Para um mensageiro,
Que eu te devolva a fome do meu primeiro grito.
Hilda Hilst
Era noite alta e dormias. Dormias, e sob a lua e o abafado de meu quarto te tornavas o mundo inteiro que eu via. Respiravas, e o teu ruído se tornava toda a minha atenção de queda, abismo, ponte que atravesso aos tropeços. Se me fazes calma, porém ainda insone, não me interpretes; é sono desregulado, meu bem, é sono que me tiras, dás, roubas, crias, e sonhos fantásticos que tenho ao teu lado. É que não atravessei ainda a noite em ti. Imagino-te lendo meu verbo, imagino-te sonhando minha voz, imagino-te repousado em minha cama, sem nem precisar imaginar. O dia seguinte me aguarda com a lembrança de teu calor esparramado em meus lençóis. A promessa é muito grave. A noite seguinte é como brancura da lua, não a tua, derramando-se em minha pele para fazer-me gasta, e constranger-me a repousar. Vejo-te dançarino pelo meu quarto de breu. Deito-me, enterro-me neste reino, e quase ouço de mim o mesmo grito, o som do teu corpo sobre, liberado através de mim, percuciência agressiva. E encontro em cantos do meu corpo a febre grave da tua fome em minha pele, aquele dolorido extasiado em que me abandonas toda vez. Era noite alta e tive de deixar-te, para não quedar a estudar-te os traços, contar ritmo respiratório do teu ar, fazer música do teu som, pairar sobre teu peito oscilante, criar texturas e estampas na tua pele. Porque era claro demais, pungente demais, sentir-te ao meu lado. E a promessa do dia seguinte em companhia da memória sempre hipersensível. Mais tarde, assisti também ao teu amanhecer. E as cores que surgiam no canto do céu que perscrutavas pela minha janela eram assim estranhas porque não me atingiam, não me faziam dança aos olhos. Eu te abraçava e buscava que me desses os olhos para olhar, como se eu quisesse derramar-me dentro deles e escorrer para o interior da tua alma. E que o céu não me leve a mal, mas tua presença prende como se eu quisesse me fazer nela uma luz ou amor morno, no intento de afugentar tuas aflições todas, engolir teus conflitos e fazer-te plácido, plácido, e quem sabe assim viesses mais para perto de mim. Ser todo luz em nossas noites, deixar entrar no teu humor qualquer pedaço meu. Porque estou invadida, um tanto sem norte, sofregamente tentando fazer-te conhecido, enquanto desnudas assim meu coração. Não te posso impressionar; sou luz fraca, suave, meio vacilante; e tu, és luz ofuscante, pungente, mas do outro lado, como se eu não pudesse chegar. Espero-te sem ânsia, porque me fiz calejada, mas ah, por minha irrisória mania de verdade, que se libere meu grito, meu grito por ser conhecida: é que estou entrando, caindo para dentro, caindo, caindo, caindo, deslizando... Sim, é deslize.