segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Peso

É peso do corpo na cama, como um peso de todas as árvores e plantas contra a terra e contra o ar e contra a água. Talvez eu possa até sentir o peso do cérebro no crânio, a vastidão do que sou concentrada num pedaço mínimo de matéria. Peso do ar contra as narinas, peso raramente sentido do ar contra os pulmões, peso que a vida automática impede que se perceba. O peso depende ou independe apenas de percepção, pois existe sempre, sempre está, e em todos os lugares. Peso da lua no céu existe? Tanto quanto o peso do meu corpo cansado de nada sobre os meus pés que pouco andaram pelos chãos do mundo. Eu carrego na alma o peso da consciência sobre-humana, que é nada além de uma faceta da consciência humana vulgar. Talvez inventada pela última, e não mais que isso. O peso que agora compreendo é imaginativo, como tudo que escrevo (será?), mas só após sua absorção pelo tempo, após a entrega da consciência ao desconhecido, pois, enquanto o tempo governa vigoroso, a única percepção é do peso em si, e nunca do entendimento de pesar além dos limites de si: aquele peso que reflete e percute nos prolongamentos do mundo, de um ser passível de ação que reverbere, um ser passível de causa e efeito. E tal sensação, que é percepção de poder, ou diria, talvez, de realidade, é tão mais pungente e percussiva quando dissociada da percepção do peso, ou seja, quando associada somente à percepção aguda, obsequiosa, da própria leveza, do não-peso de ser, e a leveza é liberdade. Ignorar, talvez, o peso das conseqüências todas de tudo que se faça, tudo que se saiba. Ou agir apesar de. E seguir sendo sem limites, de braços abertos a qualquer ferida ou alegria que me possa atingir. Liberdade, de corpo e alma, é enfim o poder. (Tão atual que prefiro nem datar.)

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Enleio sucinto

Enlear (v. transitivo)
1. Ligar, atar.
2. Entrelaçar.
3. Envolver; embaraçar, confundir.
4. Tornar perplexo.
5. [Figurado]  Enlevar.
(v. pronominal)
6. Prender-se, enredar-se.
7. Perturbar-se; ficar indeciso e perplexo.

Tu não deixas, ai se tu deixasses. Mas venha-te, vem e vai, e lá se vai indo a minha compostura, fico sendo pessoa imóvel preenchida de comoção incontentável que se manifesta dentro, e porque me vem o teu corpo, num vaivém de doçura cúmplice, secreta embora pública, tenra, presunção impresumível, eu posso apenas supô-lo, o seu contato leve e fluente, influente, intenso, veemente, vem à mente, não, vem à pele, vem à alma, vem ao mundo dos sentidos, vem ao mundo dos amores, delicado toque imprevisível, como que me conta um segredo imperscrutável. Vem, porque eu espero toda vez, sem pensar que espero, mas plena da consciência de fazê-lo, indolente. Passiva de tal forma que escapo até à indulgência. Em timidez de pessoa pequena. Covardia que é apenas por eu estar perante ti tão desarmada, tão inábil, isenta de articulação. Que tenho tanto a dizer, uma coisa minha que eu te quero mostrar. Busco para mim o teu olhar, um olhar quente que acolhe, mas que ao mesmo tempo me parece intangível. Minha maior distância é esta entre tu e eu. Ou aquela entre o eu que tu vês e o eu que em mim habita pleno de desejo por ti. Embora estejas mesmo como que unificado ao meu corpo. Teus olhos fogem aos meus: minha debilidade faz que falhe a minha tentativa de trazê-los de volta, e o segredo morre no meio do caminho, incompleto, enquanto eu morro no ar, plenamente enleada. Tento, à maneira de minha fraqueza, estar à tua altura. Mas não escapo ao meu silêncio. E sou uma reclusão. Existo para o mundo na medida do seu toque. Não é que não tenha nada a te dizer: apenas me sinto interditada. Escapa-me a naturalidade. Disso não saberias tu, tão farto que és de espontaneidade serena e extremada. Tão teu que és, e tão intransponível. Eu como que não sei fazer parte. Eu não poderia corresponder-lhe, vagando como estou na incerteza expansiva. Faz-me mais crente cada gesto teu, e tanto mais cética. Mais esperançosa, e tanto mais desesperada. Que poder é este? Que idéia tens? Do pouco que me conheces, tu sustentas uma insistência ininterpretável, que me mantém sem me prender, que me deixa à beira de algo, mas só à beira, nem mais, nem menos, e sem que eu possa ver o que à frente se encontra. Um abismo que nem sei se me espera. Uma ilusão, talvez. Porque de abismos entendo, a eles me prendo; sempre à beira, no receio de perscrutar o abaixo. Até que me atiro com uma súbita confiança que parece mais uma desistência. O que esperar de ti? Sei que me farás sentir-me grande tola, é isto sempre. Súbito virás a abraçar-me por trás com tal afeto, teu queixo um peso bem-vindo sobre meu ombro, tua face ao lado da minha, teu braço envolvendo a minha cintura, e eu perderei toda noção corpórea de minha existência. Ou súbito terás de ir-te embora, súbito um desconhecido, sem mais palavra, sem mais sugerir, e sem dar notícia, e eu perderei o elo que tentava construir contigo no meio do caminho. Eu sou a partida e a lembrança. Eu sou uma idéia, a idéia que tens de mim, para mim um total mistério. O que essa idéia fará comigo? Eu sou o tamanho do que transmites, sem saberes do efeito. Eu sou tua mão firme afagando a minha. Eu sou a tua insensibilidade. E mais nada. (01.05.10)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Auto-retrato

