terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Do arqueiro a céu e mar

É que eu me despedi com os olhos que não derramam, porque hão de te seguir vendo, e em quaisquer paisagens habitáveis penderá o teu olhar como quadro a perscrutar-me, suave rastro dos verdes aterrados que destilas pelos meus caminhos, por ti percorridos, uns em relance, coisa de instante efêmero-temeroso, outros em mergulho fundo, cadê-ar, pungente expressão do todo que deita sobre a minha superfície agora. Nada me consterna, e sinto com a facilidade do animal que respira, vento que ruge, céu que se espalha eterno pelos limites da consciência-imaginação. E minha vista é toda naturalizada, plena, pura, estirada num algo de pele, latência em cada músculo, sangue vibrando a vida em mim. Nada me aflige, como se os pensamentos todos repousassem entre os roxos e lilases e magentas mais improváveis que eu duvido enxergar, como em dança que as cores fazem aos meus olhos, como para atrever-se, desafiarem-me a manter em plano nítido o teu verde-aterrado, dissonante, destoante, e encaixado, bem como se teu tempo se criasse e renovasse pelo céu, qualquer a cor, ou estação, temperatura. Despedida seca, como o céu que ao longe se parece derramar, mas é pura aridez misteriosamente melíflua. Tudo em mim arde seco como o céu, mas em rara umidade, como recém-saída de mar, e áspera de sal, oceano teu, de sons de onda que me embalam nua, comprimem-me, esticam-me, espalham-me toda em areia da mais mansa, cobrindo-me toda de infindos volumes, água viva, e que, por isso mesmo, interpelam-me a respirar, soprando água pelas reentrâncias no pescoço, criatura marinha cercada e abandonada. Ficam todas as impressões, pura aridez de deserto em que se encontra, de repente, tenro caule de flor crescendo, fundo poço de águas cristalinas. Porque tão, tão turvas. Toda a minha visão, do negro, embaça-se ao mirar o verde-terra. Como vida se fazendo a partir do nada, é tua brancura contra a minha voz; nos teus silêncios, cresço forte como raiz, e se me retorço toda é para apertar bem a seiva que treme na veia ao sentir de ti qualquer inferência à distância. Porque te tenho um pouco dentro de mim, e saber-te aéreo-etéreo é às vezes todo o medo. Porque, na verdade, estás queimando em profundezas, sobejando em todos os ares, anjo, e eu ilhada sem terra, vacilante nas ondas, e, se mergulho, é para achar no fundo qualquer pedaço de firme. Ainda que me mate. O que me traz à tona é tua voz, canto de presença que se estende e permanece, e que, ao pé do ouvido, faz-me a mais convicta das amantes, enleio impossível, impassivelmente estirada na tua pedra, rija e maleável, entregue, como que enfeitiçada, pelos sons que de ti me escorrem dentro feito lava morna (queima sem dor, como se eu pedisse a explosão, e peço mesmo), imobilizando-me, hesitante, a liberar-me depois só para que eu te traga mais perto, se o canto de repente me soar em lonjura, e eu precisar que ele me habite as estranhas. E nem seria suficiente. Ah, são só palavras, e quando eu terminar de por elas viver-te já não saberei o que ter feito do céu, porque não era o teu sorriso contra o meu rosto. Enquanto mergulho, começo a sentir a iminência da falta de ar. Nem é pânico. De repente este verde-terra é roxo-lilás, os rosados todos me levam de volta à tua face, e tudo gira comigo bem no meio, porque, se me aparto de ti, já não é dor. Saudade não é sempre tristeza, e a felicidade é real, ainda que não compartilhada. Se és flecha, eu sou a sombra da flecha. E, na minha busca do puro e colhido, quero ser teu alvo. Eu, que hoje não me sei enfileirar, e muito menos enfileirar-te. Quem é que um dia soubera? Pensas que eu saberia, só porque sou terra? Em tempo: terra fincada de flecha (em chamas, aos ares, e em plena água).

Água viva

Sinto agora mesmo o coração batendo desordenadamente dentro do peito. É a reivindicação porque nas últimas frases andei pensando somente à tona de mim. Então o fundo da existência se manifesta para banhar e apagar os traços do pensamento. O mar apaga os traços das ondas na areia. Oh Deus, como estou sendo feliz. O que estraga a felicidade é o medo.
Fico com medo. Mas o coração bate. O amor inexplicável faz o coração bater mais depressa. A garantia única é que eu nasci. Tu és uma forma de ser eu, e eu uma forma de te ser: eis os limites de minha possibilidade.
Estou numa delícia de se morrer dela. Doce quebranto ao te falar. Mas há a espera. A espera é sentir-me voraz em relação ao futuro. Um dia disseste que me amavas. Finjo acreditar e vivo, de ontem para hoje, em amor alegre. Mas lembrar-se com saudade é como se despedir de novo.
Um mundo fantástico me rodeia e me é. Ouço o canto doído de um passarinho e esmago borboletas entre os dedos. Sou uma fruta roída por um verme. E espero a apocalipse orgásmica. Uma chusma dissonante de insetos me rodeia, luz de lamparina acesa que sou. Exorbito-me então para ser. Sou em transe. Penetro no ar circundante. Que febre: não consigo parar de viver. Nesta densa selva de palavras que envolvem espessamente o que sinto e penso e vivo e transforma tudo o que sou em alguma coisa minha que no entanto fica inteiramente fora de mim. Fico me assistindo pensar. O que me pergunto é: quem em mim é que está fora até de pensar? Escrevo-te tudo isto pois é um desafio que sou obrigada com humildade a aceitar. Sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que é mítico e fantástico — a vida é sobrenatural. E eu caminho em corda bamba até o limite de meu sonho. As vísceras torturadas pela voluptuosidade me guiam, fúria dos impulsos. Antes de me organizar, tenho que me desorganizar internamente. Para experimentar o primeiro e passageiro estado primário de liberdade. Da liberdade de errar, cair e levantar-me.
Mas se eu esperar compreender para aceitar as coisas — nunca o ato de entrega se fará. Tenho que dar o mergulho de uma só vez, mergulho que abrange a compreensão e sobretudo a incompreensão. E quem sou eu para ousar pensar? Devo é entregar-me. Como se faz? Sei porém que só andando é que se sabe andar e — milagre — se anda.

Clarice Lispector

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Da paixão singela

Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta
Que seja sempre terra o que é celeste
E que terrestre não seja o que é só terra.
Hilda Hilst

Singelo (latim tardio singellus, diminutivo de singulus, -a, -um, único, só, singular) adj.
1. Inocente; puro. 2. Simples. 3. Não reforçado. 4. Sincero; lhano; desataviado. 5. Não dobrado. 6. Delgado. 7. Natural. 8. Único; só.

E eu flutuo, sim, neste mar que é teu. Pois prende em mim esta ressaca, fadiga de horas noturnas passadas contra a corrente. Onda vem, e me arrasta longe, sem ver mais terra, infinitude de céu que se deita sobre água e mais água de puro verde de dentro pra fora, de dentro pra fora um tom aterrado, que é para eu me lembrar de ser terrestre. Vôos altos para que eu caia bem no fundo deste meu azul contra o teu verde. Que meu azul, de alma, é preto nos teus olhos. Esverdeados. Cor de quem vem para encher de água e sal uma tela outrora em branco, seca, carregada de vácuo. De repente, as cores importam. O traço, a forma, a impressão, o gesto do pincel são todo meu objeto de desejo. O sal escorre em minha alma. Se eu decidir repousar em pedra, de repente já não posso. A brisa traz um aroma teu de marinheiro, como navegas no meu corpo. Uma coisa leva à outra, e de repente sou ilha. Toda ressaca dolorida e desvairada. Que me baixa a pressão e de repente eu sou pr'aonde a dança das ondas levar. E como me levas contigo sem nem saber, faço canto da partida, luares que me embebem toda, de um espaço que antes ocupaste, e que agora é pura espuma de sal que sobe ao ar. Não respiro. Toda a brancura pesa no meu peito como a preencher-me de som: som branco de ventos uivando para me ninar, depois do ataque cardíaco. De repente, vira onda e eu descompasso, virando errado, ao avesso, topando coral, deslize em buraco, concha corta os ouvidos, limo sobe os pés, mãos tateiam sem nada, e é água, água, turva, turbilhão, escuro, imensidade sem fim. Tudo em meu olhar esverdeia como em incêndio semovente. Debato-me; arrebato-me. Cedo. E é caindo ao fundo que sinto bem a tua pele arranhar-me como água das mais mornas, tenras e mansas, bem latejando na superfície de todas as coisas que não acabaram. Não acabou, e continua. O presente me afoga inteira, e é assim que te sei inteiro, puxando-me junto a ti, debaixo d'água. De nada adiantaria respirar. Sou toda o fôlego que me roubaste, todo o espaço que percorres, os novos aromas que fazes brotar assim em flor, no meio do meu oceano. E é assim que, sem ver terra, feita de mar e água, queimando suave, estou por ti liberta.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Da ovelha ao rochedo

Que eu não te devolva a dor da minha primeira lágrima.
Daquela que precisava de pastoreio, ao inamovível: fortaleza.
Comovida, empresto à aspereza impenetrável a minha pele.
E, sobre a rocha de penhasco, que eu encontre nova luz (a dele).
Delicadezas; em meu seio escorre aquele tempo tremente.
Durezas; dos dedos aos lábios, levo a sempre-ordem fremente.
Noite, mudez, canto, alvorada: o espírito da estação.
Tolhida, atada.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Tenro caule de flor

É tempo para dizer
Se prefiro o teu amor
Àqueles, aos doces ares
Da minha campina em flor.
Tu que projetas e inventas
Estruturas ascendentes
E sonhas com superfícies
Além deste continente,
Tu que conheces melhor
As coisas do querer bem
(Porque até agora te quis
E antes não quis ninguém)
Tu, bem o sei, me pressentes.
E mais ainda, me vês
Tão perto do querer ser
Deste amor sempre contente.
Ah, descantares, lamentos,
As leves coisas do tempo
Têm seu tempo e seus altares.
É tempo para escolher
O anoitecer nas planuras
E o contemplar luaceiros
E é tempo para calar
A estória dos meus roteiros.
Paisagem, tu me alimentas
De verde, de sol, de amor.
E numa tarde tranqüila,
Nos longes, seja onde for
Lembra-te um pouco de mim:
Que eu morra olhando as alturas.
E que a chuva no meu rosto
Faça crescer tenro caule
De flor. (Ainda que obscura.)

Hilda Hilst

sábado, 8 de dezembro de 2012

A verdade do êxtase

Imagino que agir seja sempre meu ponto crítico, frágil, alvo de piedade. Para não falar misericórdia. Falarei ódio, mesmo sabendo que é amor, falarei raiva, aborrecimento, pranto, arrebatamento, vacilando nas regras do jogo. Aceitarei os desdéns, displicências, rasadura, efemeridade assassina. Um dia, deixarei para trás, no meio da estrada, a palavra aceitar. Meu fazer perceber é música de despedida. E, de tanto fazer-me de sonhos lúcidos da paz que não tenho, hei de repousar sempre numa corda bamba. De dentro, aquele ímpeto de sair andando, sem destino, sem interrupções, plena de desprendimentos, para que assim me inundasse qualquer relance de ter um trajeto, um que não fosse esperar morrer, e que talvez assim eu me eximisse do fardo de buscar caminhos. Como se eu estivesse buscando ver um algo que não se quer mostrar. Mas é também porque certas coisas devem permanecer impalpáveis, porque um quarto totalmente iluminado é inabitável. O que é a solidão? Talvez aquela antiga chama de me fazer amalgamada à multidão, porque a diferença me isolasse, seja agora uma centelha de ter certeza de mim. Ter certeza, como mecanismo de defesa. E não ser mais a flor reacional. Ação, não reação. E já não consigo ver-me senão separada de tudo. Ah, eu não sou qualquer uma, e por isso eu sei que é amor destrutivo o que sinto quando sei ser feita de menos. A imagem em que me aprisionam. Não quero o medo, mas ele não perde peso por eu o chamá-lo respeito. Que peso dar, desafiando as leis da natureza? Desafiando as regras do jogo? Densa, pura fragilidade clara e cortante como uma inútil folha de papel branco, devastadora, que me encara com as palavras que perdem todo sentido de ser. Palavras, paisagens, toques e olhares. Quero morrer aqui e agora, para que eu não saiba do que estou sentindo, sem entender. Para que, no momento em que eu souber, na impossibilidade de exprimi-lo, na impossibilidade de enquadrá-lo no todo do mundo, eu me desfaça no intangível maior, alerta a nada, nada além de paz.

