quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

De uma menina com uma flor

Releitura de Vinicius de Moraes

Porque você é só um rostinho bonito, e porque me lê para sentir-se querido, e porque eu escrevo para querê-lo, eu lhe prometo que a cada noite derramo nas estrelas um pouco do meu pudor. Porque você não se explica, fala pela metade, não tem consciência, flexiona os verbos, concorda com os artigos e preposições, não lê sinopses, e não gosta de nada, quero bem ouvi-lo dizer de novo que gosta de mim. Porque você tem também um ar recuado, mas quando chega me ocupa toda de ar morno, e se me toca me ocupa toda de ardente, eu lhe prometo até a importância que você já tem. Eu lhe prometo até tentar manter estas promessas no papel, porque você, se me ouvisse, insistiria em sacudir-me até eu não pensar em mais nada. Porque você é um homem simples e impossível, frugal e transbordante, antigo e jovial, sério e menino, e porque me deu uma rosa do jardim da igreja, e porque o gato que mora lá fica todo carente e oferecido para você, e eu simpatizo com ele porque me identifico, e porque você acerta meu gosto e fala o mínimo, porque você leva sempre um livro, e porque você quando começa a ficar carinhoso logo se contém, e porque na sua presença eu me defino por um raio máximo de dois metros de você. Porque, às vezes, quando começa a falar de coisas importantes, você esquece de me olhar e sabe bem que é porque eu começo a ver você, e logo pára, sabendo que eu tentava ser sua confidente. Porque a sua voz me acalma e o que você diz me aflige, e porque você canta que é uma doçura no meu ouvido, em quatro línguas distintas, eu lhe prometo quantas aventuras você quiser, e prometo não tentar desvendar todos os seus mistérios. Porque você me fala pelos silêncios, e eu lhe correspondo em gestos, prometo a você toda a minha sensibilidade, e a cada dia mais toda a minha força: é tudo que tenho para dar. Porque você é um luaceiro na noite, e porque tem nome de apóstolo e de poeta, e porque um dia vai desaparecer em alguma floresta num país distante, eu lhe prometo que, quando você for, não vou me perder, e só peço que, para deixá-lo, você não me diga adeus.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Ato de contrição

...the love which consists in the mutual guarding, bordering and saluting of two solitudes.
Rainer Maria Rilke

Estou arrependida. Estou antecipando. A corda bamba do meu eu estirado: estica-se de um extremo ao outro do teu nome, e eu no meio, limite máximo. Apenas escutava o que tu não dizias. Apenas me media pelo assombro da solitude a antecipar-se, tua fruição, meu derrame. Apenas me deitava no dilúvio que me continha, sem escapes, drenada, repreendida. O amor fere. Era apenas leito de ausências. E silêncio inóspito, que nem a terra pode redimir. Jazigo, pois que o rútilo me deixa o corpo, em diálogo rarefeito. Durou pouco. (Mas eu suspeitava.) Nem três luas. Há um sol maior. Quando a lágrima secar nos olhos que, incrédulos da vista, esta noite não se fecham. E que farei da antiga mágoa quando não souber te dizer por que chorei?

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Olhos d'água

Já tentaste fechar os olhos? Se tudo se resolvesse em fechá-los. Eu não estaria a ver-te, além-pálpebra. Não estaria, talvez, mirando tua sensação de ver-me. Fechada, porque aberta. Compensativamente. Tonta de ti. O corpo se dobra, pisca, tremula, oscila. Que a boca procura a sede que se resolve em outra. Até que eu sentisse os dedos teus pelos meus olhos, chamado percussivo, chuviscando meu nome, pronunciado em textura de pele corrente, adocicada tessitura da voz tua. Eu, branda, já seria tanto desses dedos que não saberia alinhar-me em simetria à urgência. Porque a urgência já estaria rutilante em meu fôlego atravessado, ritmo diluviado do suor a vir depois. Vertendo, gotejando. Reencontrada em ti, sempre novo e escuro, sempre fogo, palpitando luz em cada artéria. Te antecipo as chegadas, as viradas, a pele que há de vir, e que não se ouse descolar de mim, ansiados dedos que se enterrem, a estirar-me, prolongada. Olhos fechados que não espelhassem teu sorriso sorvido, que no meio da tontura já não basta olhar. Porque o teu perto é tão dentro que eu me sinto longe, inteira no mundo. Um mundo teu que, se eu disser... Que eu já habitava? Os olhos, ao som do te ter, têm a ousadia de reter-se. Vêm-me tuas mãos, asas, voz de água, a desanuviar-me, precipitando-me às profundezas até que o som fosse luz, cor, vento, rútilo. Ar preso nos pulmões, haurido, ato de constrição, e logo ato contrário, de desatino, olhos indesafiáveis que vêm entrar, escorrer da boca o som. Que, se eu disser: o que se fez do instante de ti em mim. O instante de olhos fechados, em que o te ter se torna apenas ser, e estamos sendo. À distração, os meus buscando em ti o refúgio, minha luz particular, atemporal. Se hoje te pareço imperfeita, terrestre, olha-me de novo, preenche-me de amenidade, dessas que só em ti se detêm. Escuta o som do teu corpo transfixo no meu. Escuta, como os sons de fora que sei que vêm de dentro, tua fluidez em mim resguardada, de um espaço entrecerrado liberto, ardente nesse passo de tu-e-eu. Que, se eu disser: quase coreográfico. De perto, teus olhos como se eu já fosse tua antes de ser. E era. Que não és como eles, bem o sei, mas sabes que sou eu? Que sou ao lado teu. Vê que, contigo, todas as partes de mim se depuram a cada parte tua, a cada palavra um canto. Que, se te destoas, eu consono contigo, e o reverso. Porque dos outros tão cheios de um nada. Porque de antes eu tão farta de um vazio. Porque, em ti, olhos fechados agora acesos nos teus dedos. E a tensão amena de abri-los, mãos que me colhem em espelho d'água, a escorrer entrededos. Que, se eu disser... Os olhos meus que já anseiam por beber-te, encerrar-te adentro, em eterna sede. Olha-me de novo, a cumprir-me infalível, que eu te prometo não fechar mais nada.