domingo, 13 de abril de 2014

Sobre mulher ajoelhar, parte dois

Meu gato está há uns vinte minutos encarando o espelho do quarto. Como se soubesse o quanto esse reflexo me repele para fora do mundo, mais para dentro de mim, sem me ver. Venho tentando ressoar o que vem de ti, vestir o amor como sobrepele, enterrar debaixo do travesseiro cada facada de punho sangrento no meu coração. Engolir o terço, cada ave-maria e pai-nosso. Os bichos sabem. O gato não sabe o quanto te tive aqui. O quanto eras tu a dividir comigo as noites. O quanto exijo outro espaço, outro mundo inteiro para acomodar a nova configuração das coisas. Sua decisão inamovível e nada resoluta de me afastar. Pois que não me faço reflexo de ti, não mais. Queres me mover na direção contrária. Como explicar por quê? Como simular a presença de um homem? Como resguardar a segurança que me vinha de ti? Como recriar em outra face a conjunção equilibrada da pureza com a liberdade? Fui salva no amor, nos teus olhos sérios que me desafiavam para fora do meu medo. Para perder o pudor, edificar desde a débil confiança, desvelar, revelar tudo a tudo, me fazer decomposta, viver o ímpeto legítimo de ser, sofregamente, a mulher tua; a mulher em ti, apesar da fraqueza, engolir os mistérios, reter esta fome, joelhos duros no chão, e pensar, a que custo? Tanto fogo, tanto tempo, no fundo do poço deste mausoléu de agora. Tanta brutalidade para esquecer o suave, tanta aspereza. E a distância que edifica a cada dia mais uma migalha tão menor da minha esperança. Se a minha certeza bastasse por dois. Se eu não estivesse tão perto de tudo que desejas. Então, eu não estaria tão longe. Então, quem sabe, eu não teria um gato. Eu não veria todas as nuances do que é viver sem o homem que amo. Eu não saberia de cada erro, de cada palavra em falso, de cada beijo em meus olhos bem fechados, lutando contra o ciúme que já não mereço ter. O que é merecer um homem? O que pensa um homem para merecer uma mulher? Que faço eu, tão movida pelo amor, pela confiança já traída, pela liberdade puríssima que me conquistou? Como não te ter conquistado? Como, como acreditar que eu esteja errada? Que eu não seja a mulher que o meu próprio sonho criou? Que meu destino esteja me desertando, que meus olhos se abram só para vozes e palavras que não venham de ti? Quando vêm, é como se eu estivesse salva de novo. Até que te lembres de que nossos corpos conversam assim só porque sou feita de amor, e de cada migalha explosiva do tempo e da luz de nós dois. Sou já outra. Por Deus, jamais saberei ser mulher de outro.