Escolhi você com o coração. (Ah, coração de cristal.) E por isso hei de ser sempre a que espera. Por isso, também, devo ser agora a que vai embora. Para ter, quem sabe um dia, aquela certeza. Na falta dela, almejo um horizonte. Também eu quero ser livre de amar no transitivo direto. E transitar, inacessível, pelos escombros e encantos do mundo. Una, inatingível, indesviável, irrefletida, água turva, negra, puríssima de tão intacta, imune a todos esses absurdos. Serei incorporada à minha vista, não mais conseqüência e resto do que vi. Não mais seria o resto do que fizessem de mim. E a minha arte não seria o que sobrou de viver. Seria o fazer, o viver, o ver, sem complementos, ação verbal sem tempo limite. Existência transbordante que não carregue nada consigo. Sem nada, e sem ninguém. Flor livre.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Iminência continuada

Ah, meu abismo descontínuo. Persistências. Metáforas que venham só para colher-me, flor desbotada pela raiz. Seiva bruta. A dele, elaborada, escorre por entre meus dedos enquanto eu teço meus pensamentos de mel, densos como galhos secos e folhas de árvores ao vento. Contíguos espaços de peso entre as levezas que me carregam e inflam, oscilatórias, ao colo do céu. Deito-me em ânsias, hinos antigos, morte para todas as vozes da queda, país de silêncios e escuros, em que meu sussurrar é todo o brilho, dissonante, em que os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo. Tudo o que ouço, tudo o que vejo: faz-me agudo o não-dito, impronunciável, o não-visto, incomponível. Arde na pele o que não me toca, distantemente atado a qualquer rastro das minhas partes solitárias. E os ditos e vistos se fazem passo, corrente, de ferro e ar. Faço-me a corda bamba entre o medo mortal e o êxtase excessivo. E, com aquela tímida dignidade, enfrento o que está além das minhas possibilidades. Além do ponto crítico, extremo dos in-tremos, sei-me inteira transparente. Mas fortaleza. Respeito, e nunca medo. Meu acesso menor, porto seguro, é meu salto através do espelho. Porque é vôo. Que ele não se engane pelas partes limítrofes, ah, as minhas, tão mastigadas. Ah, domínio conexo. Não hei de contar as cicatrizes. Erro o salto, desvio e estatelo na brancura violenta. Ergo-me, vendo vermelho, e o novo salto não tem menos glória. Por um menos que faz mais. Por um êxtase que me sucumba a vista, conduzindo-me a crer, fé, que ouço de fora, no fundo mesmo não é mais que coragem. Lembro: irei morrer. Agora: a vida; brancura, melodia, suavidade.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Ato de exultação

Quando vejo, aprendi contigo. Qualquer pedaço meu adormecido, soterrado, de repente trazido à vida. De repente, vejo que são fragmentos de penas e glórias minhas já sentidas, estilhaçadas, perdidas, reunidas, aqui postas ao lado das tuas. Ouço qualquer som que me parece vir de dentro, mas é só teu canto de homem simples. E, por seres a mim novo, és quase nostálgico e antigo, de uma elegância autóctone. Sinto qualquer vibração alvoroçante, que me invade por trás, ventre, quadril, pescoço, e deita por toda a minha pele uma camada de temperatura, densidade, hormônio: arrepios. Fecho os olhos, para ver-te na escuridão que persigo a caminho de ti. Aqui, estou protegida. Imune a tudo que não vejo; e tu, sabendo, cerras infindo o que eu queria ver; tu, também quase não vendo, mas vendo mais; tu, à meia-luz, és choque térmico a cada derramar de olhos. Que os meus incontidos brados se façam ouvir em teus silêncios. E a vagareza dos teus movimentos conduzir-me-á àquelas montanhas nunca nem imaginadas. Porque também a tua urgência enterrada no meu seio far-se-á meu novo ânimo, minha recomposição, história sazonal de outras formas de ver. Que a paixão me afaste do pensar as coisas, e que eu veja no horizonte todo o sentido de fazer-me tua; que eu aceite o não ser livre, avesso reflexivo de ti, mordaz na tua liberdade ininterferível, e possa logo compor meus próprios sons. De repente, eu preciso me aceitar, aceitar minha brandura, transigir, entregar-me, estirar-me toda nesta impressão viva, aquiescer-me toda nesta tênue e aguda inclinação, que me toca sempre no sótão das palavras mornas e na varanda das terminações nervosas, ardentemente, consciência plena de habitar um plano outro. Será, será que posso dizer, dizer de haver-me transportado, por ti, a qualquer vislumbre de mundo novo, irresistível fluidez. Em que me encontro pura e transformada, reflexo do querer ser, peito aberto, debulhar de ondas no meu coração que foi aos ares em chamas. Evento que se me apresente fora de categoria, comprometendo em sopro a estrutura. Que sentido dar a teus ventos, proximidade e distância? Que eu nunca fale medo, mas respeito. Ecos, oceanos inteiros em concha, teus ouvidos que deixem mergulhar minhas dores, meus ouvidos que peçam por receber teus prazeres, todo um corpo que se molde para aconchegar o teu. Fim.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Iminência

Eu deveria ser sozinho no mundo.
Eu, Steiner, e nenhuma outra coisa
viva. Sem sol ou cultura, eu, nu numa
pedra alta, sem neve, ruas, bancos ou
dinheiro; sem tempo, sem respiração.
Então, eu não teria mais medo.

Para antes do homem, e além do homem, são as paisagens nunca vistas, todos os mundos possíveis, a imagem inconcebível, porém, sentida. Em situação extrema, corda sobre o abismo, atravesso hipersensível. Todo o meu escape me grita a precisão de esforço demandado. Meu ato extra-humano. Meu êxtase extra-humano, porque é extra-corpóreo, é extra-mental; meu sentimento paira além da minha existência, por sobre a minha frugal racionalidade, além dos portões de minhas abstrações de idéias, sempre, por um triz, fora do alcance do exprimível. E meu olhar é espelho. Sair de si, deslizando incontentavelmente para o maior. Caio para fora, porque minha cultura não mais me detém. O vasto me chama, e já não posso ler. O que são palavras? Já não posso ver coisa alguma que não o mundo inteiro, possível nos caminhos da iminência do morrer um dia. E é, assim, a simplicidade sempre almejada, latente na epiderme dos meus desejos, soterrada nos atos contínuos de meus dias de vida, desvivida. Na natureza, vejo que é tudo interior e exterior. O fazer perceber é grave, porque queimam em minha pele todos os afetos, ardentes porque um dia caí neste molde de pessoa que sou. Petrificada em gelo nesta obscuridade. A miragem é o outro lado do abismo, apenas vislumbre. Um outro estado de matéria me espreita. O sublime, infinito, por um triz. Se é perigo, receio do desconhecido: fico à beira. Tortuosa, falível, silenciada.

domingo, 25 de novembro de 2012

Sonâmbulos

Era assim tão escuro, que eu nem aceitaria chamar de azul. Mas era meio marinho, talvez porque eu estivesse mergulhando. Ofegante, ritmo disparado do eco dos teus sons nos meus braços abertos. Eu só não queria ter que te ver de partida. Que este amor só me veja de chegada? Que este amor não me fale das semanas que se estiram no tempo. Que os dias entre as nossas poças d'água não me façam desaguar em descompasso. Porque, enquanto olhava, eu estava azul. De calmaria e sargaço. Teus ruídos, a marcha da tua voz compassada, os verbos caindo sobre mim feito onda. Se partisses, eu saberia eterno o movimento dos teus quadris. Eu sentiria enterrados os movimentos das tuas mãos. Teria sido tão bom quanto qualquer dia. E eu não ouviria teus lamentos, tuas insensíveis considerações. Mas eu olhava, e era tudo vermelho, agudo, obscuro; antes dos olhos, foi um arrepio de alma o que me fez saber-te trêmulo, extremado: olhei, e era mesmo, como se a palavra na tua boca de fonte estivesse assim prestes a despejar em mim um peso enorme, uma nova violência, um escabroso temor de eras irreversíveis. Aí, quando te vi inteiro, dando-me a mão a segurar diante do abismo, senti-me tua como nunca: assustada, na excelência da palavra, mas assustada com a minha falta de susto. Reflexo que eu via. Do azul ao negro, eras escarlate, escancarado no meu colo, vibrando minhas veias caladas. Então, calaste também. Ponte desfeita, retornaste ao alvíssimo, inacessível e distraído. Se eu te pudesse beber até à última gota, para que não mais te afogasses no que falta dizer. Se eu te pudesse ser luz. Se eu te pudesse pedir que ficasses. Sem aviso prévio.

Residual

Não cultivar; não fazer da cura do teu egoísmo a minha missão; não colher o fruto das nossas mágoas; não levar à boca o teu veneno. Não buscar decifrar o segredo dos teus olhos. Que não me vêem. E, por terem uma vez visto, fazem-me agora inteira invisível. De nada adiantaria ser cega. Estive vivendo nas sombras da tua música. E o que vejo me arrasta feito onda de volta àquilo que perdi.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Hermético

A cada dia, ocupas variado um fragmento do meu ativo pensar. Hoje foi porque li: "os imponderáveis das relações interpessoais". A verdade é que nunca te pedi que explicasse nada. Também porque, talvez até sem saber, eu já entendia. O entendimento, porém, não faz sozinho a harmonia secreta. Como se eu buscasse qualquer cumplicidade escura, escura, escura. Que, de tão leve, se fizesse natural. Teu suposto desequilíbrio como que me faz mais obstinada no equilíbrio meu, assim algo de frágil ou inamovível, sem meio termo. Que desvias, para onde queiras, e também sempre a erguer paredes entre os mundos, fazendo-me inquieta ilha sem diacronia, hipersensibilizada. Então, desvio. Conjuro as feições da tua seriedade em pensamento, já inibida de categorias. Que peso me dás, sem me dar nada. Que peso te dou, oferecendo o que não queres?

sábado, 17 de novembro de 2012

Anti-estacionário

Oito tempos morridos, oito folhas caem,
oito flores nascem sob minhas raízes
soltas; se primavera, outono espera.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Como é que se vive?

Não pode ser coincidência eles falarem de outono. Que dia é este, em que sinto desabrochar em mim solitária flor, água de primavera? Ritmo ensolarado dos meus dias de espera, refúgio, cultivo, sombra, encontro, colheita, consumição. Oito tempos vivi, para saber hoje aguda a reticência da minha morte. Estou enamorada. Aqui me encontro como anti-blasé: o avesso da indiferença. Ser passional. Um nicho em que tudo importa, um nicho em que me encontro, sonhada, sonhando palavras. Serei sonhadora profissional. Que a gente sonha com um rigor tal, que é pura entrega humana. Já não se separa interesse intelectual do emocional. Sou o inferno humano, o problema humano de estar em conflito com tudo a todo o tempo. A vida não é dada, o mundo não é evidente, a comunicação não é transparente, o sentido não é unívoco. Não é que o mundo se adapte ao sujeito, nem o sujeito ao mundo. É que não se separa o mundo do sujeito. É que há outras formas de existência possíveis. Há todos os mundos possíveis. Estou aquém do entendimento. E completamente imersa. As contradições do existir. Mito. A pergunta é sempre a mesma. Como viver?

