoravelmente do chão para alimentar meus sentimentos. Sou escritora sem enredo. Sou vida sem aventura. Escrevo em grande e genuína distração. Perdão, eu sou comum, e muito suscetível. Nunca fingi ser o que não fosse. Mas já não persigo julgamentos. Ninguém me conhece mais. Eu só queria humildemente ser aceita. Já nem tenho coragem de pedir nada a ninguém. Para ser bem sincera, ter amado já me basta. Eu sei que amei, e sendo poeta, vivo, porque não morri. Eu não sou ela e nunca poderia ser. Mas as sensações causadas por ela são já parte íntima do meu universo de emoções e palavras. Vivo em função das escolhas e loucuras dos outros. Que estranha voragem de não me ser, sendo. Que hiperacuidade das sensações de ser rejeitada. Agora sim. Atropelo quem me lê. Porque escrevo para mim.

Minha escritora favorita

Conhecer
E por vezes me pergunto o que há em mim e que te sustenta. Você, que conhece tantos lugares e pessoas e que decidiu fazer uma parada na mesma estação que eu, pequena, ignorante aos fatos e lugares. Você de multidões, tão alto e maior, enquanto eu em meu canto fico absorta em introspecção, sem saber de nada. Eu, que nunca vi metade do que você viu, conheci de ti, medos e segredos, confissões entrecortadas por suspiros e úmidas de lágrimas que nunca chegaram a tomar forma. E então vejo onde estamos em sintonia; não quando faço o que você faz, mas quando sinto o que sente, quando através de minhas palavras e de minhas mãos te ofereço conforto, algo que você desconhecia. Encontramo-nos então do mesmo tamanho, apesar de não saber do que você sabe  conheci o que até então lhe era desconhecido, pois agora sei de ti.

Hoje
Devia ter acordado ao menos 4 horas antes para poder fazer tudo o que me foi designado e também algumas coisas que me agradariam. A gente aprende a gostar do desagradável, talvez seja isso o que chamam de amadurecimento. Para ser capaz de acordar mais cedo, teria que ter conseguido dormir ao menos 2 horas antes. Teria que acreditar nas minhas finalidades. Mas nada era final, havia sempre o instante seguinte. Liguei a tevê no noticiário, mas não informavam nada que pudesse dar-me acalento. Sentia frio, segurava a caneca de chocolate com as duas mãos, sentindo o vapor subir por minha face e embaçar-me os óculos. Só queria saber de você. Queria projetar-me em outra vida, mas isso me era impossível: o sofá preto continuaria ali, o tapete empoeirado, os quadros abstratos em tons de marrom e azul que não deviam significar nada, fundamentalmente, mas pareciam espelhar minha angústia. Toda a gente era insossa, parecia que não tinham aprendido a sofrer. Não conseguia mais comunicar-me com eles, pois meu único canal recentemente era a miséria que cultivara, que se multiplicava, que fincava raízes. Toda a gente era insossa, e eu era uma coitada. Ela me liga porque quer compartilhar felicidade, eu só deixo o telefone vibrar incessantemente em minha mesa e ignoro. A felicidade tornara-se algo tão obsceno e esdrúxulo, não entendia como as pessoas conseguiam regozijar-se com algo tão efêmero e traiçoeiro.
Como arranjar uma arma? Munição, estou cheia delas, mas não tenho como atirar. Muitas coisas gostaria de dizer, mas não me é permitido, não passam pelo crivo do que é sensato. Fico engasgada, no meio do caminho. Não pareço impressionável, mas sou, justamente por esperar o nada. Quando ganho uma migalha, é como se fosse um quilate de diamante.

?
Devo sofrer em silêncio. Calar-me-ei objetivando que calem-se também as vozes da loucura em minha mente, para que sejam sufocadas as frustrações, para que eu não mais projete em outros minhas necessidades. Mas, faz favor, desassossegue-se em mim. Desague, desabe, desabafe, desfaça, desconstrua, desdiga. Sou pequena, falha e retorcida, pois que cheia de dores. Sinto-me ameixa seca e, ainda, sou o paradoxo do cavalo indomável que urge ser domado. Domestique-me então, pacifique. Clamas para que eu não me feche? O que farei a não ser recolher-me em meus aposentos onde a escuridão carcome, após encontrar todas suas portas fechadas? Cansei-me de chamar-te em vão, de bater em portas que nunca se abrem. Ah, hei de buscar o ar fresco, valorizar como nunca antes um adeus. E a deus, aos deuses, quiçá ao Universo, entrego minha causa e minha sorte, porquanto as considero perdidas; não há mais de mim que possa dar além do que ofereci, encontro-me num estágio de fonte esgotada, alma seca, enrugada e vazia. Por isso nada mais cabe a mim, nem eu mesma me caibo, não há espaço nessa clausura absoluta. Não há luz, não há razão. Há apenas o medo, a escuridão e o silêncio. Posso enfim ouvir minha própria respiração dolorida, fruto dos esforços de um peito carregado em demasia.

