quarta-feira, 1 de março de 2017

Pedro

Há vinte meses foram concebidos nossos filhos. Porque estou assim, tentando reafirmar o óbvio. Para que esteja sempre claro como vejo neste instante. Que, apesar de não entender os rumos, estou no caminho da aceitação. Há vinte meses era eu tua. Ainda que em teu íntimo não fosses meu, eu era tua. Em um punhado de aspectos, sigo sendo. Sabes, eu sou ilha. Esperam de mim que olhe para nossos filhos e veja filhos. Eu vejo filhos, eu, tu, nós dois. Histórias de paixão e dor. Histórias de pureza e avidez. Histórias de sonhos terrenos. Assim é que, se eu nunca mais for tocada, se eu nunca mais amar ou nunca mais souber o que é paixão -- terei tocado, amado e vivido mais do que sonhara, ainda que menos do que podia, porque tu eras o próprio limite. Para atravessar, faltou o mútuo. Assim é que tenho a intensa lembrança do amor jovem. Eterno. Esse, sim. Que me acendia por dentro, cheia de cega esperança. Estou voltando a mim, cometi o desastre de escrever, e depois de tantos meses até me deu saudade. Mas vê: é uma saudade inteiramente fora da realidade. Uma saudade morta. Com o inteiro e pleno reconhecimento de nada sermos. Com o inteiro respeito de ser figura pretérita. Com o pesar de ter colhido ódio, onde plantara amor. Eu enlouqueci. Sempre esteve tão além da minha maturidade ter que te perder. Eu te perdi. Sobretudo, sempre esteve tão além da minha maturidade ser mãe dos teus filhos. Porque eles foram primeiro teus. Porque te amei mais que a mim, amei teus filhos primeiro; depois amei tanto, que nem a tua vontade foi maior que o próprio amor. Desembestei. Fugi. Cortando os nós infinitos que nos atam. Meu mundo sensorial todo feito de ti. Ressoando. E ressoando. E nas feridas todas os teus dedos. Sempre certeiro, tu. E nas fragilidades, acentuadas. Estou amaldiçoada por ti. Se hoje sou mãe, vivendo um doloroso sonho, é também na condição inevitável de que sejas pai. Senão, não seriam eles. Na condição necessária de que os tenhamos concebido. Na condição de que te caiba o papel de pai que desejares cumprir. Na condição de que me caiba enxergar a mais dolorosa de todas as verdades: eles não são só meus. Por mais intensa que seja esta vida de nós três, inexplicável. Este vínculo que vai acima de todas as coisas. Tão verdadeiro quanto a tua história em mim. A tua parte neles. (Sendo bem verdade ainda que não quero me apartar deles.) Tão verdadeiro, que, em meio a estes fatos recentes, vendo o que não via, meu corpo encerra um período de muito medo e muita luz. Sempre tanta luz a ponto de me cegar. Cega de amor, é o que sou. Meu corpo, quase em insulto, acha que é hora. Assim é que estou abrindo as mãos, tateando neste novo escuro. Estou aceitando que um dia nos conhecemos muito, a doer. Para hoje não nos conhecermos mais. Que o corpo que fez vida comigo tem uma existência muito paralela. Teu mundo de sentimentos não é para mim. Meu corpo de mulher que agora volta não é para ti. Meu corpo de mãe, sem reconhecimento. Sem perdão. Vai bastar. Bastando, sem ti, há tanto tempo. Em culpa. Cada mês me leva mais para longe, enquanto em minha memória sentimental as páginas seguem nítidas. Como se fosse tudo muito fresco, embora muito irreal. Tenho a impressão de ter vivido eras inteiras, tentando entender, sendo esquecida num sopro. E estou aceitando. Li que o amor verdadeiro perdura, não se torna ódio ao fim da experiência. Definitivamente nunca foi ódio o que senti. Tive orgulho, pavor, vergonha e dor. Tanta dor. Que hoje a palavra pouco me diz. Não sou essa pessoa toda bem resolvida. Mas sei muito bem qual é o meu lugar. Amadurecendo por estrita necessidade. Jamais será leve. Não é meu tom. Mas há de ser menos sofrido um dia?

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