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Oceano de ruído

Eu me revelo? Falo fraqueza, falo força, falo de queda, como quem fala do tempo, do trânsito, da economia internacional. Falo de dor, perda, necessidade, angústia. Falo sem falar. Se olho quieta, já sabem: estou falando pelo silêncio. Sussurrando: cuidado, sou a delicadeza inquebrantável. Sou o impacto cálido e transversalmente frágil. Corajosamente receosa. (Na hora mesma em que escrevo estou avessa à necessidade de pôr em escrito.) Falo transparência, desafio os silêncios. Curiosa. Quero nadar num mar de confissões. E é estranho, porque não quereria falar nada. Quereria ser conhecida, entendida apenas, ou melhor, respeitosamente ignorada, se calha, benquista, por me ser, sem me entregar nas palavras. Mas só entrego? Falivelmente. Há que parar. Falar nada. Mas é fome de ouvir? Curiosa. Quero nadar nas águas de alguém. Se me apetece. Me apetece, eu quero mergulhar bem fundo. E acabar encontrando umas profundezas que talvez ninguém devesse tocar. Mas é porque me sinto tocada. Sensação de entendimento. De repente, pode ser qualquer culpa de ser imperfeita. Porque me importo. Mas sinto mesmo que entendo. E sinto mesmo vibrar dentro de mim qualquer vontade de esforço. Quero me igualar. Olho no olho, falar a mesma língua. Não falar, pelo mesmo silêncio. Em respeito absoluto. Pelo que há entre duas pessoas. Espaço. Encontro de águas. Pelo limite que existe. Se querem que exista, e deve existir. Existirá. Não atravesso. Confronto? Impasse natural, barreira de corais. E dá vontade de falar amor, falar alegria, falar paz. Mas é tudo uno. O claro não existe sem o escuro. Se me põem na sombra, como brilhar? Se me ofuscam, como não enegrecer? Me sinto excessiva, transbordante. Quero ser contida? Não quero conter. Se deixassem, eu seguiria nadando nadando nadando eternamente no caminho para a distância, cada vez mais eterna e mais profunda, cada vez mais compreensiva, invasora, e ainda tão sutil porque aí eu estaria me habituando, camuflando em meio à paisagem. E não mais me sentiria o elemento estranho, um forasteiro. O ser humano não quer o novo, quer o mesmo. Resignação, até mesmo à idéia de não resignar-se. Apego, até mesmo à idéia de desapegar-se. Estou muito calma com a idéia das coisas. Quero ter senso de proporção. Ocupar um recipiente, definir meu conteúdo? Servir-me a alguém? Para que tanta racionalidade? Não: quereria ser brisa que toca suave a superfície de um outro, mas assim, a superfície inteira. Ambiciosa. Mas num toque de pura cumplicidade. Meu desafio de conhecer. Ânsia? Estou conhecendo, apavorada e sereníssima. Se vem onda, enxurrada descontrolada, não é para temer. O choque também é bom? Não será impasse, mas talvez uma nova corrente? Vertente, vertigem. De consciência aguda do contato? Pois, se faltar o ar, se atinar aquele senso de emergir, restabelecer fortaleza? Como se deixar imergir, engolfar-se, em águas incertas, mar aberto: imensidão? Imensidão. De cada um. Somada àquela, que há entre duas pessoas. Pois, preencher-me. Iluminar-me dela. Mas não há luminosidade sem o escuro.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Sobre a natureza da luz, parte dois

Que belo dia para amar. No intransitivo. Quando abre a chuva e fecha a luz, amo. Quando seca a água, e molha cor no ar do céu, amo. Quando a estrada à frente é só espaço, vento, transcendência livre. Quando o dia sorri sozinho. Quando eu me sinto bem-vinda. Quando eu sinto as teias todas, redes se emaranhando firmes em minha mente. Quando é perspectiva. Quando não há fome, porque tenho medo de pensar o futuro. Quando sei que serei feliz. Quando quase me sinto chegando. Quando sei dos outros, sei-os sorrindo, sei-os livres. Amo-os, deixando-os. Quando fecho os olhos, amo. Quando me sei existente, pessoa una, pessoa inteira, quando caminho pelo universo dentro de olhos fechados, quando persigo, quando transmuto um gesto, quando sinto vibrar e sonhar o universo mesmo através de mim. Abrindo os olhos, respirando mundo, encontro. Amo. Quando alguém vai embora, amo. Quando me percebo falível. Amo. Quando percebo todas as linhas tortas. E ecoa um som quase ficcional. Que deve vir de dentro da alma. Quando me sei inteiramente separada, e, justamente porque separada, unida a tudo. Parte dissoluta no todo da vida. Natureza. Quando me sei viva, animal. Quando me sei pensante de ares inobteníveis. Quando vejo fragmento de tudo em todas as coisas, insustentabilíssima leveza em cada detalhe, tudo ao mesmo tempo, temporalidades, acasos, queda, nó, conexão. Quando me sei póstuma, modificada, sobrevivente, lutadora, cintilante, íntegra, e sempre liminar. Simplicidade. Vazio. Não há escuro na alma neste instante. Quando me sei beleza, porque amo: amo.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Infra

Para um mensageiro,

Que eu te devolva a fome do meu primeiro grito.
Hilda Hilst

Era noite alta e dormias. Dormias, e sob a lua e o abafado de meu quarto te tornavas o mundo inteiro que eu via. Respiravas, e o teu ruído se tornava toda a minha atenção de queda, abismo, ponte que atravesso aos tropeços. Se me fazes calma, porém ainda insone, não me interpretes; é sono desregulado, meu bem, é sono que me tiras, dás, roubas, crias, e sonhos fantásticos que tenho ao teu lado. É que não atravessei ainda a noite em ti. Imagino-te lendo meu verbo, imagino-te sonhando minha voz, imagino-te repousado em minha cama, sem nem precisar imaginar. O dia seguinte me aguarda com a lembrança de teu calor esparramado em meus lençóis. A promessa é muito grave. A noite seguinte é como brancura da lua, não a tua, derramando-se em minha pele para fazer-me gasta, e constranger-me a repousar. Vejo-te dançarino pelo meu quarto de breu. Deito-me, enterro-me neste reino, e quase ouço de mim o mesmo grito, o som do teu corpo sobre, liberado através de mim, percuciência agressiva. E encontro em cantos do meu corpo a febre grave da tua fome em minha pele, aquele dolorido extasiado em que me abandonas toda vez. Era noite alta e tive de deixar-te, para não quedar a estudar-te os traços, contar ritmo respiratório do teu ar, fazer música do teu som, pairar sobre teu peito oscilante, criar texturas e estampas na tua pele. Porque era claro demais, pungente demais, sentir-te ao meu lado. E a promessa do dia seguinte em companhia da memória sempre hipersensível. Mais tarde, assisti também ao teu amanhecer. E as cores que surgiam no canto do céu que perscrutavas pela minha janela eram assim estranhas porque não me atingiam, não me faziam dança aos olhos. Eu te abraçava e buscava que me desses os olhos para olhar, como se eu quisesse derramar-me dentro deles e escorrer para o interior da tua alma. E que o céu não me leve a mal, mas tua presença prende como se eu quisesse me fazer nela uma luz ou amor morno, no intento de afugentar tuas aflições todas, engolir teus conflitos e fazer-te plácido, plácido, e quem sabe assim viesses mais para perto de mim. Ser todo luz em nossas noites, deixar entrar no teu humor qualquer pedaço meu. Porque estou invadida, um tanto sem norte, sofregamente tentando fazer-te conhecido, enquanto desnudas assim meu coração. Não te posso impressionar; sou luz fraca, suave, meio vacilante; e tu, és luz ofuscante, pungente, mas do outro lado, como se eu não pudesse chegar. Espero-te sem ânsia, porque me fiz calejada, mas ah, por minha irrisória mania de verdade, que se libere meu grito, meu grito por ser conhecida: é que estou entrando, caindo para dentro, caindo, caindo, caindo, deslizando... Sim, é deslize.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Desamor

Só eu não durmo
Pra te pensar.
E agora escura
Do jugo dos sentimentos
Irreversiva, suicida
Tateio aquele rochedo
Do ódio de desamar.
Hilda Hilst

Agora que não sinto amor, enxergo mesmo em outro nível. Toda a minha história paira na superfície dos meus atos e pensamentos, tranqüilidade de água morna, transparência, claridade. Agora que não sou amada, sei que o fora. Agora que não me é permitido amar, sei-o bem, tenho o profundo entendimento do ofício, sei amor como se fosse toda a minha arte. Agora que não tenho amor, penso amor como se respirasse. Agora que o amor não está em mim, estou nele. Submersa, quase afogada. E é amor para qualquer lado que eu olhe. Os trechos da minha história estão dispersos, úmidos, puídos no meu passo. Arrasto-me na terra, sorvo o ar, aflita por céus e vôos, queda, terra na boca, água em minhas narinas, saliva em meus ouvidos? Na boca, um gosto de ilusão, pó, desejo desfeito? Nada. Estou enterrada na pouca eternidade de ser, na pouca infinitude deste mar que é meu nicho, golfadas, lufadas, entrega pura, repressão, sufoco, cruel onda que me arrasta para dentro de mais desamor que eu aceito desaguar para dentro de mim e tomar conta, preencher, dominar. Agora que não posso pedir amor, invade-me uma falta, buraco de concha, sal nos olhos, areia descendo pela garganta, contendo o grito. Um amor que me permitisse medrar? É sonho, e já não quero sonhar.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Cintilância

E pretendes não gostar de nada. Se te distrais, é glória: de repente estás gostando. Agitas-te, sublevas-te, e soltas assim no ar um pó de encantamento. E tudo vibra em mim. Vagueias, inundas teu espaço, miras, se é soslaio, se é distração animada, não chego nunca a descobrir, se és absorto, conjuras qual pensamento à luz do meu tremor, sou temerosa, denso corpo a contrastar com teu ânimo, és quase dançarino, do jeito que não te acomodas, porque se calha, se te repousas, se me condenas a qualquer esmero de quietude, sou curiosa, valente amante, curvo e me debruço, quero despertar-te todo, atiçar qualquer desejo, a ver se voltas a me investigar, a ver se enxergo nas tuas profundezas indecifráveis, críptico, só pode ser caverna, é boca de morcego, estou certa disto, cordura ou crueldade, espio para dentro do teu sorriso que me devora, e é fulgor de todas as máscaras que eu pudesse conceber, milhões de muros que eu erguesse em torno de mim quando a luta contínua é só chegar-te ao outro lado, invadir território, como me fazes ao olhar-me assim, ao desolhar-me assim, ao ser assim o distraído esforço que destilas no meu corpo. Quando queiras. Fecho-me, sem ver-te, e é mão na boca para que eu me impeça de conjurar-me no grito, apossar-me da liberação, ter-me tão retida na tua força, compressa no teu peso, ardente no teu fogo, que eu me vire, desdobre, desfaça, desapegue, deixe de sonhar, para ver estrelas na tua cara, queimar-me e dissolver-me no teu canto, canto inaudito que fazes por dente em minha pele, perfurando, centímetro a centímetro, segundo a segundo, virando minuto e metro, que dança fazes sobre mim, se calha é coreografia, que pensas como se me conhecesse, enquanto só me descobres, aos poucos como deve ser, e se me ergues, se me guardas, se me evocas, se me tomas inteira, regozijas, já renasces, recobres-me de todos os beijos, urgência, violas-me, fazes-me esquecida, pernoitada, avessa, exausta e esbaforida, tenra, mastigada, saciada, fazes-me nova, surpreendida, atada e colhida, anti-hermética, melíflua. Palco para que componhas teus passos de feiticeiro, para que aduzas teus detalhes, é o que sou, despindo-me, disponho a ser o que fizeres de mim, que mais que espectadora, eu te exprimo, experimento-te, danço contigo, acanhada, abocanhada, sequiosa por teu líquido, tua fonte de oblíquo, ângulo extremo, choque bem-vindo, eletricidade, e me vais guiando, pelo torto que é o teu desejo, pela torta palavra que é a minha, pela avidez que é palavra de ordem, meu canto que da suavidade morna vai ao estridente mais agudo, minha acuidade de sensações, hipersensibilidade, hipertrofia da minha resistência, não resisto, não me abalo, não persigo, mas recebo, sou toda derretida na tua penetrabilidade, vivaz na tua austeridade elegante, se és sério, se és louco, se és escárnio, já não busco, és o retrato perpétuo da minha vontade agora, berrante oposto de minhas quedas. Se calhas fazer-me cair por ti, é tua ventura. Pois cai a mim também, sem ver ponte nem nada, sem abismo, sem falha, a pergunta impossível, a resposta velada. Cai, cola-te em meu corpo, vê em mim o que é cego, atenta-te bem para o que a boca grita sem dizer. Chega-te inquiridor, mas quase sem ouvir-me, dize, sem pesar a palavra, sem parede no meio, quero atravessar-te, sem fulminação, mas morna, suave, pronta a colher teu conflito noturno, que é minha paz de alvorada. Alvoroço-me toda, que fico inquieta, sublime, desperta, atônita, besta, à flor de todos os sentidos, cinco e uns tantos que crias ao pousar em mim tuas mãos de asa. Vôos altos, quedas tanto maiores, ar, vento, frescor, o teu rubor e o meu viço, o afago preciso que me faça composição aeroterrestre, amortecida, sorvida, pacificada, ternura crua, cozida. Levada sou, porque me levas. Repouso dentro dos teus olhos, desabrochada, declinada, descarregada, desfeita, feita no nó que de repente me ata a ti, desato, desato a cobrir-me de brandura e serenidade, consciência plena, que me sussurra insinuante em outro nível, abafado, inamovível, curto, direto, penetrante, inegável: gosto de ti.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Vá devagar

Prefiro dar-te coisas que não me poderias pedir
do que te pedir coisas que não me poderias dar.