Menininha
Mas a gente mal se conhece, era o que ela diria, sorrindo sem graça, cética, indiferente. Ia se esquivando de tal maneira das perguntas, dos sentimentos. Sabia que as pessoas você ia conhecendo aos poucos, até o dia em que sentia que as conhecia, então depois viria o dia em que perceberia que nunca as conhecera. O desejo da completude novamente entrava em conflito com a certeza de que ninguém era confiável, mas a solidão era tão, tão insuportável! As pessoas ao redor sorriam, abraçavam, tentavam se aproximar. Ela se sentia sufocada. Ao chegar em casa, contudo, seu coração denunciava a possibilidade de implodir.
A gente mal se conhece, mas eu até gosto de você. Seu sorriso me acalma, sua voz me acalenta  seu abraço não é apenas um substantivo, é um lugar. Com você por perto, todo o resto se desvanece  dentre preocupações e medos , ficava calma e em paz.
Não sei se te conheço, mas dependia dele de maneiras que desconhecia.
Você não me conhece, eu nunca te conheci, mas não queria ter que viver sem você.

Victoria Junqueira

A supressão da instabilidade da consciência

Como ensejar as condições propícias à fluência da consciência? Quero viver as coisas sendo, só sendo, sem que eu me debata com elas. O estado em que se é, o estado em que se deixa de ser, o estado em que se tem certeza de não ser. Que forma dar à consciência, em que molde estável despejá-la? Como suprimir a instabilidade da consciência, sem suprimir a consciência em si? Porque a minha instabilidade é ser atingida. E a consciência é tudo. Estou plenamente consciente do que me atinge. Mas me escapa ser capaz de distinguir vontade de necessidade. Eu quero isto? Eu preciso disto? O que isso fará por mim? Uma calculadora de consequências? Uma problematizadora? Viver o já, sem previsões ou medições. Não quero medir a altura do tombo. Nem passar agosto esperando setembro. Não quero viver à espera; o viver é já, e se morre, morre-se por minuto, vive-se por minuto o peso inefável de não estar vivendo. Uma insustentável leveza de não ter nada que de fato te prenda. Nada me prende, nada me tem, então tudo que me cativa me tem inteira em um minuto. Sou de tudo, espalho-me em todos os instantes, pertenço a cada minuto de existência como se todo o meu ser se contivesse ali, como que totalmente consciente – em quieto desespero – da morte a espreitar no próximo.  Mas se não acaba? Por isso mesmo me choco: espero que eu viva este instante em tanta intensidade que me exaura a existência, e eu não venha a conhecer o seguinte. Vem-me o próximo instante-já, e ele é todo novo e todo eu, e é tudo que tenho, até o outro minuto. Dê-me alguma forma fixa, qualquer coisa que dure, qualquer coisa que não acabe, porque já me assusta continuar sentindo em mim a percuciência aguda dos instantes passados. Ninguém vive os minutos como eu; começo a pensar mesmo que pareço mover-me contra a maré da lógica humana. Porque em mim as coisas duram como se habitasse um outro plano, um irreal; meu subconsciente me encanta e apavora, domina-me e expulsa-me dos meus próprios julgamentos e racionalidades. Sou o estopim da minha emoção. Os instantes me cativam e o presente se estende para todos os lados da minha percepção, submergindo passado e futuro. Sou o é. O que foi me tem inteira ainda, porque eu ainda estou sendo. Toca-me, fica-me, faz-me, é-me. O que será também me tem inteira, porque o meu ser-presente se expande e oblitera a idéia do ainda-não, e eu me antecipo; já vou medindo bem o que nem se chega. Parece uma espécie de ansiedade inamovível. Porque ainda que eu me pense tranquilizada sei que é uma tranquilidade de tranquilizante. Como explicar? Acertam-me em cheio com alguma substância. Não é matéria: é emoção pura, ainda que só eu a sinta inteira. Pois pego essa emocionalidade e construo um éter, uma neblina, uma escada de ar que é a sublimação para fora do meu abafado-escuro. Saio dele, estou no mundo, porque alguém me trouxe e eu quis ser trazida. Sou facilmente levada: a incógnita é a motivação dos outros em levar-me. Mas essa placidez que faço dos outros é algo de fugaz que me comove. Algo que eu tento preservar para futuras necessidades solitárias. O tempo ruge, a vida é dura, e a minha consciência antecipa a inquietude do minuto-que-vem. Mas a vida é linda! A vida é tão linda, que eu tenho medo de não saber vivê-la. Quero ser levada por alguém que saiba. O grande assusta, e eu preciso do convencimento diário de que não sou pequena. Talvez, por isso, sempre na vida eu me tenha debatido por estabilidade. O que é que dura? Porque se tudo dura, nada dura, e sou sempre eu vivendo o tempo insignificado e construindo pontes entre os múltiplos sentidos que me dão os outros e as coisas. As coisas? Eu. Consigo vislumbrar uma auto-suficiência. Consigo vislumbrar um ego puro. Consigo vislumbrar um sentido da existência. Vislumbrar, apenas. Mas sou a comoção inteira. Ensimesmo-me de forma quase sisífica. Meu problema não é a dissolução do ego, mas a construção. Cadê meu ego? Cadê a tranquilidade natural de consciência, que me fizesse ver exata a linha tênue entre vontade e necessidade? Quero, preciso! Erro! Quero o errado na hora certa e o certo na hora errada e preciso do errado na hora errada e do certo na hora certa: e isso tudo me parece no pós-instante um conjunto de palavras totalmente dessignificado e perdido na dessincronia do instante-já-infinito de me ser. Como é que as pessoas são? Como é que se faz para dar a forma, a forma que propicie a manifestação da vida? Suprimir tudo aquilo que não traga o aumento da vida. Um conceito tão simples, e um assombro tão poderoso de não saber captá-lo. A distinção entre suprimir e reprimir. Suprimir é dar a forma, as condições de ser, ser o melhor de si. Reprimir é matar, eliminar a consciência. Mas já não vejo, se é que jamais houvesse visto, a fonte da minha inquietação primeira. Meu corpo físico, minha emoção, minha mente? Já nem ouso falar em intuição. Tenho uma intuição forte de simplicidade, que é por ir vendo tudo, e saber as coisas simples. Mas começo a pensar que talvez eu veja demais. Talvez não seja para tudo ser tão visto. O mundo não é de quem vê, mas de quem vive. E a intuição linear é não pensar. Vejo pensando. Penso vendo. Sou todos os instantes. Assusto-me! E quero o fluxo. O equilíbrio das coisas que perduram. A constância. E não quero querer alimentar o meu desejo. Quero o desprendimento. Quero sentir os acontecimentos tocando-me as mãos com leveza, feito água corrente, e passando, e seguindo, e deixando-me em paz. Quero ser livre. Quero não querer ser já o sempre, mas o agora (?). Quero um apoio? Será que só assim explico a minha falta? Falta de um apoio? Não: quero um apoio, mas preciso sustentar-me. Pois sustento-me. Mas oscilante! E a consciência não pára, não flui, não me faz prosperar. Existo um dia de cada vez e me orgulho de estar viva. É pouco? É muito pouco. Orgulho-me! Mas não me contento. "Já basta. O mundo exige pequenas frases. Não auto-reflexividade maluca e sinceridades absurdas." Não falo nunca. Quando meu verbo escapa, sei que falo demais.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Enigma