Meu segredo é de um falso mistério infantil, restrito apenas para mim mesma e, ainda, ignoto perpétuo para o resto do mundo. Só eu o conheço, e somente eu o tento desvendar. Mas só eu (jamais) poderia compreendê-lo, porque sou ele, e ele me ocupa toda. Meu segredo é uma revelação de fragilidade que envergonha sem que eu o queira admitir, e tanto pior posto que nem segredo seja, nem seja nada. Talvez uma constatação solitária. Eu quis sempre me convencer de haver conquistado uma vitória, uma força, uma suficiência, eu quis a todo custo negar a certeza límpida de encontrar-me ainda numa indeterminação profunda, tal falta de êxito, tal compreensão de desamparo. Eu quis, mas o vulgar e verdadeiro é que raramente se obtém aquilo que se espera, independentemente da dimensão da vontade de posse, ai vontade de poder, é o meu fim inútil na vida. E é bom que quaisquer promessas de agravação do evento que me ocupa a memória me tenham escapado ao destino, posto que não esteja pronta para tantas delas, embora vigore no pacto de mim comigo a tentativa de convencer-me do contrário. O perigo de enxergar promessas, vê-las como tais. Se ele é um homem, bem o seja, mas eu não sou ainda mulher. Sou criança assustada e como tal devo ser ignorada, que não quero compaixão. Pareço pedir por ela, mas a repudio, como uma ofensa, atendo-me ao reconhecimento único da minha frágil infantilidade e suas implicações. Então é bom que tenha sido extinta qualquer promessa misteriosa de elo mais profundo entre nós, pois já no limiar da sugestão de qualquer expectativa eu me pus atordoada, perdida e indefesa, solta no ermo espaço que é a distância incompreensível entre duas pessoas. Se ele é um forte, bem o seja, mas eu não sou nada além de uma breve fraqueza. Lances e nuances e intervalos de bravura invadem meu hábito como figuras de ocasião, ocasionais apenas, e insuponíveis, irregulares. Não são algo com que se devesse contar. Se ele é um escândalo de naturalidade formada, bem o seja, mas eu sou ainda uma timidez desnivelada, uma descoberta em manutenção, um mistério a ser proposto. Eu me estou a buscar. Busco, e entendo, talvez apenas para minha segurança, que ele não esconde nada do que procuro. Minha vontade de mergulhar mais profundo é curiosidade comigo mesma, não com ele. Se ele seduz os olhos e inflama os espíritos, bem o seja, o inevitável e inegável, mas eu sou ainda semente por brotar, à espera de uma luz ainda mais imponente a meus cobiçosos olhos de moça, e é isto o crucial para que eu me entretenha com o mundo. Se ele é contemplação inexeqüível, bem o seja, aceito, mas eu estou ainda a assimilar os horizontes e as nuances da minha estranheza de principiante. E não é vergonha ser básica e aprendiz, pois a minha jornada é fantástica, algo que não sei dizer a respeito dele. E não deveria importar, pois eu sou eu; que me importa ele? Ele ignora minha autonomia, minha percepção, e da minha existência faz um uso indevido intransponível que bloqueia e compromete a substância do meu sutil equilíbrio. Ele tem um egoísmo que não faz parte de mim, mas que me invade e polui junto ao contato, leviano à sua visão, que ele faz com a minha alma. Toca a minha alma, mas tudo que eu sinto é lamento. Quisera não ser tocada! Quisera ter mantido minha fortaleza de paz! Quisera não ser quase-mulher desafiada sem sentido por um muito-homem! Porque não faz sentido algum. Quisera muito ser grande, mas sou pequena: que se há de fazer? Quisera me defender das exigências do mundo! Que não me seja imposta a consideração do tamanho de minha falta, de minha queda, dos requisitos por satisfazer. É muito chão a ser andado: que me importa que ele tenha realizado para si os meus sonhos? O imprescindível é que eu possa realizá-los para mim, nos limites do meu segredo, e com meu sangue e com minha alma. Quem é ele além de uma beleza distante a ser contemplada? Uma idéia bonita, mas de que me serve uma idéia bonita? De que me serve uma distância imensurável? Só eu deveria poder ter a incumbência de medir a dimensão da minha fraqueza e da minha limitação. Eu cresço sozinha, como sempre fiz, eu me crio por minha conta, sem ninguém para impressionar. Não quero o fardo de ser para alguém, que já me basta em demasia o julgamento que me faço. Escolho a mim: maior é a minha imprescindibilidade. E ele é outro mistério vasto e belo que não me cabe desvendar. (02.05.10)