Então é compreensão. Que me abala e interpela à parede que ergues entre Tu e Eu. (Porta.) Mas é porque entendo: a parede é o nosso próprio entendimento. Entendo, entendo; colho o que me dás, botão de rosa em minhas mãos pequeninas, sorvo a graça, tua cumplicidade, e cultivo melíflua esta relação de opostos, este estranho mutualismo. Porque é dádiva. Não há metafísica que me distancie. Estou perto, porque longe. Que me venhas com espinhos. Porque tal é a tua realidade. Então nos dispomos assim, sobrepostos – um engolfa o outro –, mas lado a lado, parede, antessala: Tua realidade, parede, e a Minha. Eu através dela. Metafisicamente. (Perscruto. Janelas, para que me venha luz. Janelas, que eu tentaria abrir a ti, roubar a mim teu escuro, dar luz de presente. Se eu pudesse crer no que vejo.)

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Ser feita de amor

Água esparramada em cristal,
buraco de concha,
segredarei em teus ouvidos
os meus tormentos.
Apareceu qualquer cousa
em minha vida toda cinza,
embaçada, como água
esparramada em cristal.
Ritmo colorido
dos meus dias de espera,
duas, três, quatro horas,
e os teus ouvidos
eram buracos de concha,
retorcidos,
no desespero de não querer ouvir.

Me fizeram de pedra
quando eu queria
ser feita de amor.

Hilda Hilst

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Viajante

Independentemente, invariavelmente, e também sem esperar um obrigado: quero agradecer. Tu quase não me conheces, mas de ti recebi um presente precioso: nem seria capaz de explicá-lo. Se por um instante me fizeste sentir única. Já me morro em gratidão. Como explicar o choque anafilático que foi o nosso encontro? Penso em te dar céu, palavra, música, corpo. Penso em te ouvir. Mal sei em quem pensar. Sigo vivendo, já pensando menos, sentindo esvair-se sempre a imagem do teu rosto, fugindo da luz, voltando às pressas, vendo ao fim de tantas noites o sol nascente; quase involuntário. Faço-me menina de sol, cativa, insone, como se encarasse o estender grave da noite apenas pelo aguardo da promessa de luz e cor mais tarde. E que metáfora de vida. Perscruto o breu em que me crio como a antecipação do brilho que me pode invadir no alargar do tempo infinito, possibilidade, possibilidade, vida eterna, meu bem. Quando eu for céu, palavra, música, corpo. E ouvidos. Não, talvez não haja de ser por ti, pois o que pedes é nada... E sou assim meio dedicada, não a qualquer um, mas a quem me fala em paixão que desnorteia, desnorteia de tão bem-vinda. Estou ávida, só quero ouvir, só quero dar. Mas que medo, que medo de que nunca baste. Que medo de não ser capaz de dar nada! Um dia, alguém me pedirá tudo. E eu vou dizer: toma aqui.

domingo, 7 de outubro de 2012

S(c)inestesia

E as tuas músicas têm assim o gosto dos teus olhos me encarando.
Os teus olhos, que já não me olham, têm assim o som da tua pele me comprimindo.
Já em memória, porém, em tempo presente. Sinto a tua ausência como se a ouvisse...
É para ti: não precisas fazer caso; nem de mais, nem de menos. Já era afeto...

Flor da pele

Que jeito tens de conduzir-me. Estou como que hipersensível. E faz perfeito sentido. Sim, tem de haver uma explicação, e é esta: há química. Explosão. Que jeito tenho de ser conduzida. Mas é via dupla. Vens, e vou, e vais, e venho, e tudo é fluxo. Univocamente? Inequivocamente. Deixa, porque não é falha. Deixa, porque não te quero assustar. Tens um jeito de encantar-me, que sei que não é esforço algum. Descontraído. E tão firme, que ah, no contraste comigo eu tento estar à altura. Como oscilo! Estava imersa em minha quietude. Sóbria e árida, mas ah, que suavidade intensa tens em mim. Foi qualquer coisa de voz que eu ouvi com toda a atenção do meu ser. Estavas assim tão perto, que já não te podia diferenciar; e a voz se imiscuía no sorriso e se fundia na textura da pele assim com a leveza de tudo que só é. Estamos sendo, apenas, sem predicativo. E a voz me dá calma, uma calma sentida e almejada, mas quase distraída, com aquele meu esforço sutil de ser eu mesma. Eu mesma? Eu mesma... Porque estou contigo. Que jeito tens de me fazer cativa, calada, introduzida, alheada, interessada, fácil vivente, amante, perdida, silêncio com mão na frente da boca. Desculpa, não era para ter chegado assim tão profundo de repente; olha, é mania. Sou "intensa". Desculpa: era assim um sentimento antes mesmo de eu tê-lo sentido. Se falares nele, eu me encolho, porque ele existe. Porque és tu, e não um outro, como há muito não me haviam tocado, talvez como nunca houvesse sido... Como poderia me confessar? Acho que encontrei a palavra: receosa.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Reciprocidade

O que significa dar certo? O que significa ser bom? É não doer? É não pesar? Que pese, que enleve, que doa muito, doa, dói porque é real – tão real. Pesa, porque importa. Afeta. Porque é afeto. Sejamos crus aqui, transparentes. Pois que dura um efeito. Percuciência. O que significa dar certo? É futuro? É certeza? Comprometimento? Doação? Sinceridade? Aceitação plena? Pois que nos submerjamos ao âmago da questão. Falemos do cru e tenro da relação humana, todo o meu objeto, todo o meu escrutínio, todo o meu enigma, toda a minha perdição, e toda a minha fortuna. É aqui que se prospera. Pelo amor de Deus: o ser humano é social. Você não existe em sua própria medida. Por favor. Entenda isto. O que falo só existe porque alguém me lê, e só foi escrito porque alguém me existiu. Quando me existem, e eu existo os outros, vem alguma coisa. Pensamentos, idéias, crescimentos, devastações, agudo contato com o íntimo ainda que mais periférico de alguém. Pontes. O que significa dar certo? Mutualismo. Aquela relação bilateral. Se não é unilateral, é boa. Que doa. Que pese. Que enleve. Que faça reinar a estupidez, assim de vez em quando. Que faça reinar qualquer jovialidade. Coisa de ver o dia belo, de ver nas coisas as cores. Está nos olhos de quem vê. Vejo porque me fizeram vista. E como estava a ansiar. O efeito dura, há de durar. Sou fácil vivente. Agrado-me com gloriosa facilidade. E viverei. Social. O que significa dar certo? Reciprocidade. A ponte não é unívoca. Bate e volta e bate voltando. Qualquer sensação de reciprocidade constrói aquela ponte. E a reciprocidade pode ser de qualquer coisa. Ponte feita, é sentimento. Dá certo. É simples. Não, não é simples, porque é o mundo, é a base de tudo. Mas, justamente por isso, é simples sim. Feito célula, unidade básica da "vida". É a unidade fundamental da existência humana. O relacionar-se. É, é, é. Não nos debatamos com esta verdade. Buscamos em tudo o contato. Um íntimo, um encontro. E o encontro consigo fundamenta. Tem de ser-se um para falar em correspondência a outro. E a fala, quando bate e volta e bate voltando... É dança. De comunicabilidade. Clara e crua e nua. O conectar-se. Dar certo...? Romper um abismo entre duas pessoas. O ser, incontentavelmente aflito por comunicação. O ser, incontentavelmente faminto por verdades, ainda que seja para sentir qualquer eco de confirmação da sua própria. E é apenas eco, mas também, a existência inteira. Que se me apresente aquele que tiver plena certeza de si em si por si. E que mo lo ensine. Sou eu, mas não me acabo. Isso não é defeito. Sou eu, mas não me completo em mim. Busco a continuidade...

sábado, 29 de setembro de 2012

Intimidada(e)

Para me lembrar de que, um dia, não tive esse medo-de-reação tão gritante e palpável, concreto, que me faz assim companhia ao lado. Preciso estar em outro nível, em outro âmbito de consciência, para interagir. Não: eu sou mais esquisita ainda. Como é que eu vou explicar que só ele não me intimidava? Não: as pessoas são gentis, mas são um enigma. E só ele eu era capaz de decifrar. Que nome dar a isso? Intimidade. Vivíamos em naturalidade completa um em reação ao outro. E já não posso me naturalizar com mais ninguém. O processo me dói, a invasão me fere, a displicência, o não-dito, o cansaço? O abandono. Estou assim tão sozinha, que mal me lembro de como era conhecer alguém, e ser um ponto central. Ah, de que me valem os pontos periféricos que me fazem ser parcimoniosamente? Não, não quero a dependência. Já a tive, e a sei bem: é dor demais para que alguém deseje repeti-la. Mas a centralidade. Uma intimidade qualquer que não me doa tanto também. Que não me faça desinteressante-interessada. Que não me faça questionar toda e cada palavra, debater-me em dúvida e temor profundo de não ser conhecida. Por que eu haveria de querer que me conhecessem? Pois ele conheceu, conheceu e se foi; e eu o conheci, conheci e me fui! Sou hermética, esquisita, cansativa, olho para baixo, tremo, viro um copo, uma garrafa inteira, olho de soslaio, quero sumir! Por que fazem parecer tão fácil? Chegam, na naturalidade imbatível. Não: sinto-me além de tudo. Vejo-o assim, e é a ponte inatravessável. Um abismo que não tenho forças para transpor. Socorro, daqui do outro lado tenho alguma coisa para dizer que não sei o quê. O que ele me deu é grande, importa, importa muito, afeta alguma coisa. Quisera não me importar. O que ele faz existe, existe grave, existe em alto relevo, existe em primeiro plano. Por quê? Porque estou curiosa. Fome de atravessar a ponte. Quero tanto, que me precipito. E é mesmo precipício lá embaixo. Sei-o bem: do outro lado me convida, mas às vezes se impacienta. Vem ou não? Venha logo. Estou cansado. Não vou te buscar aí. E tem outras pessoas à espera para atravessar, sabe? Não é caso raro nem especial. Esse é o problema: faço da coisa um caso raro e especial, mas sou apenas uma noite, um segredo, uma carta, uma cama, um deslize, um passado curto, um fragmento, um poema morto, uma impertinência, céu nublado com chances de chuva a qualquer hora. Não sei, estou atormentada ainda pela importância que afinal não tive. Sozinha, sozinha, sozinha. Não estou infeliz: estou solitária. Sim: solta, perdida, vaga, desapropriada. Sem desprendimento também: solto-me de tudo para perceber que estou presa ainda ao nó mais central, mais fundamental  o meu medo. E aqui estou, sem a menor perspectiva de me tornar a companhia de alguém. Atada. Às vezes, eu sinto tanto a falta dele que parece que vou morrer. De novo. Sacudo-me, e há vida nova ainda. Desemboquei já em uma coisa outra. Rio e abismo e ponte caída lá embaixo, ainda. Fracasso? Vitória?

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Constrangida

Que belo é o mundo... Minha hora favorita, é crepúsculo com chuva. Passo diante da fonte perto da torre onde nunca fomos... Passo diante do nosso hotel de namorados... O escuro dança com minha lágrima, contida. Sou insonte. Impenetrável. Quem me vê não saberá que eu carrego um buraco negro. Toca-me, se tens coragem... Cairás para dentro... Arrasto, peço perdão, e te arrasto de novo... Então não sou transparente, sou turva... Sou artefacto: minha arte nula de sonhar-te, o fato nulo de não ter-te, vou crescer-te e anular-te, como fui nulificada... Não me digas nada... Porque coleciono palavras... Sou romântica pós-moderna... Fujo para o vento das árvores... Que placa me guia ao caminho de mim? Sou inencontrável... Se alguém me esbarra, tenho-me por descoberta... Ah, que errada... O escuro parece teu cheiro cantando para me ninar... O frio parece teus olhos escrevendo para eu te amar... Mas já oscilo em ódio ou indiferença... Tanto faz... Não, não tanto faz, não odeio nunca... Darei as costas amando, todos, todos, todos que me violam... Eu sou violenta, adoro dor... A sede parece tua voz me exalando um sono... A solidão parece tua pele me escondendo... Que irrisório... Que grave idéia besta... Que escárnio me circunda em toda e cada relação... Menos contigo... Mas não existes... Quero ser real, respeito, companhia... Sinto falta de qualquer íntimo... E teu íntimo, vê só, era eu... Mas se me queda aqui meu íntimo, que és tu...?! Quero nada, quero um anestésico... Dê-me anestesia, alívio, e eu farei disto também coleção... Pareço louca... Consterno... Que peso, que trauma, meu bem, meu mal, o que é que fizeste comigo? Nunca mais me sinto normal...?!