Amor, quando enfim vieres, desde já ficarei feliz por saber-te vindo.
Amor, quando enfim fizeres sequer menção de tocar-me, estarei já vendo
inteiras galáxias firmando tua pele nas estrelas do meu céu.
Amor, quando enfim escutar-te, soar-me-á um som ameno de embalo de dormir.
Amor, quando enfim me amares, saber-me-ei tola por ter-me adiantado.

O social pelo social

Ontem, chegaram juntos à sala. Permaneceram apenas o tempo suficiente para descobrir qual era o assunto do dia. E tornaram a sair. Juntos. Livres. Juntos! Hoje, foi apenas ela. Sentou à minha frente. Viva, maravilhosa. Colega, queria ser você. Mas estou feliz sentada aqui atrás, mirando seus longos cabelos. Em dado momento, discutíamos a legalização da maconha. Parecia meio deslocado em uma aula de sociologia clássica. Ao meu ouvido, ela confessa, sorridente, ter se lembrado dele. Não acaba. Não acaba, assim como eu não acabo nunca mesmo depois de alguém se despedir. A pessoa vai, e eu continuo. E lá também em seu caminho ela segue, continuando. Nada acaba. Ficam impressões. As coisas passíveis de efeito, afeto, reverberação. Por vezes, duas existências esbarram-se, tocam-se, pegam-se. Será? Não conheço, mas quero conhecer. Um mundo de coisas querendo ser vistas. Voltei a ler com vontade. Não quero jamais morrer de novo. Só na hora certa. Escuto com interesse genuíno. Permaneça! Escrevo agora sem dicionário de sinônimos e sou o instante-já. Percebe que não atropelo as palavras, porque não tenho pressa? Não há mais nada que eu possa perder. Porque vejo que as coisas continuam, aqui e lá, para mim e para todos. Continua, e não mata. O toque recebido não se esvai. Seu efeito permanece, e sou grata. Estou fragmentada em tudo que me dão, unidade absurda de pessoa em movimento. Movo-me em direção a algo, certa de encontrá-lo, o que quer que seja. Sem fulminação, não atropelo a existência de ninguém. Deixe as coisas virem e me atingirem em cheio. Ontem, outra aula apaixonante. Antropologia pós-moderna. Meu professor favorito confessa ter conhecido o sujeito criador de um certo desenho animado paródia, que um dia tanto me fizeras assistir. Até ri. O meu pedaço diário das tuas superficialidades. Porque as profundidades, quando me resolvem aparecer, prendem o riso. Aí fiquei morrendo de vontade de te contar. Porque eu não dou a mínima, mas me comovi com a tua lembrança. Fútil e comum e totalmente sincero. De repente, fiquei feliz, porque lembrei de ti sem sofrer. Sei que não te posso contar nada. E os sons de baixo vão se tornando só meus. Qualquer dia desses, volto a ouvir aquela banda, aquela música restrita. Ajuda ler, eu leio muito e sei que as palavras não te pertencem. Tu corres delas feito fugitivo, criminoso que não escapas de ser – eu li nos teus olhos quando te vi naquela noite dura, olhos completamente isentos de inocência. Um dia tentara ler-te um poema. "Análise"  sei de cor. Não prestaste atenção. Hoje, leio-o só. Choro por ter uma coisa só minha. Voltei a atenção à aula. E fim. Mas não, porque não acaba. Isso há de repetir-se, há de acontecer, sempre e cada vez menos. E eu hei de sorrir. Saudade até que é bom, melhor que caminhar vazio? Mesmo que eu venha a tropeçar de novo, preciso capturar o isto, preservar algum fruto desta sensação libertária, este meu instante-já que eu vivo infinito: eu sou eu? Eu hei de ser.

