segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Infra

Para um mensageiro,

Que eu te devolva a fome do meu primeiro grito.
Hilda Hilst

Era noite alta e dormias. Dormias, e sob a lua e o abafado de meu quarto te tornavas o mundo inteiro que eu via. Respiravas, e o teu ruído se tornava toda a minha atenção de queda, abismo, ponte que atravesso aos tropeços. Se me fazes calma, porém ainda insone, não me interpretes; é sono desregulado, meu bem, é sono que me tiras, dás, roubas, crias, e sonhos fantásticos que tenho ao teu lado. É que não atravessei ainda a noite em ti. Imagino-te lendo meu verbo, imagino-te sonhando minha voz, imagino-te repousado em minha cama, sem nem precisar imaginar. O dia seguinte me aguarda com a lembrança de teu calor esparramado em meus lençóis. A promessa é muito grave. A noite seguinte é como brancura da lua, não a tua, derramando-se em minha pele para fazer-me gasta, e constranger-me a repousar. Vejo-te dançarino pelo meu quarto de breu. Deito-me, enterro-me neste reino, e quase ouço de mim o mesmo grito, o som do teu corpo sobre, liberado através de mim, percuciência agressiva. E encontro em cantos do meu corpo a febre grave da tua fome em minha pele, aquele dolorido extasiado em que me abandonas toda vez. Era noite alta e tive de deixar-te, para não quedar a estudar-te os traços, contar ritmo respiratório do teu ar, fazer música do teu som, pairar sobre teu peito oscilante, criar texturas e estampas na tua pele. Porque era claro demais, pungente demais, sentir-te ao meu lado. E a promessa do dia seguinte em companhia da memória sempre hipersensível. Mais tarde, assisti também ao teu amanhecer. E as cores que surgiam no canto do céu que perscrutavas pela minha janela eram assim estranhas porque não me atingiam, não me faziam dança aos olhos. Eu te abraçava e buscava que me desses os olhos para olhar, como se eu quisesse derramar-me dentro deles e escorrer para o interior da tua alma. E que o céu não me leve a mal, mas tua presença prende como se eu quisesse me fazer nela uma luz ou amor morno, no intento de afugentar tuas aflições todas, engolir teus conflitos e fazer-te plácido, plácido, e quem sabe assim viesses mais para perto de mim. Ser todo luz em nossas noites, deixar entrar no teu humor qualquer pedaço meu. Porque estou invadida, um tanto sem norte, sofregamente tentando fazer-te conhecido, enquanto desnudas assim meu coração. Não te posso impressionar; sou luz fraca, suave, meio vacilante; e tu, és luz ofuscante, pungente, mas do outro lado, como se eu não pudesse chegar. Espero-te sem ânsia, porque me fiz calejada, mas ah, por minha irrisória mania de verdade, que se libere meu grito, meu grito por ser conhecida: é que estou entrando, caindo para dentro, caindo, caindo, caindo, deslizando... Sim, é deslize.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Desamor

Só eu não durmo
Pra te pensar.
E agora escura
Do jugo dos sentimentos
Irreversiva, suicida
Tateio aquele rochedo
Do ódio de desamar.
Hilda Hilst

Agora que não sinto amor, enxergo mesmo em outro nível. Toda a minha história paira na superfície dos meus atos e pensamentos, tranqüilidade de água morna, transparência, claridade. Agora que não sou amada, sei que o fora. Agora que não me é permitido amar, sei-o bem, tenho o profundo entendimento do ofício, sei amor como se fosse toda a minha arte. Agora que não tenho amor, penso amor como se respirasse. Agora que o amor não está em mim, estou nele. Submersa, quase afogada. E é amor para qualquer lado que eu olhe. Os trechos da minha história estão dispersos, úmidos, puídos no meu passo. Arrasto-me na terra, sorvo o ar, aflita por céus e vôos, queda, terra na boca, água em minhas narinas, saliva em meus ouvidos? Na boca, um gosto de ilusão, pó, desejo desfeito? Nada. Estou enterrada na pouca eternidade de ser, na pouca infinitude deste mar que é meu nicho, golfadas, lufadas, entrega pura, repressão, sufoco, cruel onda que me arrasta para dentro de mais desamor que eu aceito desaguar para dentro de mim e tomar conta, preencher, dominar. Agora que não posso pedir amor, invade-me uma falta, buraco de concha, sal nos olhos, areia descendo pela garganta, contendo o grito. Um amor que me permitisse medrar? É sonho, e já não quero sonhar.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Cintilância