Ele bebia água... Todos eles bebem água, bebiam, beberão... E tudo vai e passa, quase nem se sente! Não é para sentir. Simplifique. Dessensibilize. Dê aquela descarga elétrica na tua paranóia. Sê tu...

Bicho de sete cabeças...!

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Sobre a natureza da luz

Longe, lá de longe, que canto é este? É som de voz nenhuma. Parece vento, parece onda. Copiosamente sofro. Copiosamente, vou digerindo o resultado de cada ação. Copiosamente padeço no meu paraíso, assim tão irritantemente humano. Comum e singular. A única constância é o estado de variação. Há que haver uma restauração, ou renovação infalível. Infalível: se falhar, reergue-se. Sem escusas. Sem pecados. Reergo-me, vem-me um agudo ao ponto entre as sobrancelhas. E ecoa. Sou propagação, meu bem. O toque vibra. Vês? Não vês, mas podes sabê-lo. Estou querendo muito te contar. Contar que não ouço voz alguma? É o ébrio tomando conta de mim. Flutuo no escuro. Como me ensinaste. Como é que eu vou contar que aprendo? És misterioso. Tens um sorriso escondido atrás do ângulo que não me calha transpassar. Tens qualquer urgência de partida e ausência. Não persigo. Vês que me excedo? Só de pensar-te. Desafio qualquer senso de fronteira. Pois que perdi o tino da circunspecção. Estou solta. Ouvindo instrumental. Impura. Colhida e largada. Flor condenada, sabes? Mas flor. E investigante. Farei da tua distância um dom. Farei. E, tudo que de bom vier do toque deixado, eu cultivarei. Vês? Sobejo no ambiente inóspito. Não sou flor de véspera. Minha luz é póstuma. Devo ser novembro. Copiosamente emudeço, para ouvir os sons da natureza. A vida fala a mim. Sou muda transviada. As raízes todas se desatam oblíquas. Sou vida, não faço cálculos, não me atenho a ontologias (sobre)humanas. O humano em mim é só som e ar e água. Natural. Sou qualquer coisa, matéria inesgotável. Existo em paz, em conjunção com os tempos. O instante. Amo-te quando apareceste, amo-te quando inexistes, amo-te quando me esquecer de ti. Ama-me quando me fiz notável, ama-me quando me faço ignorada, ama-me quando sequer lembrares de um dia haver-me. Amemos, sem tempo verbal. Sem lógica de sentido. Sem saber flexionar com o corpo o verbo amar. Sem curvatura ali onde o tempo cede, e o som se ouve, lá de longe. És distante. Estou querendo muito te ver de perto. Não há sentido; é sussurro de vento. Não pesa, nem me carrega; não mata. Insinua. Para fazer-me a sombra um tempo, e não voltar, se o caso for. Não te assustes. Foi qualquer detalhe de vida que me fez planta aérea, qualquer desejo secreto de ser epífita. Qualquer luz tua na minha. Agradeço a cortesia, e já me ponho em retirada. Bem devagar, para ver se alguém ainda me alcança. Mas sem espreitar. Se o caso for.

sábado, 22 de setembro de 2012

Fé revisitada

Para Victoria, Bibiana, Lia e Carlos

Porque há um sentido maior na receptividade. Colhemos o que nos é dado, buscamos no dado o sentido de vivê-lo. Porque o mundo é possibilidade: densa teia suspensa, céu aberto, chuva torrencial, liberdade. Como se anular uma possibilidade inexplorada? Como se contentar com um só caminho no mundo dos caminhos possíveis? Como aceitar uma certeza insustentável? Estou certa de não saber. E tu, que sabes, sabes-lo porque o sentes: Deus está, porque não poderia crer num mundo totalmente ou unicamente humano. Um mundo concebido humanamente, como criação contingente numa teoria de uma simplória "sociedade" de homens. Uma, em infinitas. O humano, na infinitude ontológica. E que garantia teríamos? Deus está, mas não como uma força consciente. Não fere. Não calcula os nossos caminhos. Porém, os caminhos lá estão. Traçados. Por qualquer coisa maior que acaso. Não me creio superior: como haveria de saber inteiro de antemão o "meu" caminho, ou mesmo "o" caminho? Não. Há significado em buscar um íntimo nos outros, esbarrando entre si os caminhos. Cuidado: o caminho não deve ser inteiramente compartilhado. E os passos, só tu sabes como os dar. Que luz-guia espero ver no infinito do meu caminho? Deus me tem uma surpresa aguardada. Há qualquer ato de fé em consumir a noite e sorver a aurora. Bom dia: eu sou luz. Ninguém me vê no céu. E eu os vejo a todos. Vivendo a perspectiva do inexplorado. Vivendo a não-expectativa do momento agora a ser sorvido todo. É a protoexperiência de cada segundo pelo seguinte. É uma protovida de viver sem morte. É o protoamanhecer que se vive a cada noite. Eu amanhecerei. O céu, ninguém me dá, mas me fizeram ver. O poder da rejeição está em mim. As rejeições mais sutis são as mais horríveis. Céu, dê-me qualquer resposta, a duração da companhia. Dê-me um sorriso de ser lembrada. Dê-me a força de registrar esta lembrança de uma noite, de minhas noites, de sensações nunca vividas relembradas e compreensões destiladas e a revelação embriagada. Alguma chave gira em meu pensamento, conferindo nova lente ao meu mundo, quase um novo paradigma, não de raciocínio, não de racionalização, não de sentimentalização, não de emocionalidade, não de intuição, mas de vida, de vida, de vida. Viver. Não se tolha a vida, não se faça um corte brutal, não se limite, não se acate a conjugação de uma falha. Não se tema o deixar as coisas por viver, deixar as coisas ainda por vividas, deixar as coisas, deixar as coisas que não se podem levar, deixar o que não se pode desatar, não se tema o atar-se frouxamente aos laços todos. A vida é frouxa, a vida é branda e amena. Como se atar a tudo com tanta obstinação? O mundo é fluido. Balança e oscila e faz dança de ondas com todos nós. Tudo é igual e diferente. Ninguém me supera, ninguém me atinge, ninguém me basta, nem me anula. Ninguém me serve. Tudo se complementa sem preceptividade. Não há rigor, nem palavra de ordem. Estamos soltos. E é preciso coragem. O mundo requer pequenos grandes atos. Como "amanhecer". Ou "viver".

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Carnívoro

Mas eu não sou comum, e aí reside toda a diferença do mundo. Busco uma forma discretamente única de me mover pelo espaço, traçando as rotas menos prováveis. E talvez minha intuição calhe falhar. Sinto-me tão livre. Tão livre, que chego a perder-me. Certamente, quando você existia, eu corria menos risco de vida. Está em todo o libertador-destrutivo que permeia minhas escolhas diárias, das mais simples às mais determinantes. Mas eu não sou sua responsabilidade. São, sim, as minhas escolhas. Toda a questão seria o quão livre de fato me encontro para fazê-las. Se, por um lado, seu laço comigo me atava à vida, atava-me também a um certo ângulo do mundo. Não sei, e sei-o bem: transito pelos ângulos mais variáveis, busco libertar-me de todas as amarras possíveis. Porque se me resta ainda esta amarra, que me abandonem todas as demais. Que tudo que um dia tenha feito sentido seja ressignificado. Então faço o que você desaprovaria, e também o que você sempre quis que eu fizesse. Passo mal só com o ver você nas coisas mais esdrúxulas, porque é delírio. Sofro sem razão de ser? Sou fatalista, eu diria. Penso em morrer amanhã sem que você nunca soubesse do tanto que aprendi. Penso em morrer amanhã sem nunca ter dado a alguém esse mundo todo que eu senti. Porque há qualquer espécie de desolamento nessas convivências rasas, nessa espera-que-se-pretende-inócua, nessa fome de viver que não passa. Há qualquer espécie de inquietação às quatro ou cinco da manhã, um resquício de embriaguez, uma mão que busca algo que apertar e afunda-se no travesseiro, o rímel que escorre, os copos d'água pelo quarto, o hálito da carne ainda em minha boca, o som da sua voz cumprimentando alguém bem ao meu lado. Há qualquer resignação em minhas pilhas de texto rabiscado, meu cheiro de biblioteca, minha pele morena de sol castigante, as unhas roídas, a mão que bate qualquer compasso musical, o peito arfando, uns abraços que eu colho por aí para me carregar pelo dia. Há qualquer fracasso em minhas conquistas, que mais parecem aquele presente todo embrulhado a la Clarice o qual não posso dá-lo a ninguém. Que lindo, que belo, que gesto, mas que patético. Só não mais patético que esta tola necessidade (ou é vontade?) de me fazer cativante para alguém. Já não suporto ser cativada. Parece que estampo qualquer tipo de título de alvo privilegiado aos ataques. Parem já! Eu amo você, e você não me atacava nunca. Eu falava da cabeça sem hesitação, e os nossos silêncios eram agrado, um som de universo. Sinto qualquer cheiro de banho, e sei-me assim, totalmente apaixonada. Seja lá quem você for, eu ainda o amo. E respeito (muito humilhada, confesso, mas sincera) profundamente a sua felicidade. Você se tornou para mim tão comum, tão distante, que eu quero ser comum e me distanciar de tudo isto também. Quem é que quer estas memórias? Sei que esperava ver em você mais que um mero homem, um mero menino atropelando os outros e seguindo suas vontades. Forço-me agora a ser mera menina atropelando tudo e sendo inconsequente. Isso tudo vejo com grande choque, porque não sou você e disso tenho qualquer orgulho inexplicável. Não fujo, mas canso-me já de enfrentar. Vamos dar as mãos, e me ignorar juntos? Imagine só, eu tentando sublimar a minha própria identidade. Seria renovação? Há qualquer dor aguda em minha barriga; enrolo-me toda feito bola e penso em corpo reproduzindo agonia sentimental. Que idéia simplória. Que sentido há em desejar o profundo?

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Ninguém está errado

Então é verdade. Tudo que acontece me torna mais calejada. Não mais dura: mais calejada. Os calos parecem assim uma película de inteligência revestindo minha sensibilidade. E eu continuo branda, suave...

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Metonímia

As minhas histórias não têm personagem porque de fato não acontecem. São sensações destiladas. Nem eu chego a protagonizar. Parece que não falo do concreto porque não falo mesmo. Embora as sensações sejam o que há de mais concreto para mim. Vivo de furtos, pequenas violações que me fazem. O que sobra de viver é o que escrevo, as migalhas deixadas que eu colho adoravelmente do chão para alimentar meus sentimentos. Sou escritora sem enredo. Sou vida sem aventura. Escrevo em grande e genuína distração. Perdão, eu sou comum, e muito suscetível. Nunca fingi ser o que não fosse. Mas já não persigo julgamentos. Ninguém me conhece mais. Eu só queria humildemente ser aceita. Já nem tenho coragem de pedir nada a ninguém. Para ser bem sincera, ter amado já me basta. Eu sei que amei, e sendo poeta, vivo, porque não morri. Eu não sou ela e nunca poderia ser. Mas as sensações causadas por ela são já parte íntima do meu universo de emoções e palavras. Vivo em função das escolhas e loucuras dos outros. Que estranha voragem de não me ser, sendo. Que hiperacuidade das sensações de ser rejeitada. Agora sim. Atropelo quem me lê. Porque escrevo para mim.

Minha escritora favorita

Conhecer
E por vezes me pergunto o que há em mim e que te sustenta. Você, que conhece tantos lugares e pessoas e que decidiu fazer uma parada na mesma estação que eu, pequena, ignorante aos fatos e lugares. Você de multidões, tão alto e maior, enquanto eu em meu canto fico absorta em introspecção, sem saber de nada. Eu, que nunca vi metade do que você viu, conheci de ti, medos e segredos, confissões entrecortadas por suspiros e úmidas de lágrimas que nunca chegaram a tomar forma. E então vejo onde estamos em sintonia; não quando faço o que você faz, mas quando sinto o que sente, quando através de minhas palavras e de minhas mãos te ofereço conforto, algo que você desconhecia. Encontramo-nos então do mesmo tamanho, apesar de não saber do que você sabe  conheci o que até então lhe era desconhecido, pois agora sei de ti.