Não mais que de repente

Que olhar é esse na distância, que me perscruta sem que o veja? Que ânsia é esta por encontrar perdido no caminho um rastro desse olhar que não alcanço? Que calma é esta, que rebuliço debaixo d’água, que céu azul, que sol me queima sem que me exalte? Que cantiga ouço, murmurada em outro nível, sob o travesseiro e o ar pesado, que não me pesa e pelo contrário, leva-me vento, nuvem que afaga estrelas, que ouve da lua, que não a precisa ver, sentindo-a ainda, que embalo é este? Que estranho mundo vem a receber-me, colhe-me do sonho e faz-me aérea, vendo-me bem nas coisas todas que vêm fincadas da terra? Que raiz briófita, que acácia velha, que formiga em meu cabelo, que ipê branco rosa amarelo? Que grito é este que me atiram sem que o ouça, que eu devolvo bem com silêncio confiante, que estranhíssima confiança é esta, que me traça os passos sem cálculo ou tédio? Que leveza é esta, que nem se lembra do que perde, que já não lambe da pele as feridas, não vê breu, só cor vibrante? Que neutralidade feliz, que ânimo sutil, que olhar suavemente alucinado estampa a minha face cicatrizada? Que sono que foge, que fome que some, que ansiedade exilada de me dar me faz repouso plácido e inteiro? Que páginas estas, que me carregam nelas e fazem festa, que significados brotados e colhidos, que escuro tolhido, que dureza clareada, que alma se me abre pelas frestas fazendo-me toda luz e brandura? Que cama é esta que se me encaixa e enforma, faz-me onda, submersa num instante abstrato de encontro sonhado e indizível, imensidade de idéias que se não me tiram? Que gesto recebo nas mãos, graça de detalhe, que me faz benévola complacência e cumprimenta sem mágoa o meu passado, num sussurro acordado para o segredo do tempo presente? Que olhos me lêem, fazem-me análise, bondade e alento, no oculto deslumbramento de um jeito de me dar um pouco que faz muito? Que palavras estas, que me jorram prontas, sem que eu me retorça, ensejando a calmaria e não mais a ressaca? Que poder é este de à lembrança abrir-lhe os olhos, já sem tê-los escorrendo em sangue bruto, que mansidão? Que simples conjunto de palavras a fazer-me comoção!

"E o que quer que você tenha que fazer para ser assim, faça. Julgamento nenhum vale isso." (H.M.)

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Intocável

Existe um mundo de palavras e sutilezas que ele desconhece. Existe um mundo de profundidades e consciência livre que lhe são inacessíveis. Talvez ele nunca tenha se preocupado em encontrá-lo. Talvez seja certo que o caminho que conduz a esse mundo não lhe pertença. Pois é nele mesmo que traço minha rota. O mundo que ele não vê. Para onde quis tanto trazê-lo, na ânsia súbita da náusea de não enxergar à distância o mundo dele. Que outrora eu pudera visitar. E às vezes passar inteiras temporadas. Um intervalo do meu mundo. Ou a oportunidade de ser vista. A graça de ser o porto seguro de alguém. Um registro sentimental da minha existência aos olhos de outro. Referencialidade. Porque o meu mundo não me teria bastado para situar-me. E eu me aborreci com a imposição de um mundo meu em que eu não pudesse olhar para algum horizonte (tenho vários) e encontrá-lo olhando de volta, por mais distante que fosse. Eu, que havia acreditado na construção de um mundo mútuo, compartilhado. Eu, que quisera servir, embora me lembre bem da angústia de sentir-me objetificada. Eu, que venho carregando na bolsa uma pesada idéia de ser comum. Eu, habitante de outro mundo. Outra esfera de emocionalidade. Outra esfera de sensibilidade. Vejo em lente de aumento, demoradamente, inexaltadamente, com simplicidade e seriedade absolutas, não a seriedade áspera ou incômoda, mas a seriedade que não deixa de contabilizar nenhum detalhe, sensível e intensa, contabilizo, mas não me gabo, exponho-me, mas me faço respeitar pela doçura, não quero levantar a voz jamais. Por um mundo que nunca me faça levantar a voz. Por um mundo em que eu nunca precise dar as costas ou baixar meu olhar. Por um mundo cada vez mais distante do que me fere. Por um mundo em que não se promova a minha falha perante todos os olhos que me vêem. (Porque não vêem. Porque não me sabem.) Existe um mundo. Existe um mundo de fome controlada, de discussão acalorada e elegante, de uma elegância humilde e simples e totalmente rara, de mentes escancaradas a destrinchar-se, de anagapesis, de céu abrindo encarando o chão que abre de volta e faz abismo e o reflexo sou eu desvendando um novo mistério, de vela acendendo no escuro, de músicas que sejam puro sentimento e nenhuma escala, de pílulas dissolvidas em canto de alguém que me nina feito carinho de mar e onda e sal, de sol nascente, de sorrisos gratuitos e adorados no corredor, de receber bom dia, de esparramar-me no chão público conquistado com suor, de receber um convite, de sons de piano que se prolongam no infinito feito ondulações numa margem em branco, de não-possessividade, de delírio, de páginas da queda mais saborosa que guia direto às alturas do pensamento, de música vibrante da musa que é só minha, de inundação de sangue para o coração, de melros cantando meu despertar, de carinho, de amor, porque existe o amor, e isso tudo é tão real quanto ele podia ser, isso tudo é tão real quanto a felicidade dele é para mim, porque devo esquecê-lo, e desrealizar sua felicidade que não é mais importante que a minha e não é minha responsabilidade, tudo é igual e ninguém pode matar, ele deve ser feliz e eu também, e o mundo existe, e o mundo é visto, porque tenho olhos que não param nunca, e quando repousam é para que se fechem a olhar para dentro, um terceiro mundo ainda. Existe...
Deixai-me ser comum. Deixai-me acreditar, deixai-me ser levada, porque sou eu que me levo, e não há nunca um outro olhar na penumbra do meu quarto à madrugada. Deixai-me fazer o que é preciso. Enxergo as coisas sem contorno. Parece que é o mundo abrindo e se dissolvendo para me ensinar que não há limite ao meu pensamento. As sombras imiscuem-se, fundem-se no ar, no meu corpo, e a minha respiração parece a própria gravitação lunar, perpetuamente suspensa e aberta e às vistas de todos, basta-se que se abram os olhos. Fecho, abro, fecho mais devagar, fico no escuro um instante, abro mais devagar ainda, consigo ainda encontrar na distância de breu a minha lua, que me sorri, confidente: vai dormir, menina, que estarei aqui quando teu corpo resolver acordar a tua alma; ou é a alma que acorda o corpo? Agora sim. Sorrio de volta, e o sorriso é para mim; nenhum olhar soturno me espreita na esquina do meu céu. Apresso o passo e já me é o sonho. Deixai-me ouvir todos os sons, todas as notas às quais não sei dar nome, que me tateiam a pele buscando palavras gravadas em tinta, pêlos crescidos, o verbo que não se esgota, saliências, saltos da mente, teias inteiras do mais intrincado rastro de raciocínio, retina queimada, gordura, hormônio. Deixai-me viver. Nunca quisera tanto.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Anfibologia da amiga