E pretendes não gostar de nada. Se te distrais, é glória: de repente estás gostando. Agitas-te, sublevas-te, e soltas assim no ar um pó de encantamento. E tudo vibra em mim. Vagueias, inundas teu espaço, miras, se é soslaio, se é distração animada, não chego nunca a descobrir, se és absorto, conjuras qual pensamento à luz do meu tremor, sou temerosa, denso corpo a contrastar com teu ânimo, és quase dançarino, do jeito que não te acomodas, porque se calha, se te repousas, se me condenas a qualquer esmero de quietude, sou curiosa, valente amante, curvo e me debruço, quero despertar-te todo, atiçar qualquer desejo, a ver se voltas a me investigar, a ver se enxergo nas tuas profundezas indecifráveis, críptico, só pode ser caverna, é boca de morcego, estou certa disto, cordura ou crueldade, espio para dentro do teu sorriso que me devora, e é fulgor de todas as máscaras que eu pudesse conceber, milhões de muros que eu erguesse em torno de mim quando a luta contínua é só chegar-te ao outro lado, invadir território, como me fazes ao olhar-me assim, ao desolhar-me assim, ao ser assim o distraído esforço que destilas no meu corpo. Quando queiras. Fecho-me, sem ver-te, e é mão na boca para que eu me impeça de conjurar-me no grito, apossar-me da liberação, ter-me tão retida na tua força, compressa no teu peso, ardente no teu fogo, que eu me vire, desdobre, desfaça, desapegue, deixe de sonhar, para ver estrelas na tua cara, queimar-me e dissolver-me no teu canto, canto inaudito que fazes por dente em minha pele, perfurando, centímetro a centímetro, segundo a segundo, virando minuto e metro, que dança fazes sobre mim, se calha é coreografia, que pensas como se me conhecesse, enquanto só me descobres, aos poucos como deve ser, e se me ergues, se me guardas, se me evocas, se me tomas inteira, regozijas, já renasces, recobres-me de todos os beijos, urgência, violas-me, fazes-me esquecida, pernoitada, avessa, exausta e esbaforida, tenra, mastigada, saciada, fazes-me nova, surpreendida, atada e colhida, anti-hermética, melíflua. Palco para que componhas teus passos de feiticeiro, para que aduzas teus detalhes, é o que sou, despindo-me, disponho a ser o que fizeres de mim, que mais que espectadora, eu te exprimo, experimento-te, danço contigo, acanhada, abocanhada, sequiosa por teu líquido, tua fonte de oblíquo, ângulo extremo, choque bem-vindo, eletricidade, e me vais guiando, pelo torto que é o teu desejo, pela torta palavra que é a minha, pela avidez que é palavra de ordem, meu canto que da suavidade morna vai ao estridente mais agudo, minha acuidade de sensações, hipersensibilidade, hipertrofia da minha resistência, não resisto, não me abalo, não persigo, mas recebo, sou toda derretida na tua penetrabilidade, vivaz na tua austeridade elegante, se és sério, se és louco, se és escárnio, já não busco, és o retrato perpétuo da minha vontade agora, berrante oposto de minhas quedas. Se calhas fazer-me cair por ti, é tua ventura. Pois cai a mim também, sem ver ponte nem nada, sem abismo, sem falha, a pergunta impossível, a resposta velada. Cai, cola-te em meu corpo, vê em mim o que é cego, atenta-te bem para o que a boca grita sem dizer. Chega-te inquiridor, mas quase sem ouvir-me, dize, sem pesar a palavra, sem parede no meio, quero atravessar-te, sem fulminação, mas morna, suave, pronta a colher teu conflito noturno, que é minha paz de alvorada. Alvoroço-me toda, que fico inquieta, sublime, desperta, atônita, besta, à flor de todos os sentidos, cinco e uns tantos que crias ao pousar em mim tuas mãos de asa. Vôos altos, quedas tanto maiores, ar, vento, frescor, o teu rubor e o meu viço, o afago preciso que me faça composição aeroterrestre, amortecida, sorvida, pacificada, ternura crua, cozida. Levada sou, porque me levas. Repouso dentro dos teus olhos, desabrochada, declinada, descarregada, desfeita, feita no nó que de repente me ata a ti, desato, desato a cobrir-me de brandura e serenidade, consciência plena, que me sussurra insinuante em outro nível, abafado, inamovível, curto, direto, penetrante, inegável: gosto de ti.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Vá devagar

Prefiro dar-te coisas que não me poderias pedir
do que te pedir coisas que não me poderias dar.

