sábado, 10 de maio de 2014

Guarda-me

Do que nunca te direi. Do quanto tenho medo dos teus olhos, pois se me amam... ah! Que grave é o mundo. Como voa um sorriso. Se não me amam... oh. Que palidez. Que indiferença crua. Minha lufada de ar que és. Do quanto penso que me dás toda a vontade de crescer, sem medos, de mergulhar em palavras, pôr a cabeça e o corpo a gasto, a uso, à aventura, às certezas e descobertas todas. Convicções. Crer. Que me dás todo o poder de ser uma mulher no topo do mundo: o nosso mundo. O mesmo, o único, o protegido, o forte, o belo, o sagrado, esta casa que é meu corpo quando estás em mim; e o amor está sempre. Aqui é teu domínio. Do quanto te quero ver governar com toda a graça. Do quanto esta terra toda, tua, conduz aos mares mais serenos, aos ares mais límpidos, ao fogo mais sedutor. É o que somos. Do quanto te vejo em minhas mãos, e quão enternecidas as coisas tocadas logram tornar-se; do quanto a vida em mim pulsa para gerar a vida ao lado teu; do quanto teus pés traçam luz na terra, fogo no céu, ar debaixo d'água, água ao sol; és alívio; do quanto as mãos tuas acariciam as palavras cravadas no meu rosto, teu nome em minhas pálpebras; do quanto estes ouvidos meus escutam a própria voz debaixo do teu canto, aquele, silente, que fazes com o corpo inteiro, com a quietude, com a concentração absurda, com o amor mais sutil e mais intenso que esta terra imensa já viu. Aquele que queima de ti a mim. Queima e renasce a cada vez. Da vida que desejo inspirar boca adentro para ti, e apenas tu; que o ímpeto de nos aventurarmos juntos seja a ti também um grande motivo para ver tanto mais a beleza deste mundo. Que sejas tu aquilo tudo que és, grandeza, voracidade; que eu te dê a paz e a certeza para sê-lo com todo o ardor que sinto agora no peito; que nunca haja escuro suficiente para impor qualquer impedimento para nós. 

domingo, 13 de abril de 2014

Sobre mulher ajoelhar, parte dois

Meu gato está há uns vinte minutos encarando o espelho do quarto. Como se soubesse o quanto esse reflexo me repele para fora do mundo, mais para dentro de mim, sem me ver. Venho tentando ressoar o que vem de ti, vestir o amor como sobrepele, enterrar debaixo do travesseiro cada facada de punho sangrento no meu coração. Engolir o terço, cada ave-maria e pai-nosso. Os bichos sabem. O gato não sabe o quanto te tive aqui. O quanto eras tu a dividir comigo as noites. O quanto exijo outro espaço, outro mundo inteiro para acomodar a nova configuração das coisas. Sua decisão inamovível e nada resoluta de me afastar. Pois que não me faço reflexo de ti, não mais. Queres me mover na direção contrária. Como explicar por quê? Como simular a presença de um homem? Como resguardar a segurança que me vinha de ti? Como recriar em outra face a conjunção equilibrada da pureza com a liberdade? Fui salva no amor, nos teus olhos sérios que me desafiavam para fora do meu medo. Para perder o pudor, edificar desde a débil confiança, desvelar, revelar tudo a tudo, me fazer decomposta, viver o ímpeto legítimo de ser, sofregamente, a mulher tua; a mulher em ti, apesar da fraqueza, engolir os mistérios, reter esta fome, joelhos duros no chão, e pensar, a que custo? Tanto fogo, tanto tempo, no fundo do poço deste mausoléu de agora. Tanta brutalidade para esquecer o suave, tanta aspereza. E a distância que edifica a cada dia mais uma migalha tão menor da minha esperança. Se a minha certeza bastasse por dois. Se eu não estivesse tão perto de tudo que desejas. Então, eu não estaria tão longe. Então, quem sabe, eu não teria um gato. Eu não veria todas as nuances do que é viver sem o homem que amo. Eu não saberia de cada erro, de cada palavra em falso, de cada beijo em meus olhos bem fechados, lutando contra o ciúme que já não mereço ter. O que é merecer um homem? O que pensa um homem para merecer uma mulher? Que faço eu, tão movida pelo amor, pela confiança já traída, pela liberdade puríssima que me conquistou? Como não te ter conquistado? Como, como acreditar que eu esteja errada? Que eu não seja a mulher que o meu próprio sonho criou? Que meu destino esteja me desertando, que meus olhos se abram só para vozes e palavras que não venham de ti? Quando vêm, é como se eu estivesse salva de novo. Até que te lembres de que nossos corpos conversam assim só porque sou feita de amor, e de cada migalha explosiva do tempo e da luz de nós dois. Sou já outra. Por Deus, jamais saberei ser mulher de outro.

