quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Notas do esquecimento

Escrito em pálido setembro
Dedicado ao anônimo que me chamou de maluca

A cada vez que a minha mão tremer, formigando um afago, conto 3 2 1, suspiro, olhos cerrados, 3 2 1, porque no escuro a mente vagueia. Luz. O que volto a ver? Um homem, apenas. Sem idealizações. Tão humano e sutil, um mundo por trás dos teus olhos. Que muito pouco me vêem. Não vejo quem me traiu, quem atravessou todos os limites; não vejo a raiva, quem me amedrontou e me fez tão acuada, arredia; não vejo a minha razão, tampouco; vejo uma dança de falhas graves; vejo o que tentei fazer ao me atar a ti; o que eu despertava? Eu queria entender. Não é o mesmo homem? Que há cinco anos me encantou? Entrou em meu peito aberto como se fosse simples? Fez morada funda em mim? Que há dois anos me desatou como se nada fosse? Que fez pouco da vida que habitava em mim? Me fez louca. O mesmo homem? A quem chamam de pai? A dança de falhas graves. E se estive ali, podendo ver, ouvir, dizer, sem tocar, como se o perdão fosse possível; nos espaços de silêncio, plantei a esperança de que eu saiba fincar os pés no chão. E ver as coisas como são. Com a força de ser vista, ouvida. Límpida. Reta. Que eu não precise dizer que respiro amor. Que a vida voa desde que te conheci. O teu jeito de falar e existir, distinto de tudo. Presença. Os teus olhos que puxam pra dentro. E as mãos que me eram asas. Tudo isso que vejo me conforta e desespera. Ver que o objeto do meu afeto ocupa uma realidade imaginável. Corriqueiramente habitável por um corpo que, talvez meu, não me reverbera. Não me permite reviver, ou me lançar do alto. Interdições. Seguro minha criança pela mão e volto à raiz. Sou algo além de mãe. Sou, fui, serei. E sempre mãe. Inteiramente mãe, reverberando vagamente esse mundo de sentidos que criei sob teu ser. De sons, aromas, texturas, cor e sombra, formas e palpitações diversas. O mundo segue sem ti. E no entanto é mais belo porque tu existes. E no entanto a minha vida faz mais sentido, porque abri as mãos e o peito para o que me veio tão naturalmente, espontaneamente. E este é o ponto crucial. Aquilo que naturalmente vem de mim a mim, de fora a fora, redondez e circular, como se o sentimento me voltasse inteiro, lúcido, e um entendimento se esboçasse para a própria redenção. Ou redenção seria palavra demasiada. Qualquer traço de paz para o meu coração pesaroso de pretéritos rotos, falidos, incomunicáveis, vergonha. Futuros assombrosos. Pode haver uma ponte entre esses tempos e feitos? Pode haver um silêncio que não me inquiete? Tem havido. Meu cérebro estranhamente calmo, em arrego de tanto lutar consigo. O fundo da tua alma é música. Talvez por isso eu evitasse ouvi-la. Distâncias de ti que me sejam seguras. Os contornos bem delimitados. Nem que fosse pela via mais malograda? Estou lutando com as palavras para construir o que já fui sendo ao teu lado, centímetros ou hectares. Tu me leste errado, como te li. Assim que a te ver não sei se é intencionado sequer olharmos. Eu vou olhando na esperança de que tu não vejas: é um amor tal, que eu cá comigo só queria te ver feliz; a tua felicidade; como te quero bem; que tua inteireza te permitisse amar(los) sem medidas. Como eu fiz. Só que não: só que do teu jeito. Se tanto te amei, é porque sabia a diferença. E não me cansei de celebrá-la. Celebro esta pequena trégua, memorável para mim. Desenterrou em mim uma luz sobre fatos e sentimentos. Sim, fui louca; mas ao mesmo tempo entendo um pouco mais o louco enredo. Dentro de mim a saliente vida que resta e sobeja. Desatada e inteiramente cativa. Ainda o amor me habita.