Então é compreensão. Que me abala e interpela à parede que ergues entre Tu e Eu. (Porta.) Mas é porque entendo: a parede é o nosso próprio entendimento. Entendo, entendo; colho o que me dás, botão de rosa em minhas mãos pequeninas, sorvo a graça, tua cumplicidade, e cultivo melíflua esta relação de opostos, este estranho mutualismo. Porque é dádiva. Não há metafísica que me distancie. Estou perto, porque longe. Que me venhas com espinhos. Porque tal é a tua realidade. Então nos dispomos assim, sobrepostos – um engolfa o outro –, mas lado a lado, parede, antessala: Tua realidade, parede, e a Minha. Eu através dela. Metafisicamente. (Perscruto. Janelas, para que me venha luz. Janelas, que eu tentaria abrir a ti, roubar a mim teu escuro, dar luz de presente. Se eu pudesse crer no que vejo.)

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Ser feita de amor

Água esparramada em cristal,
buraco de concha,
segredarei em teus ouvidos
os meus tormentos.
Apareceu qualquer cousa
em minha vida toda cinza,
embaçada, como água
esparramada em cristal.
Ritmo colorido
dos meus dias de espera,
duas, três, quatro horas,
e os teus ouvidos
eram buracos de concha,
retorcidos,
no desespero de não querer ouvir.

Me fizeram de pedra
quando eu queria
ser feita de amor.

Hilda Hilst

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Viajante

Independentemente, invariavelmente, e também sem esperar um obrigado: quero agradecer. Tu quase não me conheces, mas de ti recebi um presente precioso: nem seria capaz de explicá-lo. Se por um instante me fizeste sentir única. Já me morro em gratidão. Como explicar o choque anafilático que foi o nosso encontro? Penso em te dar céu, palavra, música, corpo. Penso em te ouvir. Mal sei em quem pensar. Sigo vivendo, já pensando menos, sentindo esvair-se sempre a imagem do teu rosto, fugindo da luz, voltando às pressas, vendo ao fim de tantas noites o sol nascente; quase involuntário. Faço-me menina de sol, cativa, insone, como se encarasse o estender grave da noite apenas pelo aguardo da promessa de luz e cor mais tarde. E que metáfora de vida. Perscruto o breu em que me crio como a antecipação do brilho que me pode invadir no alargar do tempo infinito, possibilidade, possibilidade, vida eterna, meu bem. Quando eu for céu, palavra, música, corpo. E ouvidos. Não, talvez não haja de ser por ti, pois o que pedes é nada... E sou assim meio dedicada, não a qualquer um, mas a quem me fala em paixão que desnorteia, desnorteia de tão bem-vinda. Estou ávida, só quero ouvir, só quero dar. Mas que medo, que medo de que nunca baste. Que medo de não ser capaz de dar nada! Um dia, alguém me pedirá tudo. E eu vou dizer: toma aqui.

domingo, 7 de outubro de 2012

S(c)inestesia

E as tuas músicas têm assim o gosto dos teus olhos me encarando.
Os teus olhos, que já não me olham, têm assim o som da tua pele me comprimindo.
Já em memória, porém, em tempo presente. Sinto a tua ausência como se a ouvisse...
É para ti: não precisas fazer caso; nem de mais, nem de menos. Já era afeto...