Hoje
Devia ter acordado ao menos 4 horas antes para poder fazer tudo o que me foi designado e também algumas coisas que me agradariam. A gente aprende a gostar do desagradável, talvez seja isso o que chamam de amadurecimento. Para ser capaz de acordar mais cedo, teria que ter conseguido dormir ao menos 2 horas antes. Teria que acreditar nas minhas finalidades. Mas nada era final, havia sempre o instante seguinte. Liguei a tevê no noticiário, mas não informavam nada que pudesse dar-me acalento. Sentia frio, segurava a caneca de chocolate com as duas mãos, sentindo o vapor subir por minha face e embaçar-me os óculos. Só queria saber de você. Queria projetar-me em outra vida, mas isso me era impossível: o sofá preto continuaria ali, o tapete empoeirado, os quadros abstratos em tons de marrom e azul que não deviam significar nada, fundamentalmente, mas pareciam espelhar minha angústia. Toda a gente era insossa, parecia que não tinham aprendido a sofrer. Não conseguia mais comunicar-me com eles, pois meu único canal recentemente era a miséria que cultivara, que se multiplicava, que fincava raízes. Toda a gente era insossa, e eu era uma coitada. Ela me liga porque quer compartilhar felicidade, eu só deixo o telefone vibrar incessantemente em minha mesa e ignoro. A felicidade tornara-se algo tão obsceno e esdrúxulo, não entendia como as pessoas conseguiam regozijar-se com algo tão efêmero e traiçoeiro.
Como arranjar uma arma? Munição, estou cheia delas, mas não tenho como atirar. Muitas coisas gostaria de dizer, mas não me é permitido, não passam pelo crivo do que é sensato. Fico engasgada, no meio do caminho. Não pareço impressionável, mas sou, justamente por esperar o nada. Quando ganho uma migalha, é como se fosse um quilate de diamante.

?
Devo sofrer em silêncio. Calar-me-ei objetivando que calem-se também as vozes da loucura em minha mente, para que sejam sufocadas as frustrações, para que eu não mais projete em outros minhas necessidades. Mas, faz favor, desassossegue-se em mim. Desague, desabe, desabafe, desfaça, desconstrua, desdiga. Sou pequena, falha e retorcida, pois que cheia de dores. Sinto-me ameixa seca e, ainda, sou o paradoxo do cavalo indomável que urge ser domado. Domestique-me então, pacifique. Clamas para que eu não me feche? O que farei a não ser recolher-me em meus aposentos onde a escuridão carcome, após encontrar todas suas portas fechadas? Cansei-me de chamar-te em vão, de bater em portas que nunca se abrem. Ah, hei de buscar o ar fresco, valorizar como nunca antes um adeus. E a deus, aos deuses, quiçá ao Universo, entrego minha causa e minha sorte, porquanto as considero perdidas; não há mais de mim que possa dar além do que ofereci, encontro-me num estágio de fonte esgotada, alma seca, enrugada e vazia. Por isso nada mais cabe a mim, nem eu mesma me caibo, não há espaço nessa clausura absoluta. Não há luz, não há razão. Há apenas o medo, a escuridão e o silêncio. Posso enfim ouvir minha própria respiração dolorida, fruto dos esforços de um peito carregado em demasia.

Menininha
Mas a gente mal se conhece, era o que ela diria, sorrindo sem graça, cética, indiferente. Ia se esquivando de tal maneira das perguntas, dos sentimentos. Sabia que as pessoas você ia conhecendo aos poucos, até o dia em que sentia que as conhecia, então depois viria o dia em que perceberia que nunca as conhecera. O desejo da completude novamente entrava em conflito com a certeza de que ninguém era confiável, mas a solidão era tão, tão insuportável! As pessoas ao redor sorriam, abraçavam, tentavam se aproximar. Ela se sentia sufocada. Ao chegar em casa, contudo, seu coração denunciava a possibilidade de implodir.
A gente mal se conhece, mas eu até gosto de você. Seu sorriso me acalma, sua voz me acalenta  seu abraço não é apenas um substantivo, é um lugar. Com você por perto, todo o resto se desvanece  dentre preocupações e medos , ficava calma e em paz.
Não sei se te conheço, mas dependia dele de maneiras que desconhecia.
Você não me conhece, eu nunca te conheci, mas não queria ter que viver sem você.

Victoria Junqueira

A supressão da instabilidade da consciência

Como ensejar as condições propícias à fluência da consciência? Quero viver as coisas sendo, só sendo, sem que eu me debata com elas. O estado em que se é, o estado em que se deixa de ser, o estado em que se tem certeza de não ser. Que forma dar à consciência, em que molde estável despejá-la? Como suprimir a instabilidade da consciência, sem suprimir a consciência em si? Porque a minha instabilidade é ser atingida. E a consciência é tudo. Estou plenamente consciente do que me atinge. Mas me escapa ser capaz de distinguir vontade de necessidade. Eu quero isto? Eu preciso disto? O que isso fará por mim? Uma calculadora de consequências? Uma problematizadora? Viver o já, sem previsões ou medições. Não quero medir a altura do tombo. Nem passar agosto esperando setembro. Não quero viver à espera; o viver é já, e se morre, morre-se por minuto, vive-se por minuto o peso inefável de não estar vivendo. Uma insustentável leveza de não ter nada que de fato te prenda. Nada me prende, nada me tem, então tudo que me cativa me tem inteira em um minuto. Sou de tudo, espalho-me em todos os instantes, pertenço a cada minuto de existência como se todo o meu ser se contivesse ali, como que totalmente consciente – em quieto desespero – da morte a espreitar no próximo.  Mas se não acaba? Por isso mesmo me choco: espero que eu viva este instante em tanta intensidade que me exaura a existência, e eu não venha a conhecer o seguinte. Vem-me o próximo instante-já, e ele é todo novo e todo eu, e é tudo que tenho, até o outro minuto. Dê-me alguma forma fixa, qualquer coisa que dure, qualquer coisa que não acabe, porque já me assusta continuar sentindo em mim a percuciência aguda dos instantes passados. Ninguém vive os minutos como eu; começo a pensar mesmo que pareço mover-me contra a maré da lógica humana. Porque em mim as coisas duram como se habitasse um outro plano, um irreal; meu subconsciente me encanta e apavora, domina-me e expulsa-me dos meus próprios julgamentos e racionalidades. Sou o estopim da minha emoção. Os instantes me cativam e o presente se estende para todos os lados da minha percepção, submergindo passado e futuro. Sou o é. O que foi me tem inteira ainda, porque eu ainda estou sendo. Toca-me, fica-me, faz-me, é-me. O que será também me tem inteira, porque o meu ser-presente se expande e oblitera a idéia do ainda-não, e eu me antecipo; já vou medindo bem o que nem se chega. Parece uma espécie de ansiedade inamovível. Porque ainda que eu me pense tranquilizada sei que é uma tranquilidade de tranquilizante. Como explicar? Acertam-me em cheio com alguma substância. Não é matéria: é emoção pura, ainda que só eu a sinta inteira. Pois pego essa emocionalidade e construo um éter, uma neblina, uma escada de ar que é a sublimação para fora do meu abafado-escuro. Saio dele, estou no mundo, porque alguém me trouxe e eu quis ser trazida. Sou facilmente levada: a incógnita é a motivação dos outros em levar-me. Mas essa placidez que faço dos outros é algo de fugaz que me comove. Algo que eu tento preservar para futuras necessidades solitárias. O tempo ruge, a vida é dura, e a minha consciência antecipa a inquietude do minuto-que-vem. Mas a vida é linda! A vida é tão linda, que eu tenho medo de não saber vivê-la. Quero ser levada por alguém que saiba. O grande assusta, e eu preciso do convencimento diário de que não sou pequena. Talvez, por isso, sempre na vida eu me tenha debatido por estabilidade. O que é que dura? Porque se tudo dura, nada dura, e sou sempre eu vivendo o tempo insignificado e construindo pontes entre os múltiplos sentidos que me dão os outros e as coisas. As coisas? Eu. Consigo vislumbrar uma auto-suficiência. Consigo vislumbrar um ego puro. Consigo vislumbrar um sentido da existência. Vislumbrar, apenas. Mas sou a comoção inteira. Ensimesmo-me de forma quase sisífica. Meu problema não é a dissolução do ego, mas a construção. Cadê meu ego? Cadê a tranquilidade natural de consciência, que me fizesse ver exata a linha tênue entre vontade e necessidade? Quero, preciso! Erro! Quero o errado na hora certa e o certo na hora errada e preciso do errado na hora errada e do certo na hora certa: e isso tudo me parece no pós-instante um conjunto de palavras totalmente dessignificado e perdido na dessincronia do instante-já-infinito de me ser. Como é que as pessoas são? Como é que se faz para dar a forma, a forma que propicie a manifestação da vida? Suprimir tudo aquilo que não traga o aumento da vida. Um conceito tão simples, e um assombro tão poderoso de não saber captá-lo. A distinção entre suprimir e reprimir. Suprimir é dar a forma, as condições de ser, ser o melhor de si. Reprimir é matar, eliminar a consciência. Mas já não vejo, se é que jamais houvesse visto, a fonte da minha inquietação primeira. Meu corpo físico, minha emoção, minha mente? Já nem ouso falar em intuição. Tenho uma intuição forte de simplicidade, que é por ir vendo tudo, e saber as coisas simples. Mas começo a pensar que talvez eu veja demais. Talvez não seja para tudo ser tão visto. O mundo não é de quem vê, mas de quem vive. E a intuição linear é não pensar. Vejo pensando. Penso vendo. Sou todos os instantes. Assusto-me! E quero o fluxo. O equilíbrio das coisas que perduram. A constância. E não quero querer alimentar o meu desejo. Quero o desprendimento. Quero sentir os acontecimentos tocando-me as mãos com leveza, feito água corrente, e passando, e seguindo, e deixando-me em paz. Quero ser livre. Quero não querer ser já o sempre, mas o agora (?). Quero um apoio? Será que só assim explico a minha falta? Falta de um apoio? Não: quero um apoio, mas preciso sustentar-me. Pois sustento-me. Mas oscilante! E a consciência não pára, não flui, não me faz prosperar. Existo um dia de cada vez e me orgulho de estar viva. É pouco? É muito pouco. Orgulho-me! Mas não me contento. "Já basta. O mundo exige pequenas frases. Não auto-reflexividade maluca e sinceridades absurdas." Não falo nunca. Quando meu verbo escapa, sei que falo demais.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Enigma

Amor, quando enfim vieres, desde já ficarei feliz por saber-te vindo.
Amor, quando enfim fizeres sequer menção de tocar-me, estarei já vendo
inteiras galáxias firmando tua pele nas estrelas do meu céu.
Amor, quando enfim escutar-te, soar-me-á um som ameno de embalo de dormir.
Amor, quando enfim me amares, saber-me-ei tola por ter-me adiantado.

O social pelo social

Ontem, chegaram juntos à sala. Permaneceram apenas o tempo suficiente para descobrir qual era o assunto do dia. E tornaram a sair. Juntos. Livres. Juntos! Hoje, foi apenas ela. Sentou à minha frente. Viva, maravilhosa. Colega, queria ser você. Mas estou feliz sentada aqui atrás, mirando seus longos cabelos. Em dado momento, discutíamos a legalização da maconha. Parecia meio deslocado em uma aula de sociologia clássica. Ao meu ouvido, ela confessa, sorridente, ter se lembrado dele. Não acaba. Não acaba, assim como eu não acabo nunca mesmo depois de alguém se despedir. A pessoa vai, e eu continuo. E lá também em seu caminho ela segue, continuando. Nada acaba. Ficam impressões. As coisas passíveis de efeito, afeto, reverberação. Por vezes, duas existências esbarram-se, tocam-se, pegam-se. Será? Não conheço, mas quero conhecer. Um mundo de coisas querendo ser vistas. Voltei a ler com vontade. Não quero jamais morrer de novo. Só na hora certa. Escuto com interesse genuíno. Permaneça! Escrevo agora sem dicionário de sinônimos e sou o instante-já. Percebe que não atropelo as palavras, porque não tenho pressa? Não há mais nada que eu possa perder. Porque vejo que as coisas continuam, aqui e lá, para mim e para todos. Continua, e não mata. O toque recebido não se esvai. Seu efeito permanece, e sou grata. Estou fragmentada em tudo que me dão, unidade absurda de pessoa em movimento. Movo-me em direção a algo, certa de encontrá-lo, o que quer que seja. Sem fulminação, não atropelo a existência de ninguém. Deixe as coisas virem e me atingirem em cheio. Ontem, outra aula apaixonante. Antropologia pós-moderna. Meu professor favorito confessa ter conhecido o sujeito criador de um certo desenho animado paródia, que um dia tanto me fizeras assistir. Até ri. O meu pedaço diário das tuas superficialidades. Porque as profundidades, quando me resolvem aparecer, prendem o riso. Aí fiquei morrendo de vontade de te contar. Porque eu não dou a mínima, mas me comovi com a tua lembrança. Fútil e comum e totalmente sincero. De repente, fiquei feliz, porque lembrei de ti sem sofrer. Sei que não te posso contar nada. E os sons de baixo vão se tornando só meus. Qualquer dia desses, volto a ouvir aquela banda, aquela música restrita. Ajuda ler, eu leio muito e sei que as palavras não te pertencem. Tu corres delas feito fugitivo, criminoso que não escapas de ser – eu li nos teus olhos quando te vi naquela noite dura, olhos completamente isentos de inocência. Um dia tentara ler-te um poema. "Análise"  sei de cor. Não prestaste atenção. Hoje, leio-o só. Choro por ter uma coisa só minha. Voltei a atenção à aula. E fim. Mas não, porque não acaba. Isso há de repetir-se, há de acontecer, sempre e cada vez menos. E eu hei de sorrir. Saudade até que é bom, melhor que caminhar vazio? Mesmo que eu venha a tropeçar de novo, preciso capturar o isto, preservar algum fruto desta sensação libertária, este meu instante-já que eu vivo infinito: eu sou eu? Eu hei de ser.