Não poderíamos ser mais diferentes – quase complementares. Ela desdenha, desvia o olhar, e sai caminhando na direção oposta. Eu faço que sim com a cabeça, olho nos olhos, e tenho vontade de acompanhar. O azar é meu de precisar dela. Amo-a por tudo que é, que é tudo que me fere, sem que eu nada possa fazer a respeito. Amo-a enquanto a amam, espectadora, assistente, pé-de-cabra. Estou nos bastidores. Qualquer osso atirado me parece um pedaço inteiriço de carne de primeira. Dou tanto a ela, que não sei como fugir da expectativa da dádiva. Dar, receber, retribuir. E a recusa incide em guerra. Mas não quero mais lutar. Eu estou em sua vida como um enfeite deslocado, que parece não combinar com os demais. Porque todos são só enfeites. Que ela rearranja em sua vitrine conforme melhor lhe aprouver. Busco apaziguar-me: é só isso, estou numa fase de inconveniência, ela está numa fase de louros, grande distração animada, e eu bem sei que sou a figura eterna da benevolência. Sou seu contrário, por isso me aborreço, mas não vou embora jamais. Ela é meu oposto, então não se afeta, mas também já foi e nem se enxerga na distância. E tolos nós que nos debatemos nas ondas de sua insensibilidade. Fascinante, sem dúvida ela é. Permanece uma beleza antiga e intocável em minha vida. Companheira, o teu amor é de-vez-em-quando, mas tão bem-vindo, que me faz fortaleza a cada vez. Aprendo de ti, do contraste, a ser a força e a leveza que não posso ainda ser por mim. Vivo um pouquinho da tua vida paralela, bebendo da tua glória, fazendo-a minha. Tomo-te emprestada a cada oportunidade. Mas tu sempre hás de preferir tua platéia, tua audiência, figuras mais notáveis aos teus olhos de protagonista. E eu não iria querer mudar-te nunca. A exigente sou eu; eu é que preciso de ti. Amiga, por favor, eu só te peço: não me esqueça – eu sou teu porto, tua poetisa, tua família.

Um sopro

Então apaguei, instantaneamente. Como se ele soprasse a vela da minha existência, com benevolente carinho. E pela primeira noite em três meses dormi sem a imagem-mais-conhecida latejando em meu subconsciente. E houve o primeiro sono inabitado por esse espectro, o fantasma dos meus dias. Acordo, como se ele suavemente chegasse o fósforo e o fogo à ponta da minha vida. Sei que acordei porque esperava uma resposta. Sei que meu sonho se havia transportado para outro fuso. Ele é brisa que entra sorrateira, pela fresta da janela, e sopra no meu ouvido em um som de voz que eu nunca ouvi; e a voz é também um aroma estimulante, que atiça a chama do meu fogo abandonado. Poderia explicar todo seu efeito através de termos químicos. Endorfina em pequenas doses periódicas de flerte-com-um-abismo. Porque eu adoro cair. O sobressalto terno que me preenche a cada (des)encontro. Então fico grata por me sentir livre novamente. Mesmo que em pequenas doses de interferência. Porque acordo à sua espera, e ele me alcança em poucos instantes. E eu sinto que viajei no tempo e no espaço.

