quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Calvário

Desde quando? O logro, o desfrute, o desalinho e o suplício? Onde terminava e começava? Quando comecei a morrer, emprestando a teu uso meu corpo e minha alma? De ter centenas de vezes dirigido, caminhado em prantos -- ao teu encontro, ou do teu abandono, revivendo palavras tuas; de todos os cantos amaldiçoados da cidade, da minha própria longa memória; vigilância constante. Da cama habitada por outras; os teus ambientes todos por mim tocados, as tuas fases, dores e provações que tornei minhas; das tuas infinitas horas buscando a si do lado de fora; eu olhava adentro; das pilhas sem fim de livros e dedicatórias, histórias percorridas com outros olhos, sinfonias de outros ouvidos, que nada jamais soará igual; da gaveta de roupa íntima, e tudo que enterravas sob minha pele, centenas de cartas de amor descartadas sem resposta, e o pão das minhas mãos te nutrindo, o meu suor matando a tua sede, a carne do meu corpo um leito, que até um coração partido, sangrando, miúdo de tanta angústia -- era ainda tão maior que ti; a ponto de embalar os dois no sono mais profundo, à revelia até dos beijos negados. Mas a sempre reafirmação da propriedade. A vida doméstica, a escova de dentes e o antitranspirante em seus perpétuos lugares. O rastro úmido na cama. Um ar ao percorrer o espaço como quem reverbera: meu domínio. Que eu fiz: tudo que era meu era teu. Que fizeste: tudo que era teu era apenas teu. E o que era meu era pouco, era nada. Que julgaste. De se moldar inteira na freqüência tua, no aroma calculado, exclusivo, para o teu desfrute. De me aventurar pelo meio do céu, o meio do lago, das montanhas, o meio da noite do mundo -- parecia o meio da vida, o meio de um buraco negro com as tuas células feitas estrelas. Um universo se abrindo, fechando, me engolindo com semente e tudo, triturando. De abraçar e acolher esse universo, naturalizar-me nele; desaprender a falar a língua dos outros. Desaprender a ser vista e ouvida. Arregalar os olhos para o quanto o teu olhar mirava outras. E cerrá-los com tua malícia, tua lábia, tua soberba excruciante. A fé no amor sustentava a débil fresta da minha vida. Remendar a alma rompida enquanto o corpo se abria para acalentar a única reconciliação conhecida, paliativa. Da náusea constante, o corpo que lateja eterno à semelhança da mente, a falta de ar, palpitação, a lucidez esmagadora, tortura, paranóia, perseguição, o rastro de qualquer mulher, qualquer sugestão, qualquer desejo, qualquer roteiro de flerte, amor ou sexo -- trauma, desespero. Interdição: intocável, imóvel, inacessível. Petrificada. Rastejando por um deserto o mais inóspito -- gerando a vida a partir do nada; sobrevivendo, mas criando, nutrindo, migalhas num oceano de desdém, sem som algum, palavra alguma, o mais próximo toque a um universo de distância, longínquo a ponto de dúvida -- existe? Sem promessa, sem zelo, sem o mais remoto desvelar de alguém. Revivendo a morte a cada novo dia. E um rancor, mas tão profundo: a dor do mundo arregaçando meu peito. Imperdoável. Eu não era tão importante assim. Nunca houve abismo tão indesviável.