Não mais que de repente

Que olhar é esse na distância, que me perscruta sem que o veja? Que ânsia é esta por encontrar perdido no caminho um rastro desse olhar que não alcanço? Que calma é esta, que rebuliço debaixo d’água, que céu azul, que sol me queima sem que me exalte? Que cantiga ouço, murmurada em outro nível, sob o travesseiro e o ar pesado, que não me pesa e pelo contrário, leva-me vento, nuvem que afaga estrelas, que ouve da lua, que não a precisa ver, sentindo-a ainda, que embalo é este? Que estranho mundo vem a receber-me, colhe-me do sonho e faz-me aérea, vendo-me bem nas coisas todas que vêm fincadas da terra? Que raiz briófita, que acácia velha, que formiga em meu cabelo, que ipê branco rosa amarelo? Que grito é este que me atiram sem que o ouça, que eu devolvo bem com silêncio confiante, que estranhíssima confiança é esta, que me traça os passos sem cálculo ou tédio? Que leveza é esta, que nem se lembra do que perde, que já não lambe da pele as feridas, não vê breu, só cor vibrante? Que neutralidade feliz, que ânimo sutil, que olhar suavemente alucinado estampa a minha face cicatrizada? Que sono que foge, que fome que some, que ansiedade exilada de me dar me faz repouso plácido e inteiro? Que páginas estas, que me carregam nelas e fazem festa, que significados brotados e colhidos, que escuro tolhido, que dureza clareada, que alma se me abre pelas frestas fazendo-me toda luz e brandura? Que cama é esta que se me encaixa e enforma, faz-me onda, submersa num instante abstrato de encontro sonhado e indizível, imensidade de idéias que se não me tiram? Que gesto recebo nas mãos, graça de detalhe, que me faz benévola complacência e cumprimenta sem mágoa o meu passado, num sussurro acordado para o segredo do tempo presente? Que olhos me lêem, fazem-me análise, bondade e alento, no oculto deslumbramento de um jeito de me dar um pouco que faz muito? Que palavras estas, que me jorram prontas, sem que eu me retorça, ensejando a calmaria e não mais a ressaca? Que poder é este de à lembrança abrir-lhe os olhos, já sem tê-los escorrendo em sangue bruto, que mansidão? Que simples conjunto de palavras a fazer-me comoção!

"E o que quer que você tenha que fazer para ser assim, faça. Julgamento nenhum vale isso." (H.M.)

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Intocável

Existe um mundo de palavras e sutilezas que ele desconhece. Existe um mundo de profundidades e consciência livre que lhe são inacessíveis. Talvez ele nunca tenha se preocupado em encontrá-lo. Talvez seja certo que o caminho que conduz a esse mundo não lhe pertença. Pois é nele mesmo que traço minha rota. O mundo que ele não vê. Para onde quis tanto trazê-lo, na ânsia súbita da náusea de não enxergar à distância o mundo dele. Que outrora eu pudera visitar. E às vezes passar inteiras temporadas. Um intervalo do meu mundo. Ou a oportunidade de ser vista. A graça de ser o porto seguro de alguém. Um registro sentimental da minha existência aos olhos de outro. Referencialidade. Porque o meu mundo não me teria bastado para situar-me. E eu me aborreci com a imposição de um mundo meu em que eu não pudesse olhar para algum horizonte (tenho vários) e encontrá-lo olhando de volta, por mais distante que fosse. Eu, que havia acreditado na construção de um mundo mútuo, compartilhado. Eu, que quisera servir, embora me lembre bem da angústia de sentir-me objetificada. Eu, que venho carregando na bolsa uma pesada idéia de ser comum. Eu, habitante de outro mundo. Outra esfera de emocionalidade. Outra esfera de sensibilidade. Vejo em lente de aumento, demoradamente, inexaltadamente, com simplicidade e seriedade absolutas, não a seriedade áspera ou incômoda, mas a seriedade que não deixa de contabilizar nenhum detalhe, sensível e intensa, contabilizo, mas não me gabo, exponho-me, mas me faço respeitar pela doçura, não quero levantar a voz jamais. Por um mundo que nunca me faça levantar a voz. Por um mundo em que eu nunca precise dar as costas ou baixar meu olhar. Por um mundo cada vez mais distante do que me fere. Por um mundo em que não se promova a minha falha perante todos os olhos que me vêem. (Porque não vêem. Porque não me sabem.) Existe um mundo. Existe um mundo de fome controlada, de discussão acalorada e elegante, de uma elegância humilde e simples e totalmente rara, de mentes escancaradas a destrinchar-se, de anagapesis, de céu abrindo encarando o chão que abre de volta e faz abismo e o reflexo sou eu desvendando um novo mistério, de vela acendendo no escuro, de músicas que sejam puro sentimento e nenhuma escala, de pílulas dissolvidas em canto de alguém que me nina feito carinho de mar e onda e sal, de sol nascente, de sorrisos gratuitos e adorados no corredor, de receber bom dia, de esparramar-me no chão público conquistado com suor, de receber um convite, de sons de piano que se prolongam no infinito feito ondulações numa margem em branco, de não-possessividade, de delírio, de páginas da queda mais saborosa que guia direto às alturas do pensamento, de música vibrante da musa que é só minha, de inundação de sangue para o coração, de melros cantando meu despertar, de carinho, de amor, porque existe o amor, e isso tudo é tão real quanto ele podia ser, isso tudo é tão real quanto a felicidade dele é para mim, porque devo esquecê-lo, e desrealizar sua felicidade que não é mais importante que a minha e não é minha responsabilidade, tudo é igual e ninguém pode matar, ele deve ser feliz e eu também, e o mundo existe, e o mundo é visto, porque tenho olhos que não param nunca, e quando repousam é para que se fechem a olhar para dentro, um terceiro mundo ainda. Existe...
Deixai-me ser comum. Deixai-me acreditar, deixai-me ser levada, porque sou eu que me levo, e não há nunca um outro olhar na penumbra do meu quarto à madrugada. Deixai-me fazer o que é preciso. Enxergo as coisas sem contorno. Parece que é o mundo abrindo e se dissolvendo para me ensinar que não há limite ao meu pensamento. As sombras imiscuem-se, fundem-se no ar, no meu corpo, e a minha respiração parece a própria gravitação lunar, perpetuamente suspensa e aberta e às vistas de todos, basta-se que se abram os olhos. Fecho, abro, fecho mais devagar, fico no escuro um instante, abro mais devagar ainda, consigo ainda encontrar na distância de breu a minha lua, que me sorri, confidente: vai dormir, menina, que estarei aqui quando teu corpo resolver acordar a tua alma; ou é a alma que acorda o corpo? Agora sim. Sorrio de volta, e o sorriso é para mim; nenhum olhar soturno me espreita na esquina do meu céu. Apresso o passo e já me é o sonho. Deixai-me ouvir todos os sons, todas as notas às quais não sei dar nome, que me tateiam a pele buscando palavras gravadas em tinta, pêlos crescidos, o verbo que não se esgota, saliências, saltos da mente, teias inteiras do mais intrincado rastro de raciocínio, retina queimada, gordura, hormônio. Deixai-me viver. Nunca quisera tanto.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Anfibologia da amiga

Não poderíamos ser mais diferentes – quase complementares. Ela desdenha, desvia o olhar, e sai caminhando na direção oposta. Eu faço que sim com a cabeça, olho nos olhos, e tenho vontade de acompanhar. O azar é meu de precisar dela. Amo-a por tudo que é, que é tudo que me fere, sem que eu nada possa fazer a respeito. Amo-a enquanto a amam, espectadora, assistente, pé-de-cabra. Estou nos bastidores. Qualquer osso atirado me parece um pedaço inteiriço de carne de primeira. Dou tanto a ela, que não sei como fugir da expectativa da dádiva. Dar, receber, retribuir. E a recusa incide em guerra. Mas não quero mais lutar. Eu estou em sua vida como um enfeite deslocado, que parece não combinar com os demais. Porque todos são só enfeites. Que ela rearranja em sua vitrine conforme melhor lhe aprouver. Busco apaziguar-me: é só isso, estou numa fase de inconveniência, ela está numa fase de louros, grande distração animada, e eu bem sei que sou a figura eterna da benevolência. Sou seu contrário, por isso me aborreço, mas não vou embora jamais. Ela é meu oposto, então não se afeta, mas também já foi e nem se enxerga na distância. E tolos nós que nos debatemos nas ondas de sua insensibilidade. Fascinante, sem dúvida ela é. Permanece uma beleza antiga e intocável em minha vida. Companheira, o teu amor é de-vez-em-quando, mas tão bem-vindo, que me faz fortaleza a cada vez. Aprendo de ti, do contraste, a ser a força e a leveza que não posso ainda ser por mim. Vivo um pouquinho da tua vida paralela, bebendo da tua glória, fazendo-a minha. Tomo-te emprestada a cada oportunidade. Mas tu sempre hás de preferir tua platéia, tua audiência, figuras mais notáveis aos teus olhos de protagonista. E eu não iria querer mudar-te nunca. A exigente sou eu; eu é que preciso de ti. Amiga, por favor, eu só te peço: não me esqueça – eu sou teu porto, tua poetisa, tua família.

Um sopro

Então apaguei, instantaneamente. Como se ele soprasse a vela da minha existência, com benevolente carinho. E pela primeira noite em três meses dormi sem a imagem-mais-conhecida latejando em meu subconsciente. E houve o primeiro sono inabitado por esse espectro, o fantasma dos meus dias. Acordo, como se ele suavemente chegasse o fósforo e o fogo à ponta da minha vida. Sei que acordei porque esperava uma resposta. Sei que meu sonho se havia transportado para outro fuso. Ele é brisa que entra sorrateira, pela fresta da janela, e sopra no meu ouvido em um som de voz que eu nunca ouvi; e a voz é também um aroma estimulante, que atiça a chama do meu fogo abandonado. Poderia explicar todo seu efeito através de termos químicos. Endorfina em pequenas doses periódicas de flerte-com-um-abismo. Porque eu adoro cair. O sobressalto terno que me preenche a cada (des)encontro. Então fico grata por me sentir livre novamente. Mesmo que em pequenas doses de interferência. Porque acordo à sua espera, e ele me alcança em poucos instantes. E eu sinto que viajei no tempo e no espaço.