domingo, 9 de setembro de 2012

Retração

Acordo só. O sonho me mata. A casa é vazia. Silêncio. E o desespero só não é maior do que se houvesse alguma companhia. Porque ele não vai voltar. Ninguém para assistir-me enquanto eu copiosamente vivo, pedindo assim esmola à vida. Vida, dai-me uma graça. Eu mato o dia. Sou a dama da noite. Faço-me boba, faço-me leve. Faço-me mais silenciosa ainda. O que dizer, que já não se tenha dito? Quando eu digo, sou desdita, desditosa! Minhas palavras se tornam desdéns. Recolho-me. Prendo-me aos últimos segundos desse meu reino noturno, o ar de promessa e de completo desolamento, abraçados, confundidos, indistinguíveis. Súbito, o canto de pássaros me rompe o isolamento acústico de existir. É a pincelada rosa no horizonte, é a entrega vestida de desistência. Estou desistida. Um conjunto meio desconexo de pequenos atos compulsivo-impulsivos, uma fuga estéril para longe de tudo, como se eu corresse obstinada em uma esteira ergométrica de arrependimento e vacilação. Mas se o destino é nunca chegar a nada, apenas me distanciar do tudo? O tudo, que é a vida dele atingindo os lugares mais elevados, e a mesma platéia que o aplaude é aquela que desdenha de mim, meu rumo modesto e reservado direto às sombras da luz que ele exala. Mudo uma cadeira de lugar. Troco os livros de ordem na estante. Desfaço-me de pilhas de roupas. Fecho as cortinas de um jeito estranho. Alterno o lado de dormir na cama. Abandono um artista, descubro outro. Arrisco-me em novas comidas. Tento uma rota alternativa para o destino de sempre. Humildemente tento espalhar alguma mudança pelos fragmentos da minha existência. Humildemente peço à vida uma graça, uma licença, um intervalo outro, um estado de espírito qualquer, qualquer espaço, qualquer som, um ar e cheiro que me arranhem a garganta, a dor que me penetre, qualquer luz que me queime as retinas, qualquer poema que me seja outra instância, outra vivência, persona, identidade, pois que ele me foi a composição de pessoa, pois que cresci com ele, mudei com ele, mudei por ele, tenho-o entranhado em todos os meus caminhos anteriores; então como explicar que eu já não saiba percorrer nenhum deles, nenhum dos caminhos já conhecidos? Com o tempo, fui expulsa dos mapas que eu havia feito da minha mente, dos meus desejos, das minhas conquistas, e já não posso situar-me; mostrei-lhe o caminho, e agora ele é livre para percorrê-lo, o caminho de tudo que aprendemos juntos, para que ele siga como autodidata, dominando todos os espaços, sob a luz de todos os refletores, armadura reluzente. E eu não ataco. Eu abaixo a guarda, dou as costas, mas sempre olhando para trás, com curiosidade incontentável. E o vício da expressão me degrada por minuto. Quero entender o que não se quer explicar, quero fazer parte do que me expulsa violentamente. Tenho dedicação e apreço profundos pela doença que me devora. Síndrome de Estocolmo. Fecho as cortinas daquele jeito estranho, deixando aberta a janela, e sinto a brisa adentrar-se, contagiando o ar moribundo do aposento; deixo-a percorrer a consciência, confrontar meu comportamento, e já não me atenho a sentir mais nada; sei do corpo que habito, sei da mente que me significa, sei do sonho e da realidade, e já não posso suportar nenhuma esfera lógica, nenhum argumento, nenhuma comunicabilidade, nenhuma palavra; paro de escrever a partir do já.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Química

Esqueci-me por um segundo de que já não posso dirigir-te a palavra. Um, dois, três, quatro segundos que me valham. De puro sonho, negação, nostalgia, psicose. Estava absorta em qualquer um desses, mergulhada dos pés à cabeça, sincera, entregue, suscetível, hermética. Pensei: irei chamar-te, discar o único número conhecido, aguardar ansiosamente, ouvir teu timbre através da magia tecnológica, e logo estarás imerso também em minha mente, uma epifania. Irei chamar-te para um café e uma fatia de bolo de chocolate, tão singelo e tão nosso, e caminharmos de mãos dadas pela loja de discos. Banal e glorioso. Entraríamos no carro, o teu, é claro, e eu te ouviria ralhar com a minha indecisão sobre a música que ouviríamos. Não importa, meu amor. Qualquer música seria a tua morada. Moras ainda em todas elas, todas que tenhas sequer visitado. E eu quereria mostrar-te a minha nova música favorita, só para me aborrecer com os teus comentários de músico inveterado, tão teu que és. E, bem dentro, inundar-me-ia de orgulho. Passearia com as mãos por tuas pernas, seria a tua maior distração, e contaria os pêlos do teu rosto, em crescimento, um por um, e tentaria alcançar a tua orelha, um movimento arriscado, e ainda o mais seguro de todos os meus atos. Pediria para que ficasses, e tu pedirias para que eu fosse contigo, e discutiríamos, e sairíamos os dois de cara fechada, amando demais para que pudéssemos compreender. A despedida seria curta e intolerável, e eu correria à minha janela, apenas para ver-te disparar com o som bem alto exibindo-me uma música tão minha, mas tão minha, que eu não poderia jamais te deixar escapar da minha vista. Volta, vai, deixe-me olhar o teu rosto de menino, meu homem. Tens a formação perfeita do meu sonho, humilde e inocente. Meu sonho habita cada poro das tuas bochechas de sol, teu nariz de batata. O hálito preciso, a saliva. Tua química, a única que fala à minha. Minha consolação. Um, dois, três, quatro segundos que me valham. E volto a mim. Escuto o som de mil vozes que não são a tua. Percorro milhões de metros que não me conduzem a ti. Destilo meu tempo, vejo-o dançar sobre meu cadáver embalsamado e faço até graça da minha maldição. Morte sem descanso. Corpo que segue, ávido por alívio. Estou só, estou só. Encontro-me comigo, passeio com as mãos por mim. E és tu quem me habita. Alívio, alívio, alívio. Como tu, tantas vezes antes, clamando por alívio com o pensamento em mim. E eu te habitei! Sinto-te por dentro e fora, por todos os lados, o quente e o frio e o úmido e o seco e o rígido e o frouxo e o doce e o amargo e o peso e a leveza e o ódio e o amor e o descaso e o desejo. Alívio, por favor! Eu grito, eu clamo, alívio! Retorço, solitária, mas totalmente imersa, afundada, embebida na idéia tua! Sofro, quero sofrer, quero que doa, quero que me invada! Prendo a respiração. Não há ar que me liberte do teu cativeiro. Um, dois, três, quatro segundos. Um, dois, três, quatro segundos. Um, dois, três, quatro segundos. Um, dois, três, quatro segundos. Um, dois, três, quatro segundos. Um, dois, três, quatro... Um, dois, três, quatro... Fôlego? Alento? Um, dois, três, quatro, um!, dois!, três!, quatro!, um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro, um... dois... ... ... CO2

