quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Remanescência

Plenilúnio do amor moribundo. Há tempo não falamos a mesma língua. Meus olhos vêm ganhando claridade. São cabelos brancos mal amarrados, pêlos, pele manchada, estrias, veias sobrecarregadas, unhas mal cuidadas e todo o meu invólucro tão desimportante. Por dentro, a maturidade e a responsabilidade tão exigidas. E o instinto materno que a mim é isso - natural e inevitável. Estou completamente assombrada, às vezes arrasada, isolada, impotente, mas enfim feliz. Quase que completa. Falta pouco. Estou perscrutando meu terno habitat. Eu não teria imaginado tudo isto; sutiãs úmidos de leite, beterraba no chuveiro, sabão de côco, infinita dor nas costas e este despertar intenso, atento, sempre a postos, sempre a carregar um mundo. Minha vida é cheia de vida. Qualquer passeio é aventureiro e qualquer prato de comida é ligeiro, sobrevivência. Eu não me concentro em nada por mais de poucos minutos. Talvez segundos, agora que começaram a se mover pela casa de verdade. Tanta densidade para tentar manter um fluxo de vida que sugira paz e sobretudo afeto. Estou ensinando como existir a duas pessoas que vieram de dentro de mim. Estou compartilhando minha alma integralmente. Uma dádiva exaustiva e inesgotável. Não tem limite. Penso em tudo que me falta e me lembro de que, precisamente quando nos desvinculamos, foi o ponto em que nos vinculamos para sempre. Quando cortaste o fio da nossa confiança, o diálogo foi condenado, e perpetuado em ressonância de desrespeito. Foi quando me tornei a casa dos teus filhos. Os nossos filhos são meus. Nesse ponto, deixei de ser tua; fui minha, fui deles, e fui reconhecendo bem as mentiras mordazes e as verdades cruéis que vêm de ti, e como distingui-las. Eu via o amor sobre todas as coisas. Eu vejo o amor que sustenta até hoje todo o sangue que dei por ti. Ele agora é moribundo, e se existe é porque não tenho tempo de lutar contra a minha memória sensível. E a minha coerência. Prometi amor eterno e de certa forma ele existirá. O que tenho em abundância pulsante é amor por eles, tão exultante que me afasta da tua agrura. Não querendo nada de ti, quereria talvez entender como é possível viver assim, como tens vivido, alheio, desconhecido, inexistente? Em dessintonia total com o próprio fruto? Dos teus amplos mistérios que não hei de acolher, depois do que me devorou inteira. Posto que até esta muito justificada felicidade de mãe é cerceada por toda a amargura de te enfrentar, desde sempre e para sempre. Não sei mesmo o que fizemos um com o outro, mas deve ser mesmo imperdoável. Sei mais da bênção de viver os dias dos meus filhos. Nada é maior que isto, nem mesmo todo o nosso indispor. E eu não sou, nem nunca fui, responsável pela tua distância. O tempo não tem a menor misericórdia por nós. E mesmo sempre presente eu perco um pouco deles todo dia, todo dia.