Flor da pele

Que jeito tens de conduzir-me. Estou como que hipersensível. E faz perfeito sentido. Sim, tem de haver uma explicação, e é esta: há química. Explosão. Que jeito tenho de ser conduzida. Mas é via dupla. Vens, e vou, e vais, e venho, e tudo é fluxo. Univocamente? Inequivocamente. Deixa, porque não é falha. Deixa, porque não te quero assustar. Tens um jeito de encantar-me, que sei que não é esforço algum. Descontraído. E tão firme, que ah, no contraste comigo eu tento estar à altura. Como oscilo! Estava imersa em minha quietude. Sóbria e árida, mas ah, que suavidade intensa tens em mim. Foi qualquer coisa de voz que eu ouvi com toda a atenção do meu ser. Estavas assim tão perto, que já não te podia diferenciar; e a voz se imiscuía no sorriso e se fundia na textura da pele assim com a leveza de tudo que só é. Estamos sendo, apenas, sem predicativo. E a voz me dá calma, uma calma sentida e almejada, mas quase distraída, com aquele meu esforço sutil de ser eu mesma. Eu mesma? Eu mesma... Porque estou contigo. Que jeito tens de me fazer cativa, calada, introduzida, alheada, interessada, fácil vivente, amante, perdida, silêncio com mão na frente da boca. Desculpa, não era para ter chegado assim tão profundo de repente; olha, é mania. Sou "intensa". Desculpa: era assim um sentimento antes mesmo de eu tê-lo sentido. Se falares nele, eu me encolho, porque ele existe. Porque és tu, e não um outro, como há muito não me haviam tocado, talvez como nunca houvesse sido... Como poderia me confessar? Acho que encontrei a palavra: receosa.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Reciprocidade

O que significa dar certo? O que significa ser bom? É não doer? É não pesar? Que pese, que enleve, que doa muito, doa, dói porque é real – tão real. Pesa, porque importa. Afeta. Porque é afeto. Sejamos crus aqui, transparentes. Pois que dura um efeito. Percuciência. O que significa dar certo? É futuro? É certeza? Comprometimento? Doação? Sinceridade? Aceitação plena? Pois que nos submerjamos ao âmago da questão. Falemos do cru e tenro da relação humana, todo o meu objeto, todo o meu escrutínio, todo o meu enigma, toda a minha perdição, e toda a minha fortuna. É aqui que se prospera. Pelo amor de Deus: o ser humano é social. Você não existe em sua própria medida. Por favor. Entenda isto. O que falo só existe porque alguém me lê, e só foi escrito porque alguém me existiu. Quando me existem, e eu existo os outros, vem alguma coisa. Pensamentos, idéias, crescimentos, devastações, agudo contato com o íntimo ainda que mais periférico de alguém. Pontes. O que significa dar certo? Mutualismo. Aquela relação bilateral. Se não é unilateral, é boa. Que doa. Que pese. Que enleve. Que faça reinar a estupidez, assim de vez em quando. Que faça reinar qualquer jovialidade. Coisa de ver o dia belo, de ver nas coisas as cores. Está nos olhos de quem vê. Vejo porque me fizeram vista. E como estava a ansiar. O efeito dura, há de durar. Sou fácil vivente. Agrado-me com gloriosa facilidade. E viverei. Social. O que significa dar certo? Reciprocidade. A ponte não é unívoca. Bate e volta e bate voltando. Qualquer sensação de reciprocidade constrói aquela ponte. E a reciprocidade pode ser de qualquer coisa. Ponte feita, é sentimento. Dá certo. É simples. Não, não é simples, porque é o mundo, é a base de tudo. Mas, justamente por isso, é simples sim. Feito célula, unidade básica da "vida". É a unidade fundamental da existência humana. O relacionar-se. É, é, é. Não nos debatamos com esta verdade. Buscamos em tudo o contato. Um íntimo, um encontro. E o encontro consigo fundamenta. Tem de ser-se um para falar em correspondência a outro. E a fala, quando bate e volta e bate voltando... É dança. De comunicabilidade. Clara e crua e nua. O conectar-se. Dar certo...? Romper um abismo entre duas pessoas. O ser, incontentavelmente aflito por comunicação. O ser, incontentavelmente faminto por verdades, ainda que seja para sentir qualquer eco de confirmação da sua própria. E é apenas eco, mas também, a existência inteira. Que se me apresente aquele que tiver plena certeza de si em si por si. E que mo lo ensine. Sou eu, mas não me acabo. Isso não é defeito. Sou eu, mas não me completo em mim. Busco a continuidade...