Êxtase.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Sublimar

(latim sublimo, -are) 
v. tr.
1. Exaltar; tornar sublime; engrandecer.
2. Volatilizar quimicamente.
3. Purificar, expurgar de tudo o que é estranho ou impuro.
v. pron.
4. Tornar-se sublime.

eu recuperei o hábito de caminhar. Também porque a exigência de manutenção de toda esta tecnologia me oprime e enclausura. A paisagem é inútil. Não me agrada, mas também não me perturba. Não é por causa do caminho, nem do destino. É justamente a ausência de caminho e de destino. Ponho os pés um à frente do outro, percorro um espaço, avanço, como que para me dar a oportunidade de contemplar o contraste do meu espírito, que já não chega a lugar algum, e as idéias que também parecem não vir a nada, e sim orbitar em torno de um só ponto convergente, inútil. O tempo é contra mim. Então desafio a temporalidade. Se eu andar assim, talvez ultrapasse até os limites dos meus pensamentos, e atinja algum sentido oculto por trás de minhas decisões passadas. Talvez eu sublime minha densidade de pessoa poluída e me reintegre no vento, sem consciência, só leveza, só pureza, percorrente de tempos e lugares que me são inacessíveis. Porque não me posso livrar deste ambiente, porque não me posso livrar das idéias, quisera então me livrar deste corpo, quisera livrar-me de viver meu tempo, curtíssimo e intolerável. Quereria habitar outra materialidade. Caminhando, as idéias como que ficam desemboladas; vejo-as uma ao lado da outra, vêm-me uma depois da outra, em fluxo rápido, e se espalham no ar que me atravessa, levando consigo um rastro da minha falta de solidez. Estou totalmente transportável, assumo a forma do recipiente, mudo de estado, comprimo-me, agito-me, sou uma composição precisa e muda, um cálculo matemático exato sem finalidade. Perfeitamente inútil. Mas o ambiente permanece todo igual, como se o tempo não tivesse agido sobre todas as coisas. O furacão parece ter passado por dentro de mim sem atingir mais nada, deixando tudo intacto à minha volta. Talvez eu tenha ido com ele, e já não pertença a mim mesma? Não sei como, mas as coisas todas em mim parecem ter saído do lugar, como se eu não reconhecesse a disposição dos meus dias. Mas eu sei que a única e real transformação foi em meu interior. Sou uma estranha no meu espaço. Depois do fim, o fim é o que dura. Mas é o fim que ressignifica todas as coisas. Quase morrer não altera nada, morrer altera todas as coisas. Mas não morrer, e sim seguir vivendo, com a coragem que eu não tenho? A história não acaba; eu tive que cumprimentar a morte e continuar aqui para assistir ao destrinchar dos enredos alheios, enquanto o meu se espalha ao vento assim feito pó, cinzas de guerra. Sigo as mesmas rotas, escondo-me nas mesmas roupas e nas mesmas músicas, luto com os mesmos livros. E eu já outra. Mudou a perspectiva? O foco. Ou a ausência de foco. E eu quase sentiria ódio por ele, por ter me roubado toda a determinação. Se eu pudesse sentir ódio. Que é ainda mais impossível que não sentir amor. Caminho, já não tão leve, já não tão plácida, cheia de argumentos e defesas, cheia de acusações, cheia de pesares, e cheia também da prontidão mais absoluta para abrir mão de tudo isso, tudo, e ser apenas uma companhia fácil e subserviente. Tão fácil! Caminho, e quero é a suspensão. Eu quero sublimar essa dureza, esse concreto, esse calor derrotador, essa tensão de pensamentos reprimidos, esse olhar que só abaixa, só desvia, só se fecha em sons e dores e um escuro de alma que não se liberta nunca. Pois já não poderia me dar o luxo de ser realista, ou cética. A verdade dos fatos me matará, extinguirá, e eu imploro pela esperança que tiraram de mim. Eu quero sonhar, eu quero uma distância, uma doce ignorância, uma distração que me prenda. Quero alguém que me leve, leve-me consigo, ocupe-me de outras idéias, ocupe-me toda, deixe-me morar um pouco em algum olhar que não seja o meu próprio encarando para dentro de mim mesma, quero sonhar, quero ser tirada de mim, quero romper todas estas barreiras e gastar todo o corpo e a vida que me restam em algo novo, quero sonhar, quero acreditar na promessa do amanhã, porque de repente é madrugada insuportável e eu quero acreditar, ao menos para adormecer, por alguns dulcíssimos minutos, que alguém virá sacudir-me e roubar-me deste ciclo, algo incrível me tomará nos braços, deixar-me-á sem fôlego para gritar por ele, ofertar-me-á a trégua, tornar-me-á livre vivente, abrir-me-á para o amor, para a capacidade de confiar novamente, e eu terei algum motivo para fechar os olhos em alegria. Eu acredito em qualquer verdade, porque para mim não há uma só verdade. A verdade de qualquer um é a verdade. Para ouvir, mas não para aplicar. Não sei ouvir conselhos, porque são verdades alheias. Consola-me, mas não muda nada. Certamente permanece intacta a minha verdade. Também porque nada é único. Contudo, quando abaixo a guarda, solto meu verbo reprimido, e vejo já a testa que franze, espanto-me com os outros, e recolho-me no isolamento emocional. Estou separada de tudo. Imagine a minha cabeça, que ele habita arrastando-se, e escalando as paredes do meu crânio, fazendo a comunhão de minhas culpas e ofensas inobliteráveis, música infinda e ensurdecedora contaminando todos os meus pensamentos. Quero meus cabelos, quero meus cabelos, quero ser outra, apenas, outra, que não seja a pessoa que eu sempre fora, quero longos cabelos e não quero a miopia e não quero pernas fortes e quero peitos, e quero agulhas, agulhas, agulhas, agulhas na pele, nem mesmo suporto ser inteligente, soa-me desconexo; sinto falta da estabilidade da sobriedade, mas pareço fazer questão de ser o avesso dela só para ser avessa a quem eu fora, e se eu fosse capaz até comeria carnes, comeria bem carnes para não ser eu, e abandonaria toda esta música, talvez assim eu finalmente entendesse o que fazer da minha vida, o quanto eu deixei de existir como pessoa autônoma. E pararia de escrever. E pararia de escrever. E pararia de escrever. E só voltaria a escrever quando pudesse enfim viver um sorriso natural. Quero sonhar, quero visualizar em ricos detalhes o que eu teria sido e não fui, quero tecer meus enredos românticos, enrolar-me neles, quente e acolhida, dormir um sono sem pesadelos de abandono e escrutínio e ressentimento. Quero brisa, luz nublada, frio colorido, metrô, prédios seculares, umidade, respostas compadecidas, bondade, convites aceitos, promessas mantidas, mãos que me envolvam o rosto, carinho lúcido, noites que acabem, olhos que me invadam e preencham de idéias que não me confrontem, só me levem para longe das minhas memórias, caminhar até que o corpo se livre de toda esta carga, carga, carga: eu quero sonhar que algum dia não carregarei todo este peso.