quarta-feira, 1 de março de 2017

Pedro

Há vinte meses foram concebidos nossos filhos. Porque estou assim, tentando reafirmar o óbvio. Para que esteja sempre claro como vejo neste instante. Que, apesar de não entender os rumos, estou no caminho da aceitação. Há vinte meses era eu tua. Ainda que em teu íntimo não fosses meu, eu era tua. Em um punhado de aspectos, sigo sendo. Sabes, eu sou ilha. Esperam de mim que olhe para nossos filhos e veja filhos. Eu vejo filhos, eu, tu, nós dois. Histórias de paixão e dor. Histórias de pureza e avidez. Histórias de sonhos terrenos. Assim é que, se eu nunca mais for tocada, se eu nunca mais amar ou nunca mais souber o que é paixão -- terei tocado, amado e vivido mais do que sonhara, ainda que menos do que podia, porque tu eras o próprio limite. Para atravessar, faltou o mútuo. Assim é que tenho a intensa lembrança do amor jovem. Eterno. Esse, sim. Que me acendia por dentro, cheia de cega esperança. Estou voltando a mim, cometi o desastre de escrever, e depois de tantos meses até me deu saudade. Mas vê: é uma saudade inteiramente fora da realidade. Uma saudade morta. Com o inteiro e pleno reconhecimento de nada sermos. Com o inteiro respeito de ser figura pretérita. Com o pesar de ter colhido ódio, onde plantara amor. Eu enlouqueci. Sempre esteve tão além da minha maturidade ter que te perder. Eu te perdi. Sobretudo, sempre esteve tão além da minha maturidade ser mãe dos teus filhos. Porque eles foram primeiro teus. Porque te amei mais que a mim, amei teus filhos primeiro; depois amei tanto, que nem a tua vontade foi maior que o próprio amor. Desembestei. Fugi. Cortando os nós infinitos que nos atam. Meu mundo sensorial todo feito de ti. Ressoando. E ressoando. E nas feridas todas os teus dedos. Sempre certeiro, tu. E nas fragilidades, acentuadas. Estou amaldiçoada por ti. Se hoje sou mãe, vivendo um doloroso sonho, é também na condição inevitável de que sejas pai. Senão, não seriam eles. Na condição necessária de que os tenhamos concebido. Na condição de que te caiba o papel de pai que desejares cumprir. Na condição de que me caiba enxergar a mais dolorosa de todas as verdades: eles não são só meus. Por mais intensa que seja esta vida de nós três, inexplicável. Este vínculo que vai acima de todas as coisas. Tão verdadeiro quanto a tua história em mim. A tua parte neles. (Sendo bem verdade ainda que não quero me apartar deles.) Tão verdadeiro, que, em meio a estes fatos recentes, vendo o que não via, meu corpo encerra um período de muito medo e muita luz. Sempre tanta luz a ponto de me cegar. Cega de amor, é o que sou. Meu corpo, quase em insulto, acha que é hora. Assim é que estou abrindo as mãos, tateando neste novo escuro. Estou aceitando que um dia nos conhecemos muito, a doer. Para hoje não nos conhecermos mais. Que o corpo que fez vida comigo tem uma existência muito paralela. Teu mundo de sentimentos não é para mim. Meu corpo de mulher que agora volta não é para ti. Meu corpo de mãe, sem reconhecimento. Sem perdão. Vai bastar. Bastando, sem ti, há tanto tempo. Em culpa. Cada mês me leva mais para longe, enquanto em minha memória sentimental as páginas seguem nítidas. Como se fosse tudo muito fresco, embora muito irreal. Tenho a impressão de ter vivido eras inteiras, tentando entender, sendo esquecida num sopro. E estou aceitando. Li que o amor verdadeiro perdura, não se torna ódio ao fim da experiência. Definitivamente nunca foi ódio o que senti. Tive orgulho, pavor, vergonha e dor. Tanta dor. Que hoje a palavra pouco me diz. Não sou essa pessoa toda bem resolvida. Mas sei muito bem qual é o meu lugar. Amadurecendo por estrita necessidade. Jamais será leve. Não é meu tom. Mas há de ser menos sofrido um dia?

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Remanescência

Plenilúnio do amor moribundo. Há tempo não falamos a mesma língua. Meus olhos vêm ganhando claridade. São cabelos brancos mal amarrados, pêlos, pele manchada, estrias, veias sobrecarregadas, unhas mal cuidadas e todo o meu invólucro tão desimportante. Por dentro, a maturidade e a responsabilidade tão exigidas. E o instinto materno que a mim é isso - natural e inevitável. Estou completamente assombrada, às vezes arrasada, isolada, impotente, mas enfim feliz. Quase que completa. Falta pouco. Estou perscrutando meu terno habitat. Eu não teria imaginado tudo isto; sutiãs úmidos de leite, beterraba no chuveiro, sabão de côco, infinita dor nas costas e este despertar intenso, atento, sempre a postos, sempre a carregar um mundo. Minha vida é cheia de vida. Qualquer passeio é aventureiro e qualquer prato de comida é ligeiro, sobrevivência. Eu não me concentro em nada por mais de poucos minutos. Talvez segundos, agora que começaram a se mover pela casa de verdade. Tanta densidade para tentar manter um fluxo de vida que sugira paz e sobretudo afeto. Estou ensinando como existir a duas pessoas que vieram de dentro de mim. Estou compartilhando minha alma integralmente. Uma dádiva exaustiva e inesgotável. Não tem limite. Penso em tudo que me falta e me lembro de que, precisamente quando nos desvinculamos, foi o ponto em que nos vinculamos para sempre. Quando cortaste o fio da nossa confiança, o diálogo foi condenado, e perpetuado em ressonância de desrespeito. Foi quando me tornei a casa dos teus filhos. Os nossos filhos são meus. Nesse ponto, deixei de ser tua; fui minha, fui deles, e fui reconhecendo bem as mentiras mordazes e as verdades cruéis que vêm de ti, e como distingui-las. Eu via o amor sobre todas as coisas. Eu vejo o amor que sustenta até hoje todo o sangue que dei por ti. Ele agora é moribundo, e se existe é porque não tenho tempo de lutar contra a minha memória sensível. E a minha coerência. Prometi amor eterno e de certa forma ele existirá. O que tenho em abundância pulsante é amor por eles, tão exultante que me afasta da tua agrura. Não querendo nada de ti, quereria talvez entender como é possível viver assim, como tens vivido, alheio, desconhecido, inexistente? Em dessintonia total com o próprio fruto? Dos teus amplos mistérios que não hei de acolher, depois do que me devorou inteira. Posto que até esta muito justificada felicidade de mãe é cerceada por toda a amargura de te enfrentar, desde sempre e para sempre. Não sei mesmo o que fizemos um com o outro, mas deve ser mesmo imperdoável. Sei mais da bênção de viver os dias dos meus filhos. Nada é maior que isto, nem mesmo todo o nosso indispor. E eu não sou, nem nunca fui, responsável pela tua distância. O tempo não tem a menor misericórdia por nós. E mesmo sempre presente eu perco um pouco deles todo dia, todo dia.