domingo, 9 de setembro de 2012

Retração

Acordo só. O sonho me mata. A casa é vazia. Silêncio. E o desespero só não é maior do que se houvesse alguma companhia. Porque ele não vai voltar. Ninguém para assistir-me enquanto eu copiosamente vivo, pedindo assim esmola à vida. Vida, dai-me uma graça. Eu mato o dia. Sou a dama da noite. Faço-me boba, faço-me leve. Faço-me mais silenciosa ainda. O que dizer, que já não se tenha dito? Quando eu digo, sou desdita, desditosa! Minhas palavras se tornam desdéns. Recolho-me. Prendo-me aos últimos segundos desse meu reino noturno, o ar de promessa e de completo desolamento, abraçados, confundidos, indistinguíveis. Súbito, o canto de pássaros me rompe o isolamento acústico de existir. É a pincelada rosa no horizonte, é a entrega vestida de desistência. Estou desistida. Um conjunto meio desconexo de pequenos atos compulsivo-impulsivos, uma fuga estéril para longe de tudo, como se eu corresse obstinada em uma esteira ergométrica de arrependimento e vacilação. Mas se o destino é nunca chegar a nada, apenas me distanciar do tudo? O tudo, que é a vida dele atingindo os lugares mais elevados, e a mesma platéia que o aplaude é aquela que desdenha de mim, meu rumo modesto e reservado direto às sombras da luz que ele exala. Mudo uma cadeira de lugar. Troco os livros de ordem na estante. Desfaço-me de pilhas de roupas. Fecho as cortinas de um jeito estranho. Alterno o lado de dormir na cama. Abandono um artista, descubro outro. Arrisco-me em novas comidas. Tento uma rota alternativa para o destino de sempre. Humildemente tento espalhar alguma mudança pelos fragmentos da minha existência. Humildemente peço à vida uma graça, uma licença, um intervalo outro, um estado de espírito qualquer, qualquer espaço, qualquer som, um ar e cheiro que me arranhem a garganta, a dor que me penetre, qualquer luz que me queime as retinas, qualquer poema que me seja outra instância, outra vivência, persona, identidade, pois que ele me foi a composição de pessoa, pois que cresci com ele, mudei com ele, mudei por ele, tenho-o entranhado em todos os meus caminhos anteriores; então como explicar que eu já não saiba percorrer nenhum deles, nenhum dos caminhos já conhecidos? Com o tempo, fui expulsa dos mapas que eu havia feito da minha mente, dos meus desejos, das minhas conquistas, e já não posso situar-me; mostrei-lhe o caminho, e agora ele é livre para percorrê-lo, o caminho de tudo que aprendemos juntos, para que ele siga como autodidata, dominando todos os espaços, sob a luz de todos os refletores, armadura reluzente. E eu não ataco. Eu abaixo a guarda, dou as costas, mas sempre olhando para trás, com curiosidade incontentável. E o vício da expressão me degrada por minuto. Quero entender o que não se quer explicar, quero fazer parte do que me expulsa violentamente. Tenho dedicação e apreço profundos pela doença que me devora. Síndrome de Estocolmo. Fecho as cortinas daquele jeito estranho, deixando aberta a janela, e sinto a brisa adentrar-se, contagiando o ar moribundo do aposento; deixo-a percorrer a consciência, confrontar meu comportamento, e já não me atenho a sentir mais nada; sei do corpo que habito, sei da mente que me significa, sei do sonho e da realidade, e já não posso suportar nenhuma esfera lógica, nenhum argumento, nenhuma comunicabilidade, nenhuma palavra; paro de escrever a partir do já.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Química

Esqueci-me por um segundo de que já não posso dirigir-te a palavra. Um, dois, três, quatro segundos que me valham. De puro sonho, negação, nostalgia, psicose. Estava absorta em qualquer um desses, mergulhada dos pés à cabeça, sincera, entregue, suscetível, hermética. Pensei: irei chamar-te, discar o único número conhecido, aguardar ansiosamente, ouvir teu timbre através da magia tecnológica, e logo estarás imerso também em minha mente, uma epifania. Irei chamar-te para um café e uma fatia de bolo de chocolate, tão singelo e tão nosso, e caminharmos de mãos dadas pela loja de discos. Banal e glorioso. Entraríamos no carro, o teu, é claro, e eu te ouviria ralhar com a minha indecisão sobre a música que ouviríamos. Não importa, meu amor. Qualquer música seria a tua morada. Moras ainda em todas elas, todas que tenhas sequer visitado. E eu quereria mostrar-te a minha nova música favorita, só para me aborrecer com os teus comentários de músico inveterado, tão teu que és. E, bem dentro, inundar-me-ia de orgulho. Passearia com as mãos por tuas pernas, seria a tua maior distração, e contaria os pêlos do teu rosto, em crescimento, um por um, e tentaria alcançar a tua orelha, um movimento arriscado, e ainda o mais seguro de todos os meus atos. Pediria para que ficasses, e tu pedirias para que eu fosse contigo, e discutiríamos, e sairíamos os dois de cara fechada, amando demais para que pudéssemos compreender. A despedida seria curta e intolerável, e eu correria à minha janela, apenas para ver-te disparar com o som bem alto exibindo-me uma música tão minha, mas tão minha, que eu não poderia jamais te deixar escapar da minha vista. Volta, vai, deixe-me olhar o teu rosto de menino, meu homem. Tens a formação perfeita do meu sonho, humilde e inocente. Meu sonho habita cada poro das tuas bochechas de sol, teu nariz de batata. O hálito preciso, a saliva. Tua química, a única que fala à minha. Minha consolação. Um, dois, três, quatro segundos que me valham. E volto a mim. Escuto o som de mil vozes que não são a tua. Percorro milhões de metros que não me conduzem a ti. Destilo meu tempo, vejo-o dançar sobre meu cadáver embalsamado e faço até graça da minha maldição. Morte sem descanso. Corpo que segue, ávido por alívio. Estou só, estou só. Encontro-me comigo, passeio com as mãos por mim. E és tu quem me habita. Alívio, alívio, alívio. Como tu, tantas vezes antes, clamando por alívio com o pensamento em mim. E eu te habitei! Sinto-te por dentro e fora, por todos os lados, o quente e o frio e o úmido e o seco e o rígido e o frouxo e o doce e o amargo e o peso e a leveza e o ódio e o amor e o descaso e o desejo. Alívio, por favor! Eu grito, eu clamo, alívio! Retorço, solitária, mas totalmente imersa, afundada, embebida na idéia tua! Sofro, quero sofrer, quero que doa, quero que me invada! Prendo a respiração. Não há ar que me liberte do teu cativeiro. Um, dois, três, quatro segundos. Um, dois, três, quatro segundos. Um, dois, três, quatro segundos. Um, dois, três, quatro segundos. Um, dois, três, quatro segundos. Um, dois, três, quatro... Um, dois, três, quatro... Fôlego? Alento? Um, dois, três, quatro, um!, dois!, três!, quatro!, um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro, um... dois... ... ... CO2

Êxtase.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Sublimar

(latim sublimo, -are) 
v. tr.
1. Exaltar; tornar sublime; engrandecer.
2. Volatilizar quimicamente.
3. Purificar, expurgar de tudo o que é estranho ou impuro.
v. pron.
4. Tornar-se sublime.

eu recuperei o hábito de caminhar. Também porque a exigência de manutenção de toda esta tecnologia me oprime e enclausura. A paisagem é inútil. Não me agrada, mas também não me perturba. Não é por causa do caminho, nem do destino. É justamente a ausência de caminho e de destino. Ponho os pés um à frente do outro, percorro um espaço, avanço, como que para me dar a oportunidade de contemplar o contraste do meu espírito, que já não chega a lugar algum, e as idéias que também parecem não vir a nada, e sim orbitar em torno de um só ponto convergente, inútil. O tempo é contra mim. Então desafio a temporalidade. Se eu andar assim, talvez ultrapasse até os limites dos meus pensamentos, e atinja algum sentido oculto por trás de minhas decisões passadas. Talvez eu sublime minha densidade de pessoa poluída e me reintegre no vento, sem consciência, só leveza, só pureza, percorrente de tempos e lugares que me são inacessíveis. Porque não me posso livrar deste ambiente, porque não me posso livrar das idéias, quisera então me livrar deste corpo, quisera livrar-me de viver meu tempo, curtíssimo e intolerável. Quereria habitar outra materialidade. Caminhando, as idéias como que ficam desemboladas; vejo-as uma ao lado da outra, vêm-me uma depois da outra, em fluxo rápido, e se espalham no ar que me atravessa, levando consigo um rastro da minha falta de solidez. Estou totalmente transportável, assumo a forma do recipiente, mudo de estado, comprimo-me, agito-me, sou uma composição precisa e muda, um cálculo matemático exato sem finalidade. Perfeitamente inútil. Mas o ambiente permanece todo igual, como se o tempo não tivesse agido sobre todas as coisas. O furacão parece ter passado por dentro de mim sem atingir mais nada, deixando tudo intacto à minha volta. Talvez eu tenha ido com ele, e já não pertença a mim mesma? Não sei como, mas as coisas todas em mim parecem ter saído do lugar, como se eu não reconhecesse a disposição dos meus dias. Mas eu sei que a única e real transformação foi em meu interior. Sou uma estranha no meu espaço. Depois do fim, o fim é o que dura. Mas é o fim que ressignifica todas as coisas. Quase morrer não altera nada, morrer altera todas as coisas. Mas não morrer, e sim seguir vivendo, com a coragem que eu não tenho? A história não acaba; eu tive que cumprimentar a morte e continuar aqui para assistir ao destrinchar dos enredos alheios, enquanto o meu se espalha ao vento assim feito pó, cinzas de guerra. Sigo as mesmas rotas, escondo-me nas mesmas roupas e nas mesmas músicas, luto com os mesmos livros. E eu já outra. Mudou a perspectiva? O foco. Ou a ausência de foco. E eu quase sentiria ódio por ele, por ter me roubado toda a determinação. Se eu pudesse sentir ódio. Que é ainda mais impossível que não sentir amor. Caminho, já não tão leve, já não tão plácida, cheia de argumentos e defesas, cheia de acusações, cheia de pesares, e cheia também da prontidão mais absoluta para abrir mão de tudo isso, tudo, e ser apenas uma companhia fácil e subserviente. Tão fácil! Caminho, e quero é a suspensão. Eu quero sublimar essa dureza, esse concreto, esse calor derrotador, essa tensão de pensamentos reprimidos, esse olhar que só abaixa, só desvia, só se fecha em sons e dores e um escuro de alma que não se liberta nunca. Pois já não poderia me dar o luxo de ser realista, ou cética. A verdade dos fatos me matará, extinguirá, e eu imploro pela esperança que tiraram de mim. Eu quero sonhar, eu quero uma distância, uma doce ignorância, uma distração que me prenda. Quero alguém que me leve, leve-me consigo, ocupe-me de outras idéias, ocupe-me toda, deixe-me morar um pouco em algum olhar que não seja o meu próprio encarando para dentro de mim mesma, quero sonhar, quero ser tirada de mim, quero romper todas estas barreiras e gastar todo o corpo e a vida que me restam em algo novo, quero sonhar, quero acreditar na promessa do amanhã, porque de repente é madrugada insuportável e eu quero acreditar, ao menos para adormecer, por alguns dulcíssimos minutos, que alguém virá sacudir-me e roubar-me deste ciclo, algo incrível me tomará nos braços, deixar-me-á sem fôlego para gritar por ele, ofertar-me-á a trégua, tornar-me-á livre vivente, abrir-me-á para o amor, para a capacidade de confiar novamente, e eu terei algum motivo para fechar os olhos em alegria. Eu acredito em qualquer verdade, porque para mim não há uma só verdade. A verdade de qualquer um é a verdade. Para ouvir, mas não para aplicar. Não sei ouvir conselhos, porque são verdades alheias. Consola-me, mas não muda nada. Certamente permanece intacta a minha verdade. Também porque nada é único. Contudo, quando abaixo a guarda, solto meu verbo reprimido, e vejo já a testa que franze, espanto-me com os outros, e recolho-me no isolamento emocional. Estou separada de tudo. Imagine a minha cabeça, que ele habita arrastando-se, e escalando as paredes do meu crânio, fazendo a comunhão de minhas culpas e ofensas inobliteráveis, música infinda e ensurdecedora contaminando todos os meus pensamentos. Quero meus cabelos, quero meus cabelos, quero ser outra, apenas, outra, que não seja a pessoa que eu sempre fora, quero longos cabelos e não quero a miopia e não quero pernas fortes e quero peitos, e quero agulhas, agulhas, agulhas, agulhas na pele, nem mesmo suporto ser inteligente, soa-me desconexo; sinto falta da estabilidade da sobriedade, mas pareço fazer questão de ser o avesso dela só para ser avessa a quem eu fora, e se eu fosse capaz até comeria carnes, comeria bem carnes para não ser eu, e abandonaria toda esta música, talvez assim eu finalmente entendesse o que fazer da minha vida, o quanto eu deixei de existir como pessoa autônoma. E pararia de escrever. E pararia de escrever. E pararia de escrever. E só voltaria a escrever quando pudesse enfim viver um sorriso natural. Quero sonhar, quero visualizar em ricos detalhes o que eu teria sido e não fui, quero tecer meus enredos românticos, enrolar-me neles, quente e acolhida, dormir um sono sem pesadelos de abandono e escrutínio e ressentimento. Quero brisa, luz nublada, frio colorido, metrô, prédios seculares, umidade, respostas compadecidas, bondade, convites aceitos, promessas mantidas, mãos que me envolvam o rosto, carinho lúcido, noites que acabem, olhos que me invadam e preencham de idéias que não me confrontem, só me levem para longe das minhas memórias, caminhar até que o corpo se livre de toda esta carga, carga, carga: eu quero sonhar que algum dia não carregarei todo este peso.