terça-feira, 26 de abril de 2016

Solo

Estamos chegando ao fim (ao início). Despeço-me do tempo arrastado, falso repouso, iludido estado de graça, esta solidão de sujeito composto. Despeço-me da falta de ar. O que era antes agilidade e esbelteza. Alguma vaidade. Despeço-me da água quente nas costas, infindável refúgio. Em que as entranhas confeccionaram a vida a partir do nada -- a partir da morte. Cada noite e cada despertar para criá-los dentro de mim. Não é pouco. Todo o tempo para rejeitar a insensibilidade. Todo o tempo para ser firme nos próprios pés e mãos que os carregam. Todo o tempo para gerar a minha vida inteira, seguir meu rastro até este lugar de intensa, aguda e completa solidão. E um perfeito desejo de estar só, de fincar estes pés na terra e amparar meus bebês - meus, meus bebês - como sou eu apenas minha e como um dia eles serão apenas de si mesmos - se Deus permitir, que Ele nos tem ao cabo. A bênção da vida e o fardo da morte, tudo junto e ao mesmo tempo. E tudo junto com esta constante companhia, e esta eterna solidão. Jamais serei uma. Sendo eu, despedi-me há tempo do poder de ir e vir (quem o tem não sabe, não pode saber). O poder de ser ou não, a liberdade de qualquer coisa: inexiste. Mas a liberdade que eu ganhei: de dizer limites. O que vem da solidão: é o limite. Uma quase incapacidade de bem existir no mundo. Cria-se outro. Cria-se força de onde não há. Criando a vida do nada, da morte. Criando a si para minha cria. Um sonho que veio como pesadelo. A bênção que veio atravessada, antitética. A mão de Deus que veio sem redenção, sem paz. Mas é Deus. Sem perdão. Estar tão completamente só me exime também, pela primeira vez, de pedir escusa. E, afinal, estar tão só é uma dádiva de pureza. Não devo nada, e tudo depende apenas de mim. O desespero e o conforto. Isto é meu. Não divido com ninguém. Tenho nas mãos e nos pés e no ventre e no coração tudo que eles são. Tudo que somos veio de mim. É belo e doloroso, sem orgulho de poder ser coisa alguma. A ponto de não caber ninguém mais, nem mais nada. Eu abri, arregacei, isolei, me decompus inteira para tê-los. Eles vão coroar, vão arregaçar, e eu vou abrir os olhos sendo mãe. É meu, ninguém vai entender, nem sentir. Não há como compartilhar. Estou ofuscada de mim. Ninguém vai saber por que a dádiva virou dor, virou solidão, e agora virou a pura necessidade. Eu nasci pra ser mãe. Mas Deus me fez também arregaçadamente sozinha. E abraçar isso é o que me resta. Como ato de fé. Estamos chegando ao fim (ao início). E o peso é maior que o mundo, é maior que eu. E, no entanto, se contém aqui, neste corpo de três corações. Neste esconderijo, armadura. Cobrindo-me, aterrando-me, fechando e firmando por tantas luas: para enfim abrir, alargar, estender, trazê-los de dentro do meu mundo -- que a terra os tenha. Que a terra de sempre nos ampare.