domingo, 25 de novembro de 2012

Sonâmbulos

Era assim tão escuro, que eu nem aceitaria chamar de azul. Mas era meio marinho, talvez porque eu estivesse mergulhando. Ofegante, ritmo disparado do eco dos teus sons nos meus braços abertos. Eu só não queria ter que te ver de partida. Que este amor só me veja de chegada? Que este amor não me fale das semanas que se estiram no tempo. Que os dias entre as nossas poças d'água não me façam desaguar em descompasso. Porque, enquanto olhava, eu estava azul. De calmaria e sargaço. Teus ruídos, a marcha da tua voz compassada, os verbos caindo sobre mim feito onda. Se partisses, eu saberia eterno o movimento dos teus quadris. Eu sentiria enterrados os movimentos das tuas mãos. Teria sido tão bom quanto qualquer dia. E eu não ouviria teus lamentos, tuas insensíveis considerações. Mas eu olhava, e era tudo vermelho, agudo, obscuro; antes dos olhos, foi um arrepio de alma o que me fez saber-te trêmulo, extremado: olhei, e era mesmo, como se a palavra na tua boca de fonte estivesse assim prestes a despejar em mim um peso enorme, uma nova violência, um escabroso temor de eras irreversíveis. Aí, quando te vi inteiro, dando-me a mão a segurar diante do abismo, senti-me tua como nunca: assustada, na excelência da palavra, mas assustada com a minha falta de susto. Reflexo que eu via. Do azul ao negro, eras escarlate, escancarado no meu colo, vibrando minhas veias caladas. Então, calaste também. Ponte desfeita, retornaste ao alvíssimo, inacessível e distraído. Se eu te pudesse beber até à última gota, para que não mais te afogasses no que falta dizer. Se eu te pudesse ser luz. Se eu te pudesse pedir que ficasses. Sem aviso prévio.

Residual

Não cultivar; não fazer da cura do teu egoísmo a minha missão; não colher o fruto das nossas mágoas; não levar à boca o teu veneno. Não buscar decifrar o segredo dos teus olhos. Que não me vêem. E, por terem uma vez visto, fazem-me agora inteira invisível. De nada adiantaria ser cega. Estive vivendo nas sombras da tua música. E o que vejo me arrasta feito onda de volta àquilo que perdi.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Hermético

A cada dia, ocupas variado um fragmento do meu ativo pensar. Hoje foi porque li: "os imponderáveis das relações interpessoais". A verdade é que nunca te pedi que explicasse nada. Também porque, talvez até sem saber, eu já entendia. O entendimento, porém, não faz sozinho a harmonia secreta. Como se eu buscasse qualquer cumplicidade escura, escura, escura. Que, de tão leve, se fizesse natural. Teu suposto desequilíbrio como que me faz mais obstinada no equilíbrio meu, assim algo de frágil ou inamovível, sem meio termo. Que desvias, para onde queiras, e também sempre a erguer paredes entre os mundos, fazendo-me inquieta ilha sem diacronia, hipersensibilizada. Então, desvio. Conjuro as feições da tua seriedade em pensamento, já inibida de categorias. Que peso me dás, sem me dar nada. Que peso te dou, oferecendo o que não queres?

sábado, 17 de novembro de 2012

Anti-estacionário

Oito tempos morridos, oito folhas caem,
oito flores nascem sob minhas raízes
soltas; se primavera, outono espera.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Como é que se vive?

Não pode ser coincidência eles falarem de outono. Que dia é este, em que sinto desabrochar em mim solitária flor, água de primavera? Ritmo ensolarado dos meus dias de espera, refúgio, cultivo, sombra, encontro, colheita, consumição. Oito tempos vivi, para saber hoje aguda a reticência da minha morte. Estou enamorada. Aqui me encontro como anti-blasé: o avesso da indiferença. Ser passional. Um nicho em que tudo importa, um nicho em que me encontro, sonhada, sonhando palavras. Serei sonhadora profissional. Que a gente sonha com um rigor tal, que é pura entrega humana. Já não se separa interesse intelectual do emocional. Sou o inferno humano, o problema humano de estar em conflito com tudo a todo o tempo. A vida não é dada, o mundo não é evidente, a comunicação não é transparente, o sentido não é unívoco. Não é que o mundo se adapte ao sujeito, nem o sujeito ao mundo. É que não se separa o mundo do sujeito. É que há outras formas de existência possíveis. Há todos os mundos possíveis. Estou aquém do entendimento. E completamente imersa. As contradições do existir. Mito. A pergunta é sempre a mesma. Como viver?