sábado, 1 de setembro de 2012

Dessincrônico

Há em minha sala de sociologia clássica um casal desfeito. Eles têm sentado separados. Meu olhar vai dos olhos de um para os olhos do outro, e há alguma coragem neles, algo que desconheço. Os finais felizes não existem, porque nunca acaba. A vida acontece – ininterruptamente, infinitamente. Não acaba. Os contos de fada não existem, porque a vida (real?) não acaba. E ninguém é capaz de permanecer constante imerso em um tempo continuamente em movimento. As coisas se desmancham. As coisas se dessincronizam. Quando é que o tempo não é meu tema? Mas escrever já é um tema. Ler é um tema: escrever aquilo que já foi escrito, viver um pouco outro alguém, sentir como si através de outros olhos. Para mim, escrever não é pensar, é sentir. E o que escrevo é a reação química de todos os enredos reagentes que já visitaram a sinestesia temporal de meus olhos. Em plena noite densa, meu breu abafado que parece às vezes toda a minha existência, vem-me um sopro de ar, uma libertação, um ato de salvação mesmo. Tudo bem, não serei eu a dar-lhe os ares da graça, a soprar nos seus olhos, beijar seus ouvidos, cantar uma música fresca assim na sua pele, roçar a língua nos seus dedos que um dia me escreveram, talvez em sonho. Não sou habitante de seus dias. Olha, tudo bem. Eu sou a outra. Eu passei. Eu já fui. Mas olha, em uma noite: você me salvou, e o seu sopro me levou às alturas de lugares mornos e pacificadores que não pertenciam ao meu espectro de realidade. Mas o sopro é um sonho. Por que quero a piedade, a trégua, um ato de benevolência? Ah, o contraste, porque isso é eu, e eu quereria isso nos outros?, eu pediria isso dos outros? Os outros não a têm, não têm esse ar, e em meio a isso tudo eu é que pareço a falha, eu preciso ser reparada; por que é que eu estaria certa, se me acusam de erro por achar sempre que estou enganada? Minha inocência. Não me sei defender. Eu, que queria dar o todo inteiro da minha alma, transformar o seu mundo inteiro pelas minhas sensações, espalhar pelo seu corpo a vida que eu quis tão intensamente dar somente a você, fazê-lo respirar um ar inédito, ir aonde nunca antes me foi permitido, libertar você de tudo que me tinha prendido! Olha, tudo bem, eu fui vista pelo que fora, sem precisar pedir desculpas, pelo menos por uma noite! Não serei eu, mas você terá de outra a doação, e a placidez há de me vir pela fresta de luz em meio a uma noite sem previsão de repetir-se, talvez nunca, talvez tenha mesmo acabado, se acabasse, e o problema é não acabar, se acabasse saber-se-ia a destinação última dos acontecimentos – e, mais grave, dos pensamentos –, e eu não precisaria ser tão eu, calculadora-de-consequências, analisadora-de-verdades, temerária a todos os fatos. Tudo bem, porque eu, agora, tornei-me conhecida da sensação de me ser suspendida da minha realidade; basta recuperá-la, por todos os caminhos que eu puder encontrar. O sonho há de ser meu caminho para transformar a realidade opressiva de meus dias, o sonho há de ser a libertação do meu capricho devaneador. O sopro que era sonho é agora minha rajada de realidade. Eu sou eu, você é você, é vasto, não dura, mas não acaba. Plenitude sem fulminação. O que escrevo continua e estou enfeitiçada.