segunda-feira, 31 de março de 2014

De uma mulher com uma flor

Porque eu escuto seu carro chegando feito pano de fundo da alegria a se antecipar. Porque você à porta é um charme, porque você me chama de Cachinhos, e só assim, e porque fica bobo me abraçando por trás na frente do espelho. Porque você vê tudo de mim, o tempo todo, os olhos bem abertos, e me chamando sempre para ver também: olha que bonito o que acontece quando nos juntamos assim. Porque você é o único. Porque você perde o controle de uma forma tão elegante, irresistível, e me faz inteira ali presente, sedenta e maravilhada. Porque você me pediu pra cantar, cuidou de mim, apareceu sem aviso debaixo do prédio, e me envolveu a cada encontro. Porque você, pra dizer que me ama, fica todo canhestro, como se eu não governasse seu coração há tempo. Porque você fica esfuziante quando chove, que nem criança no Natal, e só não tanto quanto ao chegarem livros pra você. Porque você é o homem da minha vida, vê se volta, para me fazer sentir de novo no topo do mundo, em suas mãos. Porque você corre para a cama depois do banho, não usa toalhas, fica nu o tempo todo, e ouve música sacra, quero novamente os seus sons espalhados pela casa. Porque você gosta de cozinhar comigo, me faz rir de doer, e sempre elogia a minha comida e o meu humor, quero conversar sempre com você, minha pessoa querida e favorita. Porque você adora suco de maracujá, é tão esquecido que às vezes não sabe o quanto amo você, e passa um tempão se tornando o homem encantador que é, quero a certeza de te dar todo o tempo do mundo. Porque você tem um bom gosto impecável, e uma distração enorme que compensa seu garbo, num cálculo equilibrado de homem que eu quero ter, quero também me espelhar a me tornar sempre a melhor mulher em mim. Porque você continua não se explicando e me deixa com o coração na mão, porque a gente só vê filme estranho, porque estou com umas saudades infinitas, e porque rezo pelos seus sonhos a cada noite, quero muito que você perdoe eu ter tentado desvendar essas coisas todas, e querido me imiscuir nos teus segredos; não importa, eu só quero estar ao seu lado. Porque você não gosta de ninguém, volta logo pra gostar de mim. Porque me sinto muito forte agora, e nunca te quis tanto, quero muito que você perdoe tudo, e aceite o que tenho para dar. Porque você está bem aqui e agora, peço a alegria de te receber de vez em quando ao fim do dia. Porque a gente pode fazer do nosso jeito, quero que você saiba confiar em mim, sem nenhum medo. Porque você ocupa toda a cama, e dorme onze horas, e me abraça no meio da noite, quero te acordar com um sorriso, e aquele segredo que só existe entre nós. Porque te amo tanto, diga apenas até já, que já não me importo de estar em espera. Sou uma mulher com uma flor no peito, e o segredo da grande beleza: você em mim.

domingo, 30 de março de 2014

Contando carneirinhos

Sofres porque queres, e sofro porque queres. Percebe o erro? Eu sempre estive aqui, ouvidos e braços, coração. Criaste teu buraco e me jogaste nele. E agora? Que argumento racional usar para que decidas me jogar a corda? A que coração apelar? O de pedra já me foi atirado na cara. Este buraco é agora meu ninho de amor. O amor sobrevive. Não, não é certo. Fortaleza. E umas águas embaixo, no desespero de não se fazerem ouvir. A angústia de saber-te sofrendo. A angústia mais constante de sofrer tanto mais, tão solenemente, tão impotente. Só quereria dar-te a mão. Dar-te tudo, até a minha ausência. Eu entenderia. Uma ofensa sem medida. Me fizeram de pedra quando eu queria ser feita de amor.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Fé púnica

Há dias não me posso olhar no espelho. Tenho medo de ver a cara da culpa nenhuma, da culpa toda, da única culpa que posso condenar, de não ver a cara da minha dor, o único, dos sons que alucino virem da rua, a sombra que quero ver sob a luz noturna, e não há. Porque ele veio e ele foi, sem me olhar. Tenho medo, e desconheço qualquer forma de evitar as coisas todas; justamente as coisas todas, o que mais nego e dispenso, são o que me é dado manter. Não havia culpa: ela existe agora. O corpo dói de ausência, que é dele mas logo se torna própria; sumindo, sumindo na frente do espelho que ignoro. No dia seguinte, é como se eu fosse pouco, tão pouco, que só a mim o acesso é negado. Todos os outros não o conhecem: por isso, é-lhes permitido permanecer. Eu serei dispensável. Aquilo que está dentro fenece; reina a superficialidade. É o que cai dos olhos agora, é tudo que não me foi permitido viver, tudo que foi arrancado do meu peito. Tenho nojo do meu tempo, das pessoas todas que não me entendem, geração nojenta, não fui feita pra isso, estou enganada, estou amarga, estou dura, tudo que minha alma insiste em não ser. Estou desafiada, o mundo quer de mim o pecado que vem da solidão, eu, que dele só pedi a pureza. Sou uma inocente, e isso de nada me salva. Deus, quem olha por mim? Este não é meu caminho.

domingo, 9 de março de 2014

O amor sobrevive

Que significam os livros que perdi? Se, após seis longos anos, o resíduo na estante é a única verdade que sei: a de haver-te perdido. Os livros são o mesmo nada. O som que permanece é um suspiro engolido. As palavras que enchem os olhos, a boca que perfurava, aquelas do fracasso, da tragédia. Se isto me foge, que são as coisas? Se isto pode perder-se. Gostaria muito de que fosses. Adoraria ver-te partir, o mais que me visse, depois, a respirar da tua ausência, como se nela houvesse vida. Para que, ao fim e ao cabo, te pudesse sentir voltar, ávido de saudade. Seis dias, não anos, e teria ouvido também do amor, e de novo, como se fosse verdade. Vibrou e escorreu dos olhos, das mãos, coisas minhas e tuas, ensejo das noites separados. E como fazer da rotina algo díspar? Porque és o senhor de mim. Deus, não me obrigai a mais nada. Livro algum atravessa o abismo que é estar sem ele. Livro algum me separa deste escuro. Para nunca compartilhar o escuro daqueles olhos, que desafiam para fora da vida. A doçura mais ímpar de ser cruel. Na estante, tudo é nada. O quarto não significa, e atravessa para hábitos de mais além. As superfícies só não são mais amplas que a ausência de tudo. Não pensaria em coisa alguma, espaço algum que preenchesse essa perda; as coisas parecem querer habitar apenas o âmbito da vida compartilhada. Por que cultivar a troco de nada? Investir em reprodução de sensações agonizantes? Coisa alguma é testemunha de que eu tenha vivido.