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Oceano de ruído

Eu me revelo? Falo fraqueza, falo força, falo de queda, como quem fala do tempo, do trânsito, da economia internacional. Falo de dor, perda, necessidade, angústia. Falo sem falar. Se olho quieta, já sabem: estou falando pelo silêncio. Sussurrando: cuidado, sou a delicadeza inquebrantável. Sou o impacto cálido e transversalmente frágil. Corajosamente receosa. (Na hora mesma em que escrevo estou avessa à necessidade de pôr em escrito.) Falo transparência, desafio os silêncios. Curiosa. Quero nadar num mar de confissões. E é estranho, porque não quereria falar nada. Quereria ser conhecida, entendida apenas, ou melhor, respeitosamente ignorada, se calha, benquista, por me ser, sem me entregar nas palavras. Mas só entrego? Falivelmente. Há que parar. Falar nada. Mas é fome de ouvir? Curiosa. Quero nadar nas águas de alguém. Se me apetece. Me apetece, eu quero mergulhar bem fundo. E acabar encontrando umas profundezas que talvez ninguém devesse tocar. Mas é porque me sinto tocada. Sensação de entendimento. De repente, pode ser qualquer culpa de ser imperfeita. Porque me importo. Mas sinto mesmo que entendo. E sinto mesmo vibrar dentro de mim qualquer vontade de esforço. Quero me igualar. Olho no olho, falar a mesma língua. Não falar, pelo mesmo silêncio. Em respeito absoluto. Pelo que há entre duas pessoas. Espaço. Encontro de águas. Pelo limite que existe. Se querem que exista, e deve existir. Existirá. Não atravesso. Confronto? Impasse natural, barreira de corais. E dá vontade de falar amor, falar alegria, falar paz. Mas é tudo uno. O claro não existe sem o escuro. Se me põem na sombra, como brilhar? Se me ofuscam, como não enegrecer? Me sinto excessiva, transbordante. Quero ser contida? Não quero conter. Se deixassem, eu seguiria nadando nadando nadando eternamente no caminho para a distância, cada vez mais eterna e mais profunda, cada vez mais compreensiva, invasora, e ainda tão sutil porque aí eu estaria me habituando, camuflando em meio à paisagem. E não mais me sentiria o elemento estranho, um forasteiro. O ser humano não quer o novo, quer o mesmo. Resignação, até mesmo à idéia de não resignar-se. Apego, até mesmo à idéia de desapegar-se. Estou muito calma com a idéia das coisas. Quero ter senso de proporção. Ocupar um recipiente, definir meu conteúdo? Servir-me a alguém? Para que tanta racionalidade? Não: quereria ser brisa que toca suave a superfície de um outro, mas assim, a superfície inteira. Ambiciosa. Mas num toque de pura cumplicidade. Meu desafio de conhecer. Ânsia? Estou conhecendo, apavorada e sereníssima. Se vem onda, enxurrada descontrolada, não é para temer. O choque também é bom? Não será impasse, mas talvez uma nova corrente? Vertente, vertigem. De consciência aguda do contato? Pois, se faltar o ar, se atinar aquele senso de emergir, restabelecer fortaleza? Como se deixar imergir, engolfar-se, em águas incertas, mar aberto: imensidão? Imensidão. De cada um. Somada àquela, que há entre duas pessoas. Pois, preencher-me. Iluminar-me dela. Mas não há luminosidade sem o escuro.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Sobre a natureza da luz, parte dois

Que belo dia para amar. No intransitivo. Quando abre a chuva e fecha a luz, amo. Quando seca a água, e molha cor no ar do céu, amo. Quando a estrada à frente é só espaço, vento, transcendência livre. Quando o dia sorri sozinho. Quando eu me sinto bem-vinda. Quando eu sinto as teias todas, redes se emaranhando firmes em minha mente. Quando é perspectiva. Quando não há fome, porque tenho medo de pensar o futuro. Quando sei que serei feliz. Quando quase me sinto chegando. Quando sei dos outros, sei-os sorrindo, sei-os livres. Amo-os, deixando-os. Quando fecho os olhos, amo. Quando me sei existente, pessoa una, pessoa inteira, quando caminho pelo universo dentro de olhos fechados, quando persigo, quando transmuto um gesto, quando sinto vibrar e sonhar o universo mesmo através de mim. Abrindo os olhos, respirando mundo, encontro. Amo. Quando alguém vai embora, amo. Quando me percebo falível. Amo. Quando percebo todas as linhas tortas. E ecoa um som quase ficcional. Que deve vir de dentro da alma. Quando me sei inteiramente separada, e, justamente porque separada, unida a tudo. Parte dissoluta no todo da vida. Natureza. Quando me sei viva, animal. Quando me sei pensante de ares inobteníveis. Quando vejo fragmento de tudo em todas as coisas, insustentabilíssima leveza em cada detalhe, tudo ao mesmo tempo, temporalidades, acasos, queda, nó, conexão. Quando me sei póstuma, modificada, sobrevivente, lutadora, cintilante, íntegra, e sempre liminar. Simplicidade. Vazio. Não há escuro na alma neste instante. Quando me sei beleza, porque amo: amo.