segunda-feira, 31 de março de 2014

De uma mulher com uma flor

Porque eu escuto seu carro chegando feito pano de fundo da alegria a se antecipar. Porque você à porta é um charme, porque você me chama de Cachinhos, e só assim, e porque fica bobo me abraçando por trás na frente do espelho. Porque você vê tudo de mim, o tempo todo, os olhos bem abertos, e me chamando sempre para ver também: olha que bonito o que acontece quando nos juntamos assim. Porque você é o único. Porque você perde o controle de uma forma tão elegante, irresistível, e me faz inteira ali presente, sedenta e maravilhada. Porque você me pediu pra cantar, cuidou de mim, apareceu sem aviso debaixo do prédio, e me envolveu a cada encontro. Porque você, pra dizer que me ama, fica todo canhestro, como se eu não governasse seu coração há tempo. Porque você fica esfuziante quando chove, que nem criança no Natal, e só não tanto quanto ao chegarem livros pra você. Porque você é o homem da minha vida, vê se volta, para me fazer sentir de novo no topo do mundo, em suas mãos. Porque você corre para a cama depois do banho, não usa toalhas, fica nu o tempo todo, e ouve música sacra, quero novamente os seus sons espalhados pela casa. Porque você gosta de cozinhar comigo, me faz rir de doer, e sempre elogia a minha comida e o meu humor, quero conversar sempre com você, minha pessoa querida e favorita. Porque você adora suco de maracujá, é tão esquecido que às vezes não sabe o quanto amo você, e passa um tempão se tornando o homem encantador que é, quero a certeza de te dar todo o tempo do mundo. Porque você tem um bom gosto impecável, e uma distração enorme que compensa seu garbo, num cálculo equilibrado de homem que eu quero ter, quero também me espelhar a me tornar sempre a melhor mulher em mim. Porque você continua não se explicando e me deixa com o coração na mão, porque a gente só vê filme estranho, porque estou com umas saudades infinitas, e porque rezo pelos seus sonhos a cada noite, quero muito que você perdoe eu ter tentado desvendar essas coisas todas, e querido me imiscuir nos teus segredos; não importa, eu só quero estar ao seu lado. Porque você não gosta de ninguém, volta logo pra gostar de mim. Porque me sinto muito forte agora, e nunca te quis tanto, quero muito que você perdoe tudo, e aceite o que tenho para dar. Porque você está bem aqui e agora, peço a alegria de te receber de vez em quando ao fim do dia. Porque a gente pode fazer do nosso jeito, quero que você saiba confiar em mim, sem nenhum medo. Porque você ocupa toda a cama, e dorme onze horas, e me abraça no meio da noite, quero te acordar com um sorriso, e aquele segredo que só existe entre nós. Porque te amo tanto, diga apenas até já, que já não me importo de estar em espera. Sou uma mulher com uma flor no peito, e o segredo da grande beleza: você em mim.

domingo, 30 de março de 2014

Contando carneirinhos

Sofres porque queres, e sofro porque queres. Percebe o erro? Eu sempre estive aqui, ouvidos e braços, coração. Criaste teu buraco e me jogaste nele. E agora? Que argumento racional usar para que decidas me jogar a corda? A que coração apelar? O de pedra já me foi atirado na cara. Este buraco é agora meu ninho de amor. O amor sobrevive. Não, não é certo. Fortaleza. E umas águas embaixo, no desespero de não se fazerem ouvir. A angústia de saber-te sofrendo. A angústia mais constante de sofrer tanto mais, tão solenemente, tão impotente. Só quereria dar-te a mão. Dar-te tudo, até a minha ausência. Eu entenderia. Uma ofensa sem medida. Me fizeram de pedra quando eu queria ser feita de amor.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Fé púnica

Há dias não me posso olhar no espelho. Tenho medo de ver a cara da culpa nenhuma, da culpa toda, da única culpa que posso condenar, de não ver a cara da minha dor, o único, dos sons que alucino virem da rua, a sombra que quero ver sob a luz noturna, e não há. Porque ele veio e ele foi, sem me olhar. Tenho medo, e desconheço qualquer forma de evitar as coisas todas; justamente as coisas todas, o que mais nego e dispenso, são o que me é dado manter. Não havia culpa: ela existe agora. O corpo dói de ausência, que é dele mas logo se torna própria; sumindo, sumindo na frente do espelho que ignoro. No dia seguinte, é como se eu fosse pouco, tão pouco, que só a mim o acesso é negado. Todos os outros não o conhecem: por isso, é-lhes permitido permanecer. Eu serei dispensável. Aquilo que está dentro fenece; reina a superficialidade. É o que cai dos olhos agora, é tudo que não me foi permitido viver, tudo que foi arrancado do meu peito. Tenho nojo do meu tempo, das pessoas todas que não me entendem, geração nojenta, não fui feita pra isso, estou enganada, estou amarga, estou dura, tudo que minha alma insiste em não ser. Estou desafiada, o mundo quer de mim o pecado que vem da solidão, eu, que dele só pedi a pureza. Sou uma inocente, e isso de nada me salva. Deus, quem olha por mim? Este não é meu caminho.

domingo, 9 de março de 2014

O amor sobrevive

Que significam os livros que perdi? Se, após seis longos anos, o resíduo na estante é a única verdade que sei: a de haver-te perdido. Os livros são o mesmo nada. O som que permanece é um suspiro engolido. As palavras que enchem os olhos, a boca que perfurava, aquelas do fracasso, da tragédia. Se isto me foge, que são as coisas? Se isto pode perder-se. Gostaria muito de que fosses. Adoraria ver-te partir, o mais que me visse, depois, a respirar da tua ausência, como se nela houvesse vida. Para que, ao fim e ao cabo, te pudesse sentir voltar, ávido de saudade. Seis dias, não anos, e teria ouvido também do amor, e de novo, como se fosse verdade. Vibrou e escorreu dos olhos, das mãos, coisas minhas e tuas, ensejo das noites separados. E como fazer da rotina algo díspar? Porque és o senhor de mim. Deus, não me obrigai a mais nada. Livro algum atravessa o abismo que é estar sem ele. Livro algum me separa deste escuro. Para nunca compartilhar o escuro daqueles olhos, que desafiam para fora da vida. A doçura mais ímpar de ser cruel. Na estante, tudo é nada. O quarto não significa, e atravessa para hábitos de mais além. As superfícies só não são mais amplas que a ausência de tudo. Não pensaria em coisa alguma, espaço algum que preenchesse essa perda; as coisas parecem querer habitar apenas o âmbito da vida compartilhada. Por que cultivar a troco de nada? Investir em reprodução de sensações agonizantes? Coisa alguma é testemunha de que